quarta-feira, 30 de setembro de 2020

UM OUTONO NA ALDEIA, COMO SEMPRE, NOSTÁLGICO

 

(Imagem da Web)




Assim, como neblina matinal, com passinhos de lã, o Outono, devagar, devagarinho, entrou sorrateiramente e, com toque delicado, empurrou o Verão para o ano que virá.

A chuva grossa e miudinha, como a desejar as boas-vindas a uma estação transitória entre o seco e o molhado, entre o frio e o calor, pareceu sorrir no meio de um riso acabrunhado e taciturno.

Está na hora de repor mais um cobertor na cama, retirar do guarda-roupas e das gavetas das cómodas o vestuário mais encorpado. As meias-mangas e a roupagem de algodão vão hibernar, pelo menos, durante seis meses.

As árvores de sombra, até há pouco totalmente cobertas por ramagem verde, progressivamente, começando no amarelo-torrado, vão ficar despidas para dar lugar ao milagre da substituição.

Começando agora a embalar a trouxa, as andorinhas, as aves lindas dos poetas, percorrendo milhares de quilómetros, preparam a partida para o Norte de África, onde, sem incerteza, o clima quente vai continuar.

Na minha povoação de infância, em Barrô, o tempo corre devagar. Sem a pressa e o ambiente enfadonho da grande cidade, com o citadino a correr para ter tempo para trabalhar e alguma sobra para a família, onde o Sol é apenas sentido por alguns na vertical, a aldeia, ensolarada e estendida transversalmente no espaço, parece transpirar ar-puro, vida, saúde e bem-estar.

Neste 30 de Setembro, quando a tarde cai, calma e serena, e a estrela maior do Universo se prepara para descansar lá longe sobre o mar, vamos encontrar o casal “Manuel” e “Gertrudes” - nomes inventados – de cerca de sessenta anos, a passar o milho no Erguedor, aparelho manual, muito antigo, que serve para limpar o milho das impurezas que o acompanham. Aposentado por ter sido sujeito a varias operações à coluna vertebral por esforçados esforços na terra dura, o “Manel”, a arfar e com o suor a escorrer pela fronte, dá à manivela que, movendo a roda de grandes pás, vai fazer vento e separar o “joio” do fruto.

Gertrudes, que há muitos anos trocou um emprego rotineiro e sem sabor pela lavoura, mais ágil, vai apanhando o fruto amarelo do chão para um balde plástico de vinte litros e vai despejando na boca-aberta da máquina agrícola. Como se fossem polvilhados do Céu, ambos, marido e mulher, estão camuflados pela fuligem.

Como outras jornadas cheiinhas desde há quinze dias para cá, o dia foi extenuante. Começou pelo acordar ao toque de “Avé-marias”, pelas seis e trinta da manhã, na torre-sineira do povoado. Depois de um pequeno-almoço frugal, era preciso aproveitar os raios solares “prometidos” na véspera, na Terça-feira, pelo Instituto Português do Mar e da Atmosfera, para secar o milho na eira. As previsões, consultadas diariamente pelo agricultor, são um instrumento fundamental para projectar a semana. E Quinta-feira vai chover. Não havia tempo a perder para secar, limpar e arrumar os grãos amarelos nas grandes arcas de madeira, herdadas dos ancestrais. Até a sesta, período de descanso após o almoço, sempre cumprida religiosamente, neste dia de grande pressa, não pode ser cumprida. “hoje vamos para a cama cedo, Gertrudes! Estou que nem posso!”, enfatizou Manuel, depois de levar o braço atrás das costas e massajar as cruzes.

Desde há um mês para cá tem sido mesmo uma canseira. Primeiro foi o cortar rente os “canoilhos” onde a massaroca vem agarrada. Depois veio a “descamizada” ou “desfolhada”, ao cair do dia, com a ajuda dos filhos, que laboram na cidade e, ao entardecer, regressam ao domicílio.

