quarta-feira, 13 de julho de 2011

RETALHOS DA VIDA DE UMA CENTENÁRIA




                                                    I

 Decorria o ano de 1911. Mal tinha sido anunciado ao povo a morte de Dona Maria Pia, a 6 de Julho, quando no dia seguinte, a 7, no subúrbio da Vila da Sertã, na aldeia de Pembas, nascia Piedade de Jesus Martins. Até parecia que o aforismo popular estava presente: “Rainha deposta, mulher de armas posta!”
Filha de Manuel Fernandes da Silva e Maria de Jesus Martins teve a ventura de os seus progenitores serem de condição económica muito favorável. Por parte materna, era neta de um dos maiores morgados das redondezas. O seu avô Martins, pessoa de avultados haveres, era, para além da riqueza material, um nobre de elevado carácter.
O casamento de sua mãe com seu pai Manuel, homem trabalhador, sábio e muito exigente na sua profissão de marceneiro-entalhador, veio a resultar um rancho de seis herdeiros. Piedade foi a quinta de uma prole já considerável.
Este “metier”, hoje em vias de desaparecimento, para Manuel não tinha segredos. Esculpia a escopro-lima e martelo as mais belas peças de arte que alguma vez o país vira. Das suas mãos de artífice tão depressa saía um altar com anjos serafins a tocar trompeta como uma porta almofadada, ou um tecto laborioso em quadrados de madeira para as casas dos mais abastados da vila. O mestre, como era designado pelos seus empregados e discípulos que com ele aprenderam, era muito rigoroso nas suas obras e, sobretudo nas suas atitudes. Como bandeira de afirmação, entendia que sendo perito deveria constituir um exemplo para todos com quem ele privava.
Mas nesta família, onde a fartura abundava e o dinheiro nunca faltava, Deus pregou uma partida. Uma tragédia desabou naquele lar que parecia ter tudo para ser feliz. A peste Pneumónica evitou que Piedade conhecesse o seu sétimo irmão. Sua mãe Maria de Jesus, grávida, foi levada para os braços do Senhor por esta maléfica epidemia negra e que dizimou na Europa de 1920 milhares de pessoas.
O desaparecimento da mãe de Piedade teve naquele lar o mesmo efeito de uma bomba de neutrões. Como o seu pai tinha compromissos de trabalho por todo o país, e a muitas centenas de quilómetros da aldeia, obrigava-o a ausentar-se largos meses. Ora pela falta da mãe, não havendo alternativa, a solução foi distribuir todas as crianças pelas casas abastadas dos tios.
Piedade, então com 5 anos, vai assim calhar a casa de seu tio Simão, que morava numa povoação a pequena distância. Apesar destes seus familiares já terem quatro filhos, a nova ocupante daquela casa farta foi recebida como igual a todos os outros.
O tempo foi passando, a miúda foi crescendo, e, entretanto o pai Manuel Silva, com 46 anos, voltou a casar na vila de Sertã com uma senhora viúva já com dois filhos, um advogado e uma menina de três anos. Manuel viria a criar esta criança como se fosse carne da sua carne.

