segunda-feira, 10 de maio de 2010

O CONTO DA SEMANA...




UMA NOITE INESQUECÍVEL

 É Sábado à noite. Jantei há pouco no restaurante da Rua Imaginária. Há mais de um ano que, lá no canto esquerdo, tenho mesa marcada para todos os dias. Quando um homem fica sozinho, estas pequenas casas de restauração passam a ser a nossa mulher cozinheira.
 Como faço sempre no penúltimo dia da semana, depois do repasto, vou a casa ver os e-mails no computador, não vá ter recebido algum convite de uma amiga para a noite dos solitários. Abro a página e nada de verdadeiro interesse. Lá estão mais umas dezenas de gajas nuas, que entretanto recebi de vários amigos. Não é que não goste –gosto muito-, mas isto é uma overdose de imagens a excitar a minha imaginação. Parece mesmo provocação. Bem sei que são ofertas aleatórias, mas quem as envia deveria ter em conta o receptor, o seu estado e a sua idade. E porquê? Porque se for um homem descasado de cinquenta e poucos anos, aquelas imagens de deusas nuas, tenrinhas e de formas suculentas, a dançar no Olimpo, servirão apenas para uma pessoa sonhar. Sim, disse bem, sonhar. Eu sempre fui um homem prático e racional. Nunca acreditei nessas larachas de que o amor não escolhe idades. Pois não, se for acompanhado com uma boa conta bancária e, já agora com um carro de boa marca! Mas os meus amigos, quem sabe se para me fazer sofrer, com algum sadismo associado, quase todos os dias me enviam imagens das mulheres que nunca irei ter nos meus braços simplesmente por amor.
 Como passa pouco das 20 horas, ligo o “mensenger”. Quem sabe não encontre conversa com alguém para a noite toda. Esta coisa do “msn” foi uma boa invenção contra a solidão, embora, tenho de confessar, já me chateia um pouco por ser tudo virtual, penso para mim. Não, não está ninguém. Também é mais que certo que ora estarão a jantar, ora se estarão a aprumar, em frente ao espelho, para rumarem a um qualquer salão dançante que lhes sirva de porto de abrigo para ancorarem o seu isolamento.
 Fecho o computador. Como ainda é cedo, vou dar uma volta pelas ruas da cidade e depois vou tomar um digestivo ao meu velho café de todos os dias. Sinto que se fechasse os olhos, como piloto automático, percorreria qualquer canto, recanto, rua estreita e viela e iria dar ao meu companheiro de acolhimento, que, como baluarte contra a segregação social, mesmo quando os restantes cafés de tertúlia já há muito cerraram portas, este meu camarada de solidão, teima em permanecer de pé, no meio do centro histórico, como vigilante, e a abraçar os deserdados da sorte e filhos de lares desfeitos.
 As ruas estão desertas, aqui e ali uma montra apagada parece concorrer para o meu estado de espírito balançante. Quase não se vê vivalma. Aliás, lá ao fundo, na cortada da Rua do Volta Atrás, dois gatos, um preto e um branco, disputam um saco de lixo deitado fora do contentor.
Entro no café, está quase vazio de tudo. De gentes ruidosas, que mesmo que nos firam os tímpanos, nos fazem companhia sem o saber. Daquele ruído fantástico que antigamente tanto se ouvia nos cafés: “sai uma bica, um galão, uma torrada”. Logo a seguir vinha outro empregado de mesa: “saem cinco, uma é curta, um é garoto e outra é limão!”. Estes refrãos eram sempre acompanhados de uma música sempre no mesmo tom de Si menor, saídos dos pires do café a bater uns nos outros, e manuseados pelo experiente empregado do balcão. Mas ali não se ouvia nada. Só o silêncio parecia ser demasiado incomodativo para os meus ouvidos.