A seguir veio o separar o grão do casulo através de uma “malhadeira” mecânica ligada a um tractor, cujo dono é o antigo proprietário do último café que encerrou há meia-dúzia de anos e agora vai ajudando quem precisa dos seus serviços.

Depois, então, vem a fase do secar e arrumar a semente nas arcas para, durante os meses de carestia de pasto, poder servir de alimento aos animais ali ao lado, e que, num berrar sintonizado, clamam por atenção.

E sem darmos por isso, o crepúsculo, ao ralenti, foi-se instalando vagarosamente. O milho está todo arrumado. Amanhã já pode chover à vontade. A Gertrudes foi fazer o jantar. São agora 19h30 – só de pensar que ainda há um mês atrás a claridade se estendia até às 21h30 dá um arrepio de saudade, pensa para com seus botões o filho da terra.

As luzes públicas, que iluminam o negro alcatrão, como a anunciar a chegada, começam a piscar.

Como o jantar é sempre às oito (20h00), vai dar o seu costumado passeio para arejar as ideias. A passo cadenciado, reflectindo na vida e dando por acabado que a existência é demasiado curta para perder farrapinhos ou bocadinhos com coisinhas de nada, “Manuel” encaminha-se para a ribeira a uma centena de metros do velho campanário. Apesar da noite estar a estender o seu manto, no antigo lavadouro colectivo, ainda se encontra a lavar uns panos a mulher mais idosa da localidade. Com um meio-sorriso de saudação e a pergunta rectórica “ainda? Olhe que são quase oito”, o pensador caminhou mais vinte passos para frente, em direcção ao velho moinho, na margem da ribeira e agora abandonado como coisa imprestável e sem valor.

A velha represa comunitária, cuja água, durante os meses de canícula, serviu para regar o “Barreiro”, a horta, o celeiro da aldeia, está agora vazia. Por obrigação legal ligada a velhos hábitos de antanho, anualmente, em 30 de Setembro devem ser retiradas as comportas e liberada a água.

Por momentos, a planar sobre pensamentos retrospectivos, mesmo com o breu implantado, comparou ali a vida há dias atrás, com o coaxar das rãs e dos sapos, e agora, com o silêncio do fundo vazio, uma pequena regueira de água rodeada de lama teimava em caminhar para o mar.

Manuel”, olhando o Céu sem estrelas, deixou escapar: “Amanhã vai chover! Não se enganaram não...




terça-feira, 29 de setembro de 2020

A DESPEDIDA DO PROGRAMA PRÓS E CONTRAS

 



Depois de 18 anos em cena, passou ontem na RTP1 o último “Prós e Contras” apresentado por Fátima Campos Ferreira.

Sendo um programa de debate de elevada qualidade, que ao longo de tantos anos ajudou o público/telespectador a perceber certas decisões administrativas e políticas, não me parece acertado a televisão do Estado acabar com um projecto, único, que sempre teve elevada audiência.

Pelo que se consta, ao que parece a apresentadora vai transitar para outro modelo mais simplificado. Mas, mesmo assim, não haveria outro profissional que a pudesse substituir?

Será que a 5 de Outubro, em sua representação, para nos fazer cada vez mais brutos, quer impingir-nos mais telenovelas, em cima de telenovelas, como o que se passa nos canais privados?

Nem sempre reconheci a Fátima Campos Ferreira a imparcialidade desejada em todos os programas, mas, admito, que possa ter sido um erro meu, ou, não sendo, aceito como lapso admissível. No entanto, tal como foi ontem dito por várias personalidades, retiro-lhe o chapéu e curvo-me à sua competência na forma bem informada como sempre se apresentou às Segundas-feiras em nossas casas.

Uma pena a RTP1 ter decidido assim. Enfim...


quarta-feira, 23 de setembro de 2020

O TRABALHO CAMARÁRIO OFERECIDO A NÉ LADEIRAS





1 – Hoje, na Câmara Municipal de Coimbra (página não oficial), deu à estampa um apregoado “Postal do Dia”, espécie de carta-aberta, uma publicação assinada por Luís Osório, respeitado jornalista, dirigida ao Presidente da Câmara Municipal de Coimbra, Manuel Machado.