                                                     II

 Piedade está uma graça de mulher feita. Fez 18 anos e o pai, sem quê nem para quê, resolveu resgatá-la ao seu tio Simão.
No princípio ficou contente, afinal, como em conto de final feliz, iria juntar-se ao laço do seu coração. Que importava se iria conviver com a madrasta e com uma meia-irmã? Pai é pai. É cordão umbilical que liga a nossa existência à essência do nosso ser.
Mas depressa o seu sonho se transformou em pesadelo. Ao contrário do que esperava, entrara nesta nova casa não por ser filha legítima e de abraços renegados em tempo de menina, mas sim para trabalhar na lida da casa, ir para as hortas dirigir o pessoal e laborar com transpiração mostrando a sua força braçal.
Algumas vezes, em pensamentos perdidos no grasnar do Corvo, lá longe no pinheiro manso, dava por si em pensar na sua desdita. Perdeu a mãe e todo o seu amor que lhe aconchegava a alma, perdeu de vista, tanto tempo, uma eternidade, o pai –quantas noites acordadas, tendo por companhia o silêncio, sonhara com o reencontro paternal? Quantas novelas de cordel engendrara na sua cabeça? E para quê? Para agora estar transformada em serviçal de sol a sol? Nesta casa, que fora a Lua dos seus poemas em pensamentos, levava uma vida escrava de trabalho. Durante o dia mondava nas leiras ao lado de outros trabalhadores. Quando chegava a casa, à noitinha, estafada em retalhos de cansaço, ainda ia esfregar o chão, dar comida aos animais, encher o cântaro de barro na fonte e fazer o jantar para todos.
Deus era o seu confidente nas muitas longas noites de angústia. Imensas interrogações Lhe colocava: “que mal fizera para merecer triste sorte assim?”
Mas o Senhor se nunca lhe respondeu também seria mais que certo não dormir e, como sempre, escreve por linhas tortas. É como se testasse a capacidade de sofrimento de cada um de nós.
Sem que nada fizesse, porque no coração não se manda, enamorou-se completamente de um rapaz bem parecido da terra, humilde e filho de boas famílias, o Luís Filipe.
Azar de Piedade, que sem maldade, escolhera quem já estava prometido para a sua meia-irmã. Quando o pai se apercebeu de troca de olhares embevecidos entre os dois, naquela casa e na aldeia, caiu o Carmo e a Trindade. Só faltaram os sinos da capela tocarem a rebate.
Como aviso de que não se deveria olhar, nem tocar, em partido já legitimado, levou uma valente coça do progenitor que a deixou marcada no corpo e ferida na alma. A coação psicológica e os maus-tratos continuaram sem fim à vista.
Um dia, ao regressar dos campos, encontrou as janelas da casa revestidas com trancas de madeira. Perante aquela imagem de prisioneira em palácio malfadado, Piedade tomou uma decisão: iria fugir para casa de uns seus familiares na aldeia onde nasceu. Naquela prisão não ficaria nem mais uma noite. Tendo o breu como testemunha, a altas horas da madrugada, quando todos dormiam, pé ante pé, atirou-se à vereda e calcorreou o caminho que separava os dois lugares recônditos.
No dia seguinte, na casa das janelas entaipadas, gerou-se o pânico de um fim previsivelmente anunciado. Em grupos de gentes, furaram-se matagais e silvares, arredou-se canaviais, espreitou-se o fundo dos poços de águas paradas.
Durante muitas luas de prata e negrumes de solidão ninguém ouviu falar de Piedade. Apenas uma pessoa sabia desta partida sem despedida e corte com um passado recente, que se queria esquecer, e onde, resguardada dos olhares familiares, esperava o seu amor: Luís Filipe.
Passados tempos, o rapaz saltando o trilho da distância foi ter com a sua amada. Juntos, de mão na mão e sorriso apaixonado, foram falar com os anfitriões da nova família da rapariga e ali mesmo se tratou do enlace há muito a bailar na cabeça dos dois nubentes.
Passaram anos e nunca mais Piedade poisou olhar ou trocou palavra com seu pai.