Olhei o relógio. Faltava um quarto para as 21 horas. Vou mas é ao cinema. Para um solitário, como eu, um filme ao Sábado é o ressurgir da expectativa. Quando todos os sonhos possíveis de materialização parecem abandonar-nos, durante duas horas, uma boa fita –quando se tem sorte- é uma viagem à terra da esperança. Uma boa película é um contributo para a nossa cultura educacional. É um alimento espiritual para a nossa alma. Não sei se é por estar no último terço da vida, mas a verdade é que muitas vezes, sem o conseguir conter, choro durante uma cena mais sentida.
Estou então perante o cardápio de filmes. Dos cerca de uma dúzia em exibição, não me restam muitas escolhas: já os vi quase todos. Bom, se calhar, vou ter de optar por uma história de guerra. Não é que o tema me interesse muito. Preferia uma boa comédia que me fizesse rir. Mas, perante os cartazes, não me resta outra escolha: vou ver o “Líbano”. Como venceu o leão de ouro em Veneza, e um dos principais prémios do cinema mundial, pode ser que tenha sorte e aumente o meu conhecimento sobre a invasão de Israel sobre aquele país no início da década de 1980.
 Não gostei muito. Toda a acção é passada dentro de um tanque de soldados israelitas. Sem dúvida que, como sempre, se aprende alguma coisa e, no caso presente, o lado psicológico e antropológico do ser humano, em cenário de guerra, emerge. Mas saí com um travo de frustração. Hoje, neste Sábado, não é mesmo o meu dia. A minha sorte, como andorinha à procura de clima quente, abandonou-me definitivamente.
Ainda não é meia-noite, e, sinceramente, para além de não gostar de me deitar embrulhado em laivos de desapontamento, também não me apetece ir para casa. Não é por nada, mas se uma pessoa for exuberante, com o ego em cima, parece que todos os móveis dançam com a nossa alegria, se vamos maldispostos, dá-se o contrário: parece até que as madeiras adivinham o nosso estado de espírito e não param de nos matraquear com aqueles estalidos a ecoarem no silêncio da nossa solidão. Parece uma orquestra afinada no caos, em que a desafinação concertada parece criar uma ordem pré-estabelecida.
 Vou mas é até à discoteca. Pelo menos vou curtir um som de música. Por acaso até gosto muito de dançar. Até pelo aforismo, sendo eu pequeno, como diz o povo, “homem pequenino ou velhaco ou dançarino!”. Vendo bem, se calhar sou um pouco dos dois. Sim porque um homem não pode ser totalmente sério. A seriedade é uma falácia que embala a cultura ocidental, com mais intensidade no último milénio. O homem, literalmente falando, será sempre o resultado dos dois adjectivos.
Gosto de ir a um salão de dança. É o sítio mais extraordinário para se apreciar o género humano. É fantástico o poder de transformação das pessoas. Numa pista de dança o adolescente faz-se adulto, a pessoa de meia-idade transforma-se em miúdo traquina e o velho careca, a mastigar chiclete, a encolher a barriga, de t-shirt atada no pescoço, julga-se um trintão sedutor.
Gosto de me encostar na barricada e, como máquina de filmar, registar todos os passos, todos os sorrisos, todos os toques que sobressaem daquela amálgama de gente. Apesar de estar só, tenho a minha auto-estima muito acima da “red line”. Sempre me considerei pragmático. Não embarco em cruzeiros de ilusão. Talvez, bem no fundo, provavelmente tornei-me cínico. Olho para aquela gente a manusear-se na roda e penso para mim como são idiotas. Olho aquele velho –deve ter à vontade 65 anos- a dançar com aquela rapariga de pouco mais de trinta. A figura que o homem faz. Não posso deixar de sorrir de gozo. Quer fundir-se completamente com o corpo feminino. Quer entrar dentro dela. Com o rabo completamente enfiado nas partes baixas da mulher, o homem faz uma figura ridícula.