O “Postal começa por trazer à liça o “drama” de Né Ladeiras, reconhecida cantora conimbricense que fez parte dos grupos Banda do Casaco e Brigada Vitor Jara. Para além disso, colaborou com outras bandas e fez carreira a solo.

Há cerca de um mês, Ladeiras publicou no Facebook uma carta onde, com coragem, dava a conhecer as enormes dificuldades económicas porque estava a passar. Referia, nomeadamente, que, depois de ter perdido a voz, já tinha trabalhado em vários empregos, como a servir à mesa num restaurante. Dizia que, incluindo o dono do estabelecimento, não lhe pagaram a sua prestação. Com alguma lucidez, pedia que lhe arranjassem qualquer coisa. Que estava disposta a tudo (estou a citar de memória).


2 – Segundo reza o “Postal” de Luís Osório, pelos vistos, em face do apelo divulgado, o presidente da Câmara Municipal de Coimbra, Manuel Machado, remeteu-lhe “um convite, ao que sei, para limpar a merda das casas de banho e vigiar alunos no IGAP” (Instituto de Gestão e Administração Pública?).

Continuando a citar o “Postal”, “Não estou a desvalorizar o trabalho de quem o faz. Uma pessoa não perde a dignidade por limpar casas de banho, ser caixa de supermercado ou limpar as casas dos outros.

Muito pelo contrário.

Mas sabem… as pessoas têm o seu percurso. E no seu percurso vão acumulando experiências que podem ser úteis noutras áreas.

Não haveria na Câmara de Coimbra, na área cultural, um lugarzinho onde a Né Ladeiras pudesse caber?” - interroga Luís Osório.


3 – Não posso deixar de recordar que em 2016, falando pessoalmente com um vereador e através do blogue, lancei um apelo à Câmara Municipal de Coimbra para um ex-arrumador no Estádio Universitário, José Ferreira da Costa, homem demais conhecido pela sua atenção e bonomia. O Costa, a trabalhar no Cemitério da Conchada como coveiro, havia um ano, através de um POC, Programa Ocupacional, promovido entre o IEFP, Instituto de Emprego e Formação Profissional e os Recursos Humanos da autarquia conimbricense, foi pura e simplesmente despedido. Pobre, sem recursos, sem poder voltar ao Estádio Universitário para arrumar carros, porque o espaço entrou em obras, ficou sem rendimentos e a sua condição de precariedade ficou num limbo. A edilidade não quis saber.

Por acaso, um amigo de outras andanças, que gere uma grande instituição na cidade, leu o meu apelo no blogue e, condoído com a situação do Costa, contactou-me para eu lá mandar o ex-coveiro. O Costa foi lá, ficou a contrato durante os últimos anos e hoje, para minha satisfação, está com vínculo efectivo à função pública.


4 – Quero dizer o quê, ao contar o caso do José Costa? Tão só que se em 2016, com o actual executivo, a Câmara não respondeu ao apelo de um cidadão comum - que trabalhava já para si -, e agora, no caso de Né Ladeiras, já ofereceu um trabalho, sem pretender ser irónico, está a melhorar muito. Ou não? Ou foi simplesmente para ficar bem na fotografia? No entanto, mudando a agulha, vou virar o raciocínio…


5 – Por caso Né Ladeiras, pelo facto de ter sido uma artista, merece ser tratada muito acima do vulgar cidadão trabalhador? Onde fica a tão apregoada igualdade de tratamento que todos pugnamos para a generalidade dos cidadãos? Sim defendemos a equidade desde que não sejam nossos amigos -contra mim falo.

Em Lisboa há dezenas ou centenas de artistas a viver das dádivas do Banco Alimentar -é o que noticia a imprensa. A Câmara Municipal lisboeta deve arranjar um “lugarzinho” para todos?

