sábado, 25 de março de 2023

DIZEM QUE LOGO MUDA A HORA. ORA, ORA! UMA HORA CONTINUA A SER IGUAL!

 






Quando damos por nós, olhamos o espelho
e já não reconhecemos a imagem que nos
aparece reflectida. Parece de alguém muito
chegado, mas só isso.”

Ao que tudo indica, logo à noite, vamos, todos, adiantar os ponteiros do relógio para uma hora à frente –a chamada hora de Verão. Será que valerá a pena cumprir esta tradição anualmente? Ou seja, os proventos serão de tal importância que valham o desarranjo que esta alteração nos provoca no ritmo biológico? O facto de passar a amanhecer mais cedo, e com o alegado de não haver desfasamento na luz solar, justifica o alterar a rotina dos marcadores e controladores do nosso tempo?

Em conformidade com a legislação, a hora legal em Portugal continental:
  • será adiantada de 60 minutos à 1 hora de tempo legal (1 hora UTC) do dia 25 de Março e atrasada de 60 minutos às 2 horas de tempo legal (1 hora UTC) do dia 28 de Outubro.” –retirado da página do Observatório Astronómico de Lisboa

Confesso que gostava de escrever sobre este tema algo sério, mas não sei se sou capaz. É que este costume, a meu ver, intrometido e reaccionário, começa por me dar uma tremenda vontade de rir –lá para o fim do texto dá vontade de chorar.
Não é por nada, mas alguém apresentou um estudo científico a provar a mais-valia para a economia deste dogma? Ao que me parece “tudo começou com Benjamin Franklin, o político e inventor do para-raios e das lentes bifocais. Em 1784, num artigo publicado num jornal francês, Franklin sugeria que a França adiantasse uma hora no Verão, alegando que Paris poderia poupar anualmente 32 mil toneladas de cera de vela. Só mais de um século depois é que a sugestão seria tida em conta, no contexto da Primeira Guerra Mundial, para economizar energia”.
O facto de amanhecer mais cedo e anoitecer mais tarde, à hora da ceia, legitima tudo isto? É que esta convenção, embora provisoriamente, começou em 1992, com o governo de Cavaco Silva, e definitivamente com o Decreto-lei número 17, de 8 de Março, em 1996, e dando cumprimento a uma directiva europeia. E aqui faço logo a primeira pergunta estúpida: se com esta mudança se enriqueceu a economia, como é que, passados 20 anos, estamos mais pobres do que anteriormente?
Como duvido sempre dos axiomas, as tais verdades sem contestação, ainda faço outra interrogação sem pés nem cabeça: como é que sem esta tão iluminada medida viveram os nossos pais? E mesmo alguns de nós, em crianças?
Será que neste afã do homem querer controlar tudo, até a luz solar, nos tornou mais felizes? 
Com a desculpa do aproveitar o máximo de luz, enquanto fonte de energia bio-rítmica, nos dias que correm haverá menos solidão, menos depressão, menos suicídio, isto comparando com épocas recuadas?
O curioso é que nesta tentativa vã de apanhar o tempo ficámos sem tempo para olhar as estrelas, a Lua, o magnífico nascer do Sol no horizonte, a leste, o extraordinário Pôr-do-sol a cair sobre o mar, o crepúsculo, e toda a manifestação de uma Natureza viva e magnificente.
Perdemos hábitos de leitura, de escrita, de falar com o vizinho. 
Como se perdêssemos o romantismo e ganhássemos o facebookismo, deixámos de ter uma necessária contemplação introspectiva do mundo à nossa volta.
Vivemos o tempo da necrologia, que é o olhar a página dos jornais diários a ver quem dos nossos amigos morreu –ou, especulando um pouco, para vermos se a nossa foto lá está, porque, bem no fundo, já nem os jornais se lêem como antigamente. É tudo a correr. "Não temos tempo", dizemos todos em coro. Os dias, as semanas, os meses, os anos, todos são iguais e passam num ápice. Quando damos por nós, olhamos o espelho e já não reconhecemos a imagem que nos aparece reflectida. Parece de alguém muito chegado, mas só isso.
Até mudaram a ortografia –estou a escrever e, volta e meia, lá me surge o sublinhado vermelho a indicar erro, ou seja, o computador a querer controlar a minha vontade. Fosca-se para estas mudanças! Porque é que não inventam uma máquina do tempo, onde, em turismo, pudéssemos ir fazer umas férias de longo curso?
Mas, afinal, o que é que se alterou? Se, igualmente, uma hora continua a ter sessenta minutos, mudou o quê?


