domingo, 11 de fevereiro de 2024

25 DE ABRIL, 50 ANOS DEPOIS

 

(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)





Almerindo Oliveira, num daqueles dias em que tudo parece pardo e desvirtuado, sentiu-se nostálgico. Fosse pelo peso das suas 65 primaveras, e prestes a entrar na reforma, sem penalização. Fosse pela maldita barriga que, mesmo comendo pouco, teimava em não abater. Fosse pela enorme clareira que dividia a sua cabeça num campo de aviação para animais voadores e duas margens densas para nidificar a caspa, a verdade é que as constantes manifestações de classes profissionais ocorridas no último ano, tem-no deixado apreensivo.

Reivindica-se trabalhar menos horas e auferir maior ordenado; pede-se que o Governo acabe com o IMI, Imposto Municipal sobre Imóveis, e Imposto de Selo. Em contrapartida, que se construa mais largos milhares de habitações sociais, e passe a ser o pai espiritual de milhões de filhos de pai incógnito; reclama-se o aumento desenfreado para os aposentados com reformas baixas– mesmo para quem não descontou. Muitos contribuintes, jovens e menos novos, viram descer até ao gratuito o custo dos passes sociais e descidas nos escalões de IRS – mas é pouco e querem muito mais, como, exemplo, a gratuitidade de propinas universitárias. Requer-se a baixa de IVA para todos sectores da actividade económica.

O Serviço Nacional de Saúde (SNS), depois de classificado como excelente, bestial, durante a pandemia em 2020/2021/2022, de repente, num virar de página, como se uma nova pandemia social maléfica se instalasse, as denunciadas falta de médicos e filas para marcar uma consulta passam a constituir abertura de telejornais diariamente. Os professores, mesmo com a razão que lhes assiste, liderados – ou instrumentalizados - por vários sindicatos, contribuem para o caos. Com os tribunais atulhados de processos em atraso vergonhoso, os oficiais de justiça fazem greve a exigirem novos aumentos.

Com um Presidente da República mais interessado em concentrar o olhar nos índices de popularidade e o Ministério Público acutilante e actuante, transformado em Deus omnipresente e vingador, o Governo, com casos suspeitos e outros insuspeitos, caiu nas suas malhas e o Primeiro-ministro, António Costa, de um pedestal de estrela brilhante, caiu, resignou e passou a gestor de um executivo em coma de apagamento.

Alegadamente, assente num erro discriminatório no aumento de uma ramificação policial pelo Conselho de Ministros, os restantes responsáveis pelos vários ramos de segurança, PSP, GNR, Guardas Prisionais e Agentes da Polícia Municipal, mesmo sabendo que o Governo, em modos limitados de Gestão, não pode assumir compromissos para o futuro que onerem o país, fazem uso de baixas médicas fraudulentas para faltar a compromissos inadiáveis e tomam a rua como centro de anarquia, lançam o medo e a insegurança. Numa mimética comprometedora, os Bombeiros Sapadores entram no cortejo reivindicativo dos subsídios de risco.

Os agricultores, depois de décadas de exploração pelo grande comércio nacional e deixados pisar por normas concorrenciais ultrajantes exaradas pela Comunidade Europeia, perante o ruído devastador dos rurais franceses, decidem acordar agora, precisamente, quando o Governo pouco pode fazer.

Em casa onde não há pão, todos ralham e nenhum tem razão.

No próximo 10 de Março, perante 8 candidatos a primeiro-ministro sem cadastro, sem bússola ideológica onde o que conta é o assédio eleitoral sem limites, e sem provas dadas que garantam confiança governativa, vamos ter eleições legislativas.

Como se de um “complot” se tratasse, um plano cúmplice maquiavélico a conduzir em direcção à tragédia, parece tudo muito estranho.

A trabalhar desde criança, Almerindo, filho de pais humildes, não pode estudar em tempo útil, mas, mesmo assim, apanhando o comboio das letras de noite e trabalhando durante o dia, tirou o curso de TOC, Técnico Oficial de Contas. Subindo a pulso no escalão social, conseguiu entrar nos quadros da função pública e tornar-se “manga de alpaca”.

Desde que se lembra e até hoje, sempre teve dois empregos, um a servir o patrão Estado até meio da tarde e o restante, até altas horas, a fazer contabilidade em pequenas e médias empresas. O sacrifício familiar foi uma constante sem precedentes em toda a sua vida de marido, pai e avô.

Desde a modesta casa até ao mais que rodado velhinho Fiat Punto, de 1984, tudo fora adquirido a prestações. Numa graça sem limites, no meio de uma gargalhada, diz que a sua maior alegria é a liquidação da última prestação.