Acho que nestas coisas da amizade há demasiada emoção e pouca racionalidade. Quando vimos um amigo nosso nas redes da miséria ficamos com o olhar turvo. Só assim se pode entender este inusitado postal.

Afinal, ficamos sen perceber: Né Ladeiras quer um trabalho ou um emprego?










domingo, 20 de setembro de 2020

Pierre Bachelet - Histoire d'O ( 1975 )

O OUTONO ESTÁ A CHEGAR

 

(Imagem da Web)





Cai a folha, o Outono bate à porta,

larguem tudo, vá, deixem-no entrar,

olhamos o verão como natureza-morta,

faz-nos velhos, o tempo, põe-nos a chorar,

a paz sentida interior pouco nos conforta,

os cabelos prateados estão a soçobrar,

mais umas rugas na fronte, parecem tortas,

a barriga, mais saliente, tende a aumentar,

os lapsos florescem como grama em horta,

A economia, em queda, começa a preocupar,

o futuro dos vindouros é o que mais importa,

os velhos estão a morrer, isto dá que pensar,

a família está em crise, a prole aborta,

os filhos incógnitos tendem a reforçar,

os jovens, perdidos, já não são a comporta,

os defuntos, sem familiares, vão a sepultar,

recordações de infância é o que nos suporta,

temos ainda confiança na vida que nos restar,

a esperança é dinâmica, como em Lua absorta.


  II


Maldito corona, meu grande ladrão,

roubas a humanidade, cortas no amor,

furtas o sorriso, o beijo, matas a união,

crias o ressentimento, passas a censor,

aos pobres, coitados, retiras-lhe o pão,

tiras a alegria, provocas miséria e dor,

generosamente, ofereces um caixão,

por ser pouco, friamente, dás uma flor,

favoreces todos os ricos, geras inflação,

semeias a morte, pareces um condor,

lá em cima, vês a presa como dragão,

trazes infecção com tremendo horror,

espalhas o medo, a poucos dás a mão,

nem os santos nos valem neste rancor,

és a guerrilha que espalha a destruição,

os políticos, calculistas, rufam o tambor,

cerceiam a liberdade em nome da nação,

geram-nos sofrimento com tanto desamor,

tu serves para tudo, meu grande cabrão!

O Outono está aí, o Verão é um sol-pôr.



sexta-feira, 18 de setembro de 2020

FALECEU O HÉLDER GONÇALVES DA LOJA “COISAS E SABORES”

 



Vítima de doença prolongada, foi ontem a enterrar o Hélder José Almeida Gonçalves, de 62 anos.

O Hélder foi, durante várias décadas, gerente das lojas “Coisas e Sabores”, com frente para a Praça 8 de Maio, e as Ferragens Pinto, já encerrada, na Rua da Louça.

Tanto quanto sei, foi a maldita doença, que o minou nos últimos anos, que o obrigou a largar o comércio definitivamente há cerca de um ano. Com a sua largada forçada a Baixa ficou mais despida de pessoas solidárias e interessadas com o que se passava à sua volta. O Hélder, acima de tudo, era uma pessoa disponível e que, em qualquer momento, se podia contar. Coisa rara, digo eu, nos tempos que correm. Com uma honestidade a toda a prova, era confiável e de grande relaccionamento humano.

Alegadamente, embora devido à maleita que corroía o seu corpo, e a sua partida já estivesse inscrita nas linhas do destino, é sempre um choque brutal sabermos do falecimento de alguém que, para além de estar na meia-idade e ainda tanto ter para dar, conviveu connosco durante muito tempo.

À Ilda Pinto, esposa do Hélder, filhas e restante família, nesta hora tão amargurada em raízes de sofrimento, em meu nome pessoal e da Baixa, se posso escrever assim, os nossos sentidos pêsames. Até sempre, Hélder Gonçalves.


quinta-feira, 17 de setembro de 2020

MEALHADA: O COMBOIO DE MERCADORIAS VAI APITAR DUAS VEZES

(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)


As seis badaladas tinham batido há pouco no campanário da igreja da Mealhada, neste 16 de Setembro. A tarde decorria calma e serena. O Sol lá longe, ainda com uma temperatura elevada para um começo de Outono, como a ajeitar-se para se acomodar parecia gozar a modorra do tempo.