sexta-feira, 24 de março de 2023

13 HORAS À ESPERA NO EXTERIOR DOS HUC… (ENSAIO PARA UM FUTURO MELHOR)

 





Era Segunda-feira desta penúltima semana de Março. Estava um dia lindo, resplandecente, soalheiro como a anunciar a primavera. Mau dia para aqueles cujo sistema imunitário falhou e, por causa de acidente, grave ou leve, com dor, tosse ou mal-estar, os obrigou a recorrer às urgências de um qualquer hospital, privado ou público.

No caso que vou narrar trata-se dos CHUC, Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, EPE.

Com dores no peito, uma tosse profunda, tonturas e alguma dificuldade em respirar seriam cerca de 14h30 quando transportei a minha mulher e transpusemos a porta sensorial do Hospital neste dia de sapateiro.

Como ela sentia um profundo desequilíbrio, quando demos entrada nas urgências procurei uma cadeira de rodas vazia para a acomodar. Nem de propósito, alguém, que se prestava a sair, largou uma junto a nós.

Dirigimo-nos ao balcão e fizemos a inscrição para atribuição de uma pulseira de cor que, de acordo com a “Triagem de Manchester”, significa o vermelho (emergente), laranja (muito urgente), amarelo (urgente), verde (pouco urgente) e azul (não urgente).

O funcionário, depois de nos questionar num resumido inquérito, entregou uma cinta amarela à minha consorte.

Apesar de avistar vários funcionários, entre médicos, enfermeiros e pessoal auxiliar a entrecruzar-se pelo meio de muitas macas com doentes, ninguém se preocupou em nos indicar os passos a seguir. Vi logo que ali funcionava o “quem tem boca vai a Roma”. Pedi a informação a um bombeiro, certamente à espera de um utente para o conduzir de regresso na ambulância, e foi-me indicado.

Continuei a empurrar a cadeira até uma pequena sala com várias cadeiras ocupadas à espera da chamada para classificação e encaminhamento para os vários serviços médicos correspondentes.

Cerca de meia-horas depois, uma voz agridoce anunciava numa coluna de som pregada no tecto: “Ana Maria (…) no Gabinete 1”.

Pensei para comigo que, pela rispidez da chamada, deveria ser uma médica com os pés para a reforma, agastada e farta de auferir pouco para tanto esforço. Mentalmente comparei com o som adocicado das vozes digitais dos megafones das estações de comboios.

Lá nos aprontámos e penetrámos num pequeno gabinete onde, em frente a um ecrã de computador, uma rapariga ainda nova, talvez com vinte e poucos anos, de bata branca, nos recebeu sem grandes alardes de simpatia. Com um seco: “De que se queixa?”, foi tomando notas na máquina digital. Quando acabou o inquérito, virou-se para mim e, sem grande empatia, ordenou: “vai ter de sair. Não pode estar aqui!

Mais uma vez tive de recorrer a pessoal exterior ao hospital para saber onde era a sala de espera para acompanhantes.


II


A sala de espera era num contentor exterior com cerca de 60 metros quadrados. Lá dentro, com uma casa-de-banho e restante área ampla, meia centena de lugares sentados em chapa de ferro com buraquinhos, alinhadas, a formarem o rectângulo, estavam parcialmente ocupados e poucos lugares vagos.

