sábado, 16 de julho de 2011

UM HOMEM NO SEU CASTELO

(IMAGEM DA WEB)



 “Entre, entre! Obrigado por ter vindo. Sabe que nunca recebo ninguém em casa? Vivemos tempos perigosos. Entende, não é? A gente sabe lá o que vai na cabeça das pessoas? Praticamente não vejo televisão e jornais só mesmo de vez em quando, mas apercebo-me do que se passa à nossa volta. Por cinco euros mata-se uma pessoa. Nunca a vida humana valeu tão pouco. 
A conversa é como as cerejas, ainda há dias li sobre a condenação dos dois polícias da PSP que foram condenados a quatro anos de prisão efectiva. Fiquei preocupado, sabe? É evidente que eu não sei o que se passou. Não sei se as agressões ao alemão teriam sido como contam, mas fiquei a pensar nesta condenação. Terá de haver muito cuidado ao sentenciar agentes. É que, não havendo sensibilidade, qualquer dia os polícias não querem mesmo saber de nada. E tenho de lhe confessar, perante este julgamento, se eu fosse polícia, acho que diante de uma qualquer ocorrência na rua me encolhia. Mas entre… entre… não fique à porta. 
Está a olhar para esse desenho? Sabe de quem é? É de mestre Júlio Resende. É belo, não é? E esta tela, sabe quem a pintou? Carlos Ramos… é espantosa, não é? Ora afaste-se um pouco. Veja agora. Olhe esta beleza. Era um “espatolista” de categoria. Olhe a mistura de cores. É uma maravilha, não é? Olhe este prato de faiança portuguesa. É bom não é? É um “aranhões”, do século XVIII. Olhe esta estampa, está a ver? É antiga… olhe ali a data… 1819… está a ver? Olhe este pote chinês antigo… é lindo não é? Olhe, trouxeram-mo de Macau, poucos anos antes de perder a administração portuguesa. Olhe aqui este prato “Companhia das Índias”. É maravilhoso, não é? Está a gostar? Obrigado por ter vindo. Sabe, converso com pouca gente sobre arte. Não se pode confiar em ninguém. Olhe este livro… é um manuscrito. Veja aqui a data…”Coimbra, 1795”. Espantoso, não é?!
Tinha muito mais coisas. Então louças?! Nem lhe conto. Tinha várias peças de Estremoz. Antigas, claro. Mas divorciei-me há poucos anos e então disse à minha mulher: escolhe o que quiseres! E ela escolheu as melhores peças. Mas eu não me importei. Somos amigos. Isso é que interessa. Vivemos muitas décadas juntos. Essas recordações são o que ficam no nosso coração. As boas memórias são o sal da nossa vivência enquanto por cá andamos.
A arte, esta arte que eu tanto amo, é muito importante, mas são objectos, são coisas. Qualquer dia morro e isto fica tudo. Não somos donos de nada. Somos apenas usufrutuários das coisas. Não estou a maçá-lo, com a minha conversa, pois não?
Olhe aqui esta máquina de encher garrafas de champanhe. Já viu alguma assim? Olhe era de umas caves dali de Anadia. Faliram e então comprei-a a um funcionário que a recebeu como pagamento, uma vez que já não havia dinheiro. Mas depois fiquei a pensar e sabe o que fiz? Liguei ao dono das caves e disse: eu tenho uma máquina de encher champanhe, muito antiga, que era da sua adega. Comprei-a a um seu ex-funcionário. Calculo que esteja muito ligado a ela… o senhor quere-a? Vendo-lha pelo mesmo preço que comprei. Não quis. Agradeceu-me muito o gesto. Respondeu-me que ficasse eu com ela. Estava em boas mãos. Fiz bem, não fiz?
Sabe, apesar do que disse atrás, que os objectos são coisas, a verdade é que, quando somos velhos como eu, são muito mais do que isso. É a nossa existência espelhada neles. É como se a nossa vida estivesse retalhada em bocados. Cada peça conta um bocadinho de nós. Olhe esta garrafa de vidro. É linda, não é? É Murano. Comprei-a em Itália, há mais de 20 anos. Fui com a minha ex-mulher. Ainda me lembro do hotel onde ficámos. Éramos tão felizes?!... Enfim… tudo passa!

2 comentários:

Anónimo disse...

Muito bonito.Luís.Gostei,li este post com imenso prazer,parecia que estava a assistir ao diálogo.Curiosa a forma como se «retirou» e deixou o protagonista da história a falar.Ás vezes os contos mais simples são os mais interessantes.
Abraço,Marco

LUIS FERNANDES disse...

Obrigado, Marco. Só um pequeno esclarecimento: este monólogo foi verdadeiro. Ou seja, não se trata de um conto. Claro que na situação real eu falei. E, como sempre nestas situações, com muitas frases de apreço, porque é isso mesmo que o anfitrião procura... para além de alguém com quem conversar.
Um grande abraço.
Luís