Há dias, a pedido dos filhos, fui chamado para avaliar os bens deixados em herança de um casal que deixara o mundo dos vivos houvera pouco tempo. Afinal, para mim, nem era nada de novo. Há tantos anos que faço isto. Neste caso havia uma diferença: eu conhecera muito bem estas pessoas.
Ao longo dos anos, muitas vezes, ao mexer nas coisas que foram íntimas de pessoas que não conheci, eu me sentira uma espécie de abutre. É como se estivesse a esventrar segredos, que apesar de já não pertencerem a esta vida devem merecer todo o respeito de quem fica. Numa casa de quem parte fica tudo. Ficam as cartas de namoro, os objectos coleccionados durante anos com amor, as revistas e livros pornográficos escondidos do homem, aquele quadro pintado a óleo que lembrava uma paisagem da aldeia onde se nasceu e se passou a infância. E, tantas vezes, até dezenas de fotos de momentos únicos, que deveriam merecer obrigatoriamente o respeito dos filhos descendentes, jazem no chão ao abandono.
Os mais novos, que ficam, raramente se preocupam com a memória de quem parte. O que interessa é o “quanto vale isto? E aquilo? Só tem esse valor? Mas o meu pai, em vida, dizia que era uma peça muito rara? Ora bolas! E nós a pensar que os velhos nos tinham deixado qualquer coisa de valor, e, afinal, é só porcarias!”-exclamam, sem qualquer pudor. Mal saberão estes filhos da abastança o quanto sacrifício terão passado os seus progenitores para adquirir a prestações “aquelas porcarias”, que descrevem com desdém. Ainda bem que depois de morrermos tudo acaba. Se um pai, hipoteticamente, voltasse e se apercebesse do profundo desrespeito que a sua vida, a sua memória, mereceu, certamente, preferiria morrer outra vez.
Engraçado, sem graça, é quanto mais novos são os descendentes menos apegados à memória dos pais estão. Não se importam com nada. O que interessa é transformar em dinheiro seja o que for. Pouco importa que naqueles objectos esteja a vida de quem os usufruiu, o espírito, as alegrias e tristezas de quem os partilhou.
Faço parte de uma geração que pouco teve na infância –nasci em 1956. Nem sequer o básico, aquilo que seria elementar ao saudável crescimento de uma criança. Fosse por esse motivo, ou outro qualquer, a verdade é que tivemos de comprar tudo com esforço e suor, desde a nossa própria educação até ao conhecimento. Foi a experiência empírica que nos formou. Uma parte desta minha geração trabalhou noite e dia para conseguir ter uma vida digna, e, sobretudo, que permitisse dar um modo de viver melhor aos seus filhos. Esta geração de 1940/1950, nunca teve subsídios para nada, foi tudo a pulso. Quantos sapos engolidos. Quantos contorcionismos fomos obrigados a executar para conquistar uma vontade. A miséria, o medo de cair nesse inferno, foi sempre o nosso maior temor. O nosso calcanhar de Aquiles.
Como estávamos tão traumatizados pela existência que tivemos, gravada a fogo na memória, demos tudo aos nossos filhos. Apostámos neles como se o fizéssemos em nós próprios, como se tentássemos, neles, numa espécie de catarse, emendar a mão, ressarcindo-nos de algo que não fôramos culpados. Ao dar-lhes aqueles brinquedos era como se nós, ao mesmo tempo, fôssemos o doador e o adquirente. Ainda me lembro há trinta anos do prazer que eu sentia ao comprar um lego ou outro qualquer brinquedo aos meus filhos. Ainda me lembro das lágrimas que inundaram os meus olhos, na alegria que senti, quando a minha filha entrou para a Universidade. Enfim! Tenho de ficar por aqui nestas memórias.
A verdade é que esta geração que criámos, dando tudo, material e emocionalmente, é uma linhagem desligada de quase tudo. Sobretudo dos bens materiais. Querem é dinheiro para gozar a vida. Até nem estará mal, o problema é que são pouco imaginativos para o conseguir através de esforço e trabalho. Felizmente que há excepções, é verdade.
Elevam Epicuro e o “carp diem” como religião. O que conta é o prazer total em detrimento da transpiração.
Claro que se me perguntarem se eles estão totalmente errados, não tenho dúvida em responder que nem tanto. Eles estão mais certos do que parece. Ainda bem que não são como nós, a “geração Sanduíche”. Mesmo assim, nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Um bocadinho de respeito pelos objectos e pelas nossas memórias não lhes ficaria mal.
“Filho és, pai serás. Como assim fizeres, assim receberás”, diz o povo na sua eterna sabedoria.
Se você chegou até aqui, aposto que está a pensar: “coitado, está mesmo velho. Só pode!”.
Sem comentários:
Enviar um comentário