Do lado esquerdo, uma máquina, muda e encimada por um visor, cumpria uma missão importante, mas não dava a conhecer a sua utilidade. Mais uma vez, vendo fazer outros e interrogando, se ficava a saber que era o instrumento, a ponte para saber informações dos doentes previamente depositados na urgência. Depois de colocar um dedo no equipamento, como se agradecido pelo afago, dava-nos uma senha com um número sequencial, que, a seu tempo, devagar, por que ali, contrariando a azáfama das urgências, calmamente alguém chamaria. E de facto, como a interromper um pensamento, uma voz feminina quebrou a quietude da construção provisória: “Senha I – 220, no gabinete 2”.

Logo a seguir, em fustigo de megafone engasgado, nova mensagem: “Familiares de Luísa ... na entrada das urgências”.

Por cima e do lado do acessório mudo, três aparelhos de ar condicionado, marcando 25 graus de temperatura, trabalhavam incessantemente naquela tarde calorenta. Como um relógio parado que está certo duas vezes, aqueles apetrechos de renovação de ar também iriam estar bem regulados durante a noite, que se adivinhava fria e pouco aconchegante.

Na parede em frente um LCD, sintonizado na TVI, como um pregador que ninguém se interessava por ouvir, debitava toda a sua programação.

No mesmo lado, encostadas à casa-de-banho, duas máquinas de “vending”, uma com sandes, chocolates, sumos e água, outra para bebidas quentes, chá, café, chocolate quente.

Do mesmo lado direito de quem entrava, uma estreita mesa mantinha em cima um frasco com álcool desinfectante. Num novo costume, a fazer lembrar o mergulho da mão na pia de água-benta e acompanhado do sinal da cruz ao entrar numa igreja, a maioria purificava as mãos.

Depois de arranjar um lugar vago, acomodei-me o melhor possível num canto do salão com uma visão ampla do espaço. Embora não fazendo ideia do tempo que iria permanecer ali à espera, ia preparado para esperar: levava comigo três jornais, um diário e dois semanários.

Volta e meia levantava os olhos dos periódicos e apreciava o que se passava ao meu redor. Comecei a aperceber-me que muitos acompanhantes, pretendendo adquirir um produto das máquinas de venda automática para comer ou beber, começavam a distribuir palmadas e apalpadelas no mecanismo. Mas a coisa, como mulher enrugada e habituada a carinhos e açoites nos campos agrestes do interior, não cedia. Num quadro de solidariedade alguém se levantava e ia ajudar o desconhecido.

Enquanto via repetidamente este quadro, pensava se, quando chegasse a minha hora do lanche, iria acontecer a mesma coisa. Apostei comigo que era capaz de me entender com a “barriga de aluguer alimentar” a troco de moedas.


III


Ao meu lado uma família cigana de um reconhecido clã conimbricense estava ali representada em quatro gerações. Entraram cerca das 15h00 a, segundo ouvi, acompanharem um idoso ao serviço de urgências. As horas iam passando e, sem informações do seu familiar, sobretudo homens mais velhos e mais novos, ora davam uma passagem ao exterior, ora se acomodavam na cadeira. Um deles, da geração mais recuada, de voz rouca e um pouco entaramelada, usando na cabeça um chapéu à texano, conversava com o ancião no inconcebível passar de horas sem saber nada do seu ente querido. Mesmo ao meu lado consegui perceber: “Há muitos anos, fulano trouxe aqui um tio. Demoraram horas a atendê-lo. Então, irritado pela pouca atenção dada pelo pessoal médico, partiu a porta e entrou por ali dentro. Acabaram a dar-lhe razão”.

Mais ao lado, duas raparigas da mesma etnia, com vinte e poucos anos, vestidas informalmente com saias de ganga, e uma delas com um menino de cerca de quatro anos ao colo, volta e meia recebia um telefonema a pedirem-lhe informações do doente. Reparei na linguagem cuidada e demonstrando uma cultura acima da média. A outra colega, instigada por uma senhora mais velha, falava com desenvoltura, simpatia e conhecimento. Pensei para mim que, apesar das dificuldades, a batalha pela inclusão deste povo está fazer-se a bom ritmo. E é pela geração das mulheres mais novas.