Como se numa catarse, uma libertação de sentimentos ou emoções reprimidas, tivesse necessidade de se embrenhar no passado distante, tão longe, por se esfumar nas trevas da memória, e tão perto, por o tempo, marcado a ferros e parecer que foi ontem, passar a correr.

50 anos depois de 1974, aceita sem rebuço que a vida quotidiana dos portugueses melhorou muito. Mas nunca chegará ao ponto de ser perfeita.

Contudo, não podemos esquecer que o Estado Social não dá nada sem que antecipadamente tenha recebido. Ou seja, numa justeza equilibrada, é um distribuidor que, com divisão coerente evita uma discrepância social entre os que mais têm e os menos bafejados pela sorte.

Embora compreenda que o dissenso social é o motor do desenvolvimento, Almerindo, perante a sua longa experiência de vida, trabalhosa e difícil, custa-lhe entender tanta exigência ao Estado. Se todos queremos legitimamente auspiciar uma vida melhor, naturalmente, devemos ser serventes do Estado Social.

sábado, 10 de fevereiro de 2024

MEALHADA: O ÚLTIMO DIA DO MERCADO DE SANT’ANA





O relógio da torre sineira da igreja matriz da Mealhada terminou há pouco de bater a última das doze badaladas. O tempo, como se indeciso entre o rir e o chorar e a oscilar entre dois polos, ora intermediava entre um sol brilhante e radioso e uma chuva copiosa.

O senhor Ventura, com o interior da caixa-aberta da sua camioneta repleta de caixas de madeira, preparava-se para abandonar o Mercado de Sant’Ana pela última vez. Esta popular praça, de roupas novas e usadas, calçado, árvores fruteiras, aves de criação, carnes vermelhas e brancas, sementes e hortícolas encerrava definitivamente hoje, 10 de Fevereiro de 2024.

Durante as últimas três décadas, impreterivelmente, pelas sete da matina de um qualquer Sábado, gelado ou tórrido, o comerciante de frutas e hortaliças marcou presença e, como fazendo parte integrante de um coro em notas musicais desafinado, com os pregões brejeiros e de assédio, ajudou a tornar aquele espaço, onde a ruralidade franca, com o calão, o palavrão e o vitupério, numa miscelânea de cores variadas, misturada com a “finesse” citadina, se torna encantadora. Como se um território neutral se tratasse, numa paz orgânica, tolerante e apaziguadora, ali, numa amizade cimentada nas diferenças de cada um, num caldinho multicultural, conviveram vendedores de etnia cigana, negros, e homens e mulheres de todas as cores.

Com a mão esquerda na manete da porta do automóvel, o pé do mesmo lado no patim e o direito na terra batida e esburacada pelo calcar das máquinas e carroças de duas rodas, o comerciante de frutas e leguminosas, com um olhar apagado e tristonho, com a mesma nostalgia de quem se despede de um amigo que parte para sempre, aparentando não ter qualquer pressa, parecia amarrado e adormecido perante a paisagem que se estendia à frente dos seus olhos.

Não era uma bela vista paradisíaca, daquelas metafóricas pinturas materializadas que transcende a realidade e faz bem à alma de qualquer um carecente. Pelo contrário, numa imensidão de chapas de folhas onduladas meio retorcidas a proteger parcialmente das intempéries e da canícula e suportadas por barras de ferro enferrujadas a fazer lembrar uma imagem terceiro-mundista, era um cenário de extrema pobreza visual.

Com o motor a ronronar, como se de um gato se tratasse, parecia que o “bicho”, sem respeito pelo sentimento de solenidade do momento, aguardava o par de mãos do dono para se pôr a andar dali para fora. Mas o homem, como se estivesse pregado com cimento àquele chão pleno de crateras, teimava em não dar acordo de si.

Só quem sente abruptamente o corte de qualquer coisa, um hábito, uma rotina, que se colou a nós e, como revigorante, nos ajuda a encarar o dia e a ser o que somos, consegue compreender o sofrimento do desaparecimento de algo que morre, ou desaparece, e perceber a lágrima solitária e furtiva que se soltou daqueles olhos cansados.

Mas, foi emoção de um momento. Segundos ou minutos, ou coisa que o valha. O som estridente de uma buzina acordou o senhor Ventura daquele longo torpor.

No próximo Sábado estará novamente pronto a atender os seus muitos fregueses na nova infra-estrutura comercial.


O NOVO MERCADO ABRE NO PRÓXIMO DIA 17


Depois de 115 anos a servir a população, entre o provisório e o definitivo, o Mercado de Sant’Ana fecha a última página de uma história que dava um livro. O terreno, onde funcionou mais de um século e está englobado no átrio da Capela com o mesmo nome, é propriedade da Santa Casa da Misericórdia da Mealhada. Alegadamente, destina-se à construção de novas valências sociais, como lar de terceira-idade, a desenvolver por conta da Irmandade mealhadense.