Ti Manel”, aposentado, freguês, munícipe, e acima de tudo cidadão pagador, residente no Travasso, povoação paredes-meias com a capital do bom leitão, preparava-se para transpor a porta envidraçada da Escola Profissional Vasconcelos Lebre, na Mealhada. Com uma leira na zona mais fértil do lugar da freguesia da Vacariça, é daquele horto, herdado de seus pais, que “Ti Manel”, com esforço diário inscrito nas cruzes em bicos de papagaio, retira o seu complemento da reforma miserável. É dali que, apanhando desde os legumes, até às batatas, passando pela fruta, provém praticamente todo o sustento para si e para a sua “Maria”.

Tudo aconteceu há cerca de três meses quando em conversa com o seu vizinho “Anacleto” veio a saber que a denominada Linha da Concordância – um trajecto de pouco mais de três quilómetros – ia tomar-lhe o segundo amor da sua existência – o primeiro é a sua “Maria” -, o seu jardim do Éden. Num primeiro impacto, foi como se apanhasse um brutal murro no estômago. Não sei se vossemecê está a ver. É como se o mundo caísse em cima da nossa cabeça.

Como é possível que esta má notícia não transpirasse mais cedo por entre uma cavadela de enxada, uma sementeira e uma regadela? É certo que, talvez por a vista já lhe faltar, o homem não lê jornais, e muito menos essa coisa dos computadores… ai! Como é que chama? Isso. Isso mesmo: Internet. “Atão” agora é que ia navegar para essa coisa? Porra! Porra! Burro velho não aprende línguas. Em boa verdade, à noite, até vê um coisito do “Jornal da Noite”, da SIC – pelo menos até as pestanas lhe pesarem – mas não se lembra nunca do seu Travasso ser notícia na televisão. Também não se lembra da sua Junta de Freguesia ter promovido uma sessão de esclarecimento para debater o assunto. Por quê tanto secretismo, interrogava o agricultor numa noite de contar carneiros. “Atão” isto faz-se?

Antes de penetrar no antigo estabelecimento municipal de ensino, “Ti Manel” respirou fundo. Afinal, este era o seu baptismo de fogo. Era a primeira vez que ia assistir a uma Assembleia Municipal. Foi então que, sem se fazer anunciado, um “galaró”, erguendo a crista, cantou alto e forte nas redondezas.

Como se fosse pouco o símbolo do azar, um gato preto, esbaforido como se levasse fogo no rabo, passou ao seu lado. “Mau Maria”, isto tem tudo para correr mal. Fosca-se! Abrenúncio! Vade rectro, Satanás! Pensou “Ti Manel” em solilóquio com seus botões. Enfiou a “focinheira” por causa do vírus, entrou e foi absorvido pela luz artificial do interior da escola.


UM DEBATE (DES)INTERESSANTE COM O PÚBLICO


A sala onde ia haver o encontro era como um anfiteatro, muitas cadeiras inclinadas para a frente e, num plano superior, uma espécie de palco. Em cima deste pódio, cerca de uma dúzia de pessoas. Entre vereadores estava o presidente da Câmara, Rui Marqueiro, e a presidente da mesa da Assembleia Municipal, Daniela Salgado. Excepto esta senhora, certamente a ver as cotações da bolsa, todos estavam agarrados ao telemóvel.

Cerca das 18h30 deu-se início à Ordem de Trabalhos, com a abertura do Período destinado à Intervenção do Público. Numa atitude condescendente, justa e compreensível, em que o Regimento da Assembleia preconiza trinta minutos, a presidente da mesa permitiu que cerca de dezena e meia de munícipes, tomando a palavra, dissessem de sua justiça durante mais de uma hora. Todos foram contra a passagem da linha por terrenos do Travasso.