IV


Eram cinco horas da tarde, tinha concluído a leitura do diário, um dos três jornais que levei para, se necessário, me fazer galopar no tempo. Como sempre faço em situações análogas, pousei o caderno informativo na pequena mesa junto à entrada, para, por um lado, no princípio de economia circular, dar uma nova utilidade ao que já era imprestável para mim. Por outro, porque gosto de fazer este teste para contabilizar os visitantes que iriam desfolhar o título.

Levantei-me e cliquei na máquina das senhas para saber como estava a minha doente preferida. Apesar dela ter ficado com o telemóvel, achei preferível saber informações mais personalizadas.

O meu estômago começava a reclamar por mais atenção. Era chegada a hora de testar a minha esperteza para me entender com a máquina vendedora de comida e bebida. Preparado para o embate, lá fui eu armado em cavaleiro e postei-me em frente da besta. Claro que eu não me iria deixar ficar mal. Olhando de cima a baixo, não consegui entender aquilo. Fónix. Tal como muitos que me antecederam, o remédio foi pedir ajuda para merecer atenção do objecto digital. E pronto, com uma sandes, uma bebida e um chocolate no regaço, estava formado mais um ajudante para outras gentes em dificuldades idênticas. Por curiosidade, chamou-me a atenção os acessíveis preços praticados dos bens.

Regressei ao meu lugar de observação para saciar a fome e à espera de ser chamado para obter informações da minha Ana.


V



E o número da minha senha, em alto som, foi chamado ao gabinete 1. Importava agora encontrar a sua localização. Sem sinaléctica à vista, a coisa não parecia fácil. Mais uma vez o “quem tem boca vai a Roma”. Era no interior do piso das urgências. Uma médica de meia-idade, de sorriso fácil e cativante, recebeu-me com amabilidade. Ao meu comentário de que tinha sido difícil encontrar o gabinete replicou: “Sabe, estamos em obras, está tudo um pouco mais complicado. Atendemos aqui mais de duzentas pessoas a solicitarem informações”. Perante o seu ar assertivo, fiquei sem reacção. Quanto a algo sobre a minha parente disse: “Sei que está a fazer exames, mas aqui não consigo dizer mais nada”, enfatizou.

Acompanhado pelo clamor constante de ambulâncias a passar, regressei ao meu lugar. A sala de espera continuava cheia, praticamente, com as mesmas pessoas. Volta e meia a porta abria-se para deixar passar quem ansiava por saber da saúde de alguém próximo.

A família cigana continuava alerta. De tempos a tempos o telefone tocava para saber do estado do patriarca. E uma das raparigas mais novas confidenciava: “Estamos aqui desde as 15h00. Não sabemos nada ainda”.

Liguei à minha mulher para saber como estava. “estou sentada numa cadeira, já me levaram a de rodas. Ainda não me fizeram nada, nem me perguntaram o que estou a fazer aqui. Isto parece um cenário de guerra, com macas a baterem umas nas outras com os doentes a pedirem atenção e o pessoal médico e auxiliar a atropelarem-se uns aos outros”.

Quando lhe perguntei se já tinha comido alguma coisa, respondeu: “Ainda não me deram nada. Já pedi um copo de água, mas cada um sacode a pulga do capote dizendo que não é com ele”.


VI


Já passava das 18h00, a tarde continuava linda e o Sol, o rei do Universo, como se pretendesse dar força e ânimo aos presentes com a sua matiz vermelho-alaranjado, entrando pelas vidraças de duas janelas, numa exposição telúrica rastejante, parecia confortar e beijar.