                                                    III

 Depois do casamento, Piedade e Luís foram viver para casa da mãe deste. Mas “casamento apartamento”, lá dizia o provérbio, e, “hóspede ao fim de três dias enjoa, naturalmente que a relação entre a sogra e a nora começaram azedar como vinho no tonel que não foi trasfegado a tempo e horas.
Compraram então uma casinha mesmo no centro da Vila da Sertã, junto à igreja de Nossa Senhora, com o terreiro do adro e a escola por companhia.
Ali, naquele recanto de encantamento, viveram em harmonia e tiveram quatro filhos. Luís era cabeleireiro e Piedade era o remanso calmo de uma família feliz.
Inesperadamente Piedade cai na cama gravemente doente em ponto de saúde sem retorno. Desenganado pelo médico, Luís chamou o padre-cura para lhe dar a extrema-unção. Preocupado com o que poderia acontecer, chamou os filhos a altas horas da madrugada e, perante a enferma, obrigou-os a ajoelhar e a pedirem perdão. Mas que perdão poderá pedir uma criança de tenra idade, considerando que o mais velho tinha sete anos e o mais novo menos de dois?
Mas Luís, apesar de desesperançado pelo clínico, não se deixou abater e chamou um carro de praça para que a mulher fosse conduzida para um hospital de Lisboa.
Mais uma vez Deus, o omnipotente e omnipresente, esteve a seu lado. Durante 9 meses, divididos entre internamento e ambulatório, Piedade venceu a morte anunciada de véspera.
Mais uma vez, como se a vida fosse uma história repetida e obrigatoriamente calcorreada nos anais dos antecedentes, os filhos de Piedade, pela falta da mãe, são divididos pelos familiares. Esta doença grave, pelo menos, serviu para Manuel Silva, pai de Piedade, se reconciliar com o genro e acolher um dos netos.
Em convalescença, passados então mais de nove meses, a enferma regressa a casa. Os filhos, tal como cadilhos separados da orla de um xaile, retornam à casa-mãe. Mas um deles, com cinco anos de idade, a Maria Isilda, preferiu continuar com os padrinhos. Ou porque sempre seria uma boca a menos para alimentar, ou não, a verdade é que não houve oposição. E Isilda continuou a viver em casa dos seus protegidos de baptismo e a escassos metros do antigo lar de seus pais.
Como tudo é finito, um dia toda a rua foi acordada pelos gritos de Isilda: “o meu pai morreu! Ai, não posso crer que o meu rico pai, Luís Filipe, morreu no Ribatejo!”
Mais uma vez, como se a existência andasse em carris de círculo, a história voltava a querer repetir-se: Piedade estava viúva aos 44 anos.
Continuando a seguir as mesmas linhas anteriormente traçadas, a mulher junta-se a outro homem e este encarrega-se de pôr os miúdos a fazer pela vida. O pai de Piedade, Manuel Silva, mais uma vez corta relações parentais com a filha, mas para todo o sempre. Nem mesmo quando exalou o último suspiro, Silva, se despediu da descendente.
Perante a junção de vida de Piedade com outro homem, os filhos, o mais velho e a mais nova, talvez magoados nos sentimentos, nunca mais se encontraram e deixaram de falar à mãe.
Novamente o destino a marcar o passo, decorridos alguns anos o companheiro de Piedade, partindo desta vida sem demora e ainda novo, em grande aflição, perante a mulher, morre nos braços de Maria Isilda como a pedir-lhe perdão de uma presença curta e sem afecto.
Piedade, mulher austera, sem carinho pelos filhos nem misericórdia, perante os acasos, agora desamparada, emprega-se no hospital da Sertã. Como nunca se afeiçoou aos seus laços consanguíneos é evidente que estes se afastaram também. “Amor com amor se paga”. “Como fizeres a cama assim nela te deitarás”. Ou não? Se calhar não.
Pelo menos Isilda não levou o adágio à letra. Ela sabe e sente que perdoar é o mais nobre sentimento da humanidade.
Piedade vive com esta filha em Coimbra há 39 anos. Isilda sente-se muito feliz por, ao longo destas décadas, ter conseguido ultrapassar o ressabiamento e o desamor de sua mãe.
É com orgulho que refere ter proporcionado uma velhice digna ao que “o berço lhe deu e a vida lhe tirou”. Agradece também a sua filha Ana, neta de Piedade, pelo carinho, pelo desprendimento e sacrifício de futuro esperançado que abdicou para cuidar da sua avó.
Parabéns para Piedade, que comemorou há dias um século de vida! Parabéns a todos pela lição.


MARIA ISILDA FERNANDES
LUÍS FERNANDES

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