Com um ar mordaz, corrosivo e displicente, o presidente da edilidade, sempre absorvido pela atenção do telemóvel, parecendo não estar ali, nem ouvir o que era dito pelo público, ia respondendo a conta-gotas. Através das palavras, mostrou-se resignado e vencido pelo sistema político vigente. Por várias vezes repetiu: “o que quer que eu faça? Eu não posso fazer nada! Não querem a linha? Rejeitem-na! A linha é de interesse nacional. Se todos seguissem o vosso exemplo nunca haveria comboios em Portugal.”

Noutras interpelações, respondeu: “Se me perguntarem sobre se a Infraestuturas de Portugal (IP), vai cumprir? Se tenho a certeza? Honestamente não! Estou aqui porque acredito na boa-fé da IP. Acho que desta vez eles terão muita dificuldade em não cumprir”, enfatizou Marqueiro.

A uma munícipe do Travasso, que acusou o executivo de nada fazer na sua terra, Marqueiro respondeu: “E senhora, fez lá alguma coisa? Fez? Então estamos iguais!” - como se as suas responsabilidades institucionais fossem iguais à da cidadã.


FALA DEPUTADO


O primeiro deputado a intervir foi um eleito do PCP/PEV, para fazer um requerimento à mesa. Com base em que era preciso levar este assunto às pessoas, tratava-se de uma proposta para aprovação do adiamento da Assembleia Municipal para outra data posterior à da Pampilhosa e do Travasso, que irão ocorrer no próximo 18 de Setembro.

Alegadamente, e pelo que foi dito, esta sessão foi marcada a pedido de Marqueiro, por ter de se ausentar, sabendo da existência das duas assembleias de freguesia a ocorrer dois dias depois. Embora a explicação devesse obrigatoriamente ter sido dada pelo presidente da autarquia, numa troca de papéis que não se entendeu muito bem, foi a chefe do hemiciclo que, dando como certa a ausência do edil, tomou a sua defesa e esclareceu o deputado comunista. Relembra-se que a Assembleia Municipal é o órgão fiscalizador do executivo, e não o contrário.

Feita a votação do requerimento apresentado à mesa pelo deputado do PCP, foi chumbada pelos seus pares. De salientar que Claudemiro Semedo, presidente da Junta de Freguesia de Luso, votou a favor do adiamento.


E PROSSEGUE A MARATONA


A seguir falou a deputada eleita pelo Bloco de Esquerda. Numa prosa clara, eloquente e convicta, deu a entender e foi ao fundo da questão, afirmou que Rui Marqueiro era autoritário. Disse também que, ao não convidar outros vereadores para ir a Lisboa à reunião com a IP, o autarca centralizou o problema. Que o líder do executivo agia como se fosse o “dono disto tudo”.

Disse também que a presidente da mesa da Assembleia Municipal, à revelia do plenário, permitiu que, em 17 de Agosto, o ponto da Ordem de Trabalhos fosse retirado sem votação.

Em resposta, Daniela Salgado, presidente da mesa, explicou que, como a reunião tinha sido pedida por Marqueiro, logo, por direito, o requerente poderia anular os pontos que entendesse.

Pergunta-se assim com assim: com esta não-inscrição, que foi e deixou de ser, onde fica o princípio da confiança nos representantes e nas instituições?


E MAIS AINDA…


Uma deputada da Coligação Juntos pelo Concelho da Mealhada reiterou a falta de diálogo entre eleitos e eleitores. Mais: que esta obra não traz emprego, não traz empresas. Pelo contrário, traz destruição à zona fértil do Travasso.

Em resposta, Marqueiro afirmou: “olhe é o azar, o comboio passar lá!”


E AINDA…


Em resposta a outro deputado, o presidente da edilidade mealhadense explicou que a Declaração de Interesse Municipal, conforme a lei, baseia-se no facto da obra se desenrolar em terrenos da Rede Ecológica Nacional.