E aquele par ali ao lado. É pá que giro! Ele deve ter cinquenta e poucos, ela…bem, o contador deveria ter parado nos cinquenta. Perante tanta necessidade de aparentar menos idade, de certeza absoluta que o calculador se recusou a continuar a contabilizar mais primaveras. Cabelo bem arranjado para o efeito, uma blusa com um grande decote em “V”, a mostrar um generoso colo, que terminava numa cintura apertadinha até ao extremo. Por momentos, imaginei o sofrimento daquelas carnes flácidas. A cobrir umas pernas razoavelmente torneadas, umas meias de rede provocavam os olhares masculinos. Por cima, como parra a cobrir o sexo de Eva, uma pequena saia de ganga mostrava uma coxa rechonchuda.
 Foi então que aquele olhar verde se cruzou no meu campo examinador. Ela estava sentada numa mesa não muito longe de mim. Pelo que me apercebi, de caçador passei a caçado. Certamente que há muito que era observado pela dama de preto. No princípio não liguei, mas, com o passar do primeiro impacto, comecei a sentir o seu olhar cravado nas minhas costas.
E, é claro, mesmo um tipo seguro como eu, um homem não é de pau! Aos poucos fui aceitando o seu assédio continuado. Volta e meia, provocadoramente, olhava-a fixamente nos olhos e percorria, centímetro a centímetro todo o seu corpo. E que anatomia, meu Deus! Não deveriam existir moldes assim de beleza para tentarem pobres almas como eu.
Aos poucos, encostado no balancim que rodeava a pista de dança, começou a travar-se uma estranha luta interior entre o meu lado racional e o meu ser pecaminoso e ardente de desejo. Na minha mente, como folha a bater na vidraça em dia de forte vendaval, uma voz avisava-me: “não vás! Cuidado, afasta-te desta mulher. Ela é o diabo em figura de gente!”.
 Mas o meu lado “engatatão”, de macho-latino, falou mais forte. E depressa estava nos meus braços, ou melhor, eu é que estava nos seus braços. Estava simplesmente a cumprir o seu desígnio. Quando a orquestra tocou “beija-me, beija-me muito! Como se fosse esta noite a última vez!”. Foi então que me perdi completamente naquele corpo de frémito e desejo. Ela parecia quer enterrar-se totalmente no meu –mentalmente pensava na figura que deveria estar a fazer e tão igual a outros que criticava. Eu sentia-me um pião a rodar sob controlo desta mulher. Era ela que ora me lançava contra os seus seios duros, ora me afastava para marcar as fronteiras da posse.
 Comecei a perder as estribeiras. Vá lá, que a coisa até se estava a compor. E eu que pensei que estava em dia não. Afinal era a minha noite.
 Quando os fluidos já transbordavam de incontrolável desejo, e pareciam palpáveis ao olhar do mais abstruso insensível, fomos para o Motel na berma da estrada.
 Aquela mulher, aquela Vénus de Milo, fez de mim o que bem quis. A verdade é que eu que, até me julgava viajado, nunca como desta vez tinha ido até ao céu. Nunca conhecera um paraíso assim de estrelas cintilantes de luxúria e luas libidinosas, emoldurado num sol lânguido e envolvente. Depois de horas em êxtase, como se tivesse sido hipnotizado, levantei-me e fui à casa-de-banho. Quando regressei tinha um copo de champanhe à minha espera. Bebemos. Progressivamente fui-me sentindo um pouco tonto. Também não era de estranhar, há mais de duas horas que travávamos luta corpo-a-corpo, e depressa adormeci profundamente como um anjo embalado em música celestial.
 De manhã, quando acordei, a minha deusa encantada em mariposa de volúpia havia desaparecido. Com ela desaparecera a minha carteira. Não pude deixar de sorrir. Todos os homens são patetas…

2 comentários:

Sónia da Veiga disse...

Mesmo sem "pedido", sai uma história altamente fresquinha!!!

E o "artista" é melhor que mestre tântrico!!! Pena foi a carteira... ;D

LUIS FERNANDES disse...

Olá, Sónia. Então por onde anda a menina, que não tem escrito nada?
Vamos lá! Eu estou à espera de mais histórias e outros textos "altamente".
Abraço e obrigada, amiga.