Continuou Marqueiro, por outro lado, a Declaração de Impacto Ambiental é desnecessária por parte da APA, Agência Portuguesa do Ambiente, por ser inferior a cinco quilómetros (Regime jurídico da Reserva Ecológica Nacional -CCDRC).


E FALOU A PRESIDENTE DE JUNTA DE FREGUESIA DA PAMPILHOSA


Falou a presidente da Junta de Freguesia de Pampilhosa: “as juntas de freguesia da Pampilhosa e da Vacariça apenas estiveram em três momentos com a IP.

O que ganha a nossa população com os adiamentos?

A marcação da nossa Assembleia de Freguesia foi feita antes da Assembleia Municipal. A Junta teve o cuidado de perguntar à Câmara a data da Assembleia Municipal e nada foi dito.

Este não é o tempo para adiar grandes obras!”


E A SEGUIR O PRESIDENTE DA JUNTA DE FREGUESIA DE VACARIÇA


O presidente da Junta de Vacariça, em resumo, disse que estava magoado com o povo do Travasso, com o porquê das suas gentes não se ter colado à Junta. “Ninguém procurou saber o que se passava”.

Reconheço o transtorno com o prejuízo que vão sofrer. Fiquei satisfeito em não ser demolida nenhuma casa.

Vamos fazer fé nas palavras daqueles senhores da IP”, enfatizou o edil.


E OUTRA DEPUTADA


Este projecto é absolutamente fundamental para os tratados de Kyoto e de Paris. Os interesses dos cidadãos vão ser lesados, mas vão ser resolvidos em processos expropriativos.


E FOI A VOTAÇÃO


Com a presidente da mesa da Assembleia a dar início à votação sobre a Linha da Concordância, em que irão passar cerca de sete comboios de cerca de 750 metros e a uma velocidade média de 180 quilómetros por hora, deu-se a votação:


8 votos contra, duas abstenções e 15 votos a favor.


Na mesa da Assembleia alguém suspirou fundo. Apesar de, aparentemente, estar em fim de vida autárquica, mesmo assim, ainda irá ver o comboio apitar duas vezes. Uma pelos lesados, que sem voz e sem representação política, vão constituir as fundações da nova linha. Outra pelo desempenho de alguns políticos locais que vão ficar na história pelos piores motivos.


PORRA! NÃO HAVIA “NEXEXIDADE”


Numa peça tão bem encenada, caiu mal a dramatização, ou melhor, a crispação travada entre Daniela Salgado, a presidente da Mesa da Assembleia Municipal, e Isabel Santiago, deputada da Coligação “Juntos pelo Concelho da Mealhada”. No caso, a deputada é proprietária de um terreno afectado pelas obras da linha, no Travasso. Acontece que, pela legislação, uma lei que é iníqua, porque o legislador não pode prever tudo – e quando assim acontece deve prevalecer o bom-senso, aliás aflorado várias vezes pela chefe da Assembleia – a deputada, se estiver em causa uma votação, por incompatibilidade, não pode participar no sufrágio. Se estiver em causa defender os seus direitos de cidadã, como é o caso, também não pode por ser eleita. Salvo melhor opinião, claramente está em causa a sonegação de direitos constitucionais.

Ora, o que fez a deputada? Pediu a substituição e pretendeu intervir na qualidade de munícipe lesada. Com uma rispidez digna de nota, a mostrar que a dissensão entre as duas mulheres fortes já é a resvalar para a pessoalidade, a maestrina da Assembleia não esteve bem. Tanto falou em bom-senso ao longo de mais de quatro horas, mas, quando o deveria ter empregado, falhou. Que mal trazia à questão em análise se a deputada despejasse o que lhe ia na alma? Seria a sua intervenção capaz de virar o sentido de voto? Nem pensar! Em especulação, o que está em causa é o medo e a necessidade de achincalhar.