Atirei-me ao segundo jornal, certamente pela ansiedade, mesmo encostando a cabeça na parede não conseguia descansar

Eram cerca das 19h00, a sala já apresentava algumas cadeiras vazias. Foi então que entraram dois personagens meus conhecidos e se sentaram. Um deles, o homem, conhecia-o muito bem. Arrumava carros junto à Loja do Cidadão há uma dezena e meia de anos. Outrora profundamente apaixonado pelo álcool, enganado por uma amante e desenganado pela vida, com 66 anos de idade, é uma das poucas figuras típicas da Baixa ainda vivas. Há cerca de uma década contei a sua história de vida. Na altura era colaborador de um jornal com uma página semanal. Escrevi a história deste figurão e praticamente de todos os que deambularam pelas pedras da calçada. Muitos deles já não estão entre nós.

Ela, agora com cerca de 45 anos, era prostituta e sempre fez a sua vida difícil lá na zona. Apesar de nos cruzarmos imensas vezes, creio que nunca falei com ela. Sempre tive ideia de que era tóxico-dependente.

Não pareceram reconhecer-me, fosse por eu estar com máscara, ou não. Cada um, depois de ir à casa-de-banho, retirou o seu telemóvel e ligou-o na tomada, a recarregar a bateria.

Ele viria a emprestar o seu carregador a duas senhoras. Tinha vários num pequeno saco de apertar na cinta.

Passado pouco tempo entrou um terceiro figurante. Alto, com cerca de meio-século, limpo, bem-vestido e calçado com calça de ganga e sapatilhas e um impressionante blusão de cor beije, ostentando nas costas um enorme emblema da Académica. Tinha uma farta cabeleira com cabelo branco levemente a raiar as costas. Os seus modos eram suaves e finos. Não fosse uma pálpebra muito inchada e negra e diríamos que era Beethoven reencarnado.


VII


Já passava das 20h00. A sala, já com menos gente, estava mergulhada na penumbra. Pensei para comigo que deveria ir acender as luzes, mas, acalmando o meu ímpeto, dei por mim a ver o que acontecia. E aconteceu: uma mulher vestida com a farda da Repsol, certamente trabalhadora num posto abastecedor de combustível da reconhecida marca espanhola, levantou-se, acendeu as luzes e fechou as janelas, já que o frio invadia tudo em redor, não fosse os três aparelhos de ar condicionado contribuírem para um ambiente ameno e levemente aquecido.

Os três protagonistas, logo que apanharam um banco vazio só para si, estenderam-se ao comprido e fecharam os olhos. A mulher, com as pernas enroladas, ficou mesmo à minha frente. Durante horas, olhando para cada um deles à vez, fui fazendo uma espécie de catarse, libertação de sentimentos ou emoções reprimidas.

Olhando a mulher deitada no banco com as pernas enroladas em conchinha, relembrei a minha primeira vez, em 1976, em que fui obrigado a dormir num banco de Estação. Foi logo no meu primeiro dia do serviço militar. Era Janeiro. Tinha que assentar praça em Estremoz. Como era intimado a apresentar-me no quartel às 9h00, depois de me informar dos horários, na véspera, abalei de Coimbra de comboio. Só que não me disseram que o trem não ia além da estação de Portalegre, que distava cerca de uma dezena de quilómetros da cidade. Cheguei cerca das 22h00 e só tinha ligação para Estremoz no dia seguinte por volta das 8h00. Dinheiro para pagar a um táxi e pernoitar numa pensão da cidade não havia. A solução foi mesmo passar pelas brasas ali mesmo no banco. Passei tanto frio que, à distancia de 45 anos, ainda consigo sentir o tremor nos ossos.

Pensei que a vida é uma espécie de roleta russa. Em cada seis pessoas, por motivos vários, uma cai no charco e vai descambar.


VIII


O relógio marcava 23h00. A família cigana tinha partido há pouco. Tinha recebido a informação de que não valia a pena esperar pelo diagnóstico. Estava tudo muito atrasado. O melhor mesmo era irem para casa. E foram. O salão tinha agora 8 acompanhantes e os três sem-abrigo estendidos ao comprido.

As informações personalizadas estavam a terminar. A partir daí só telefonando para um número que deveria estar ali anunciado… mas não estava.

Eu já lera os dois semanários que me restavam. Tal como o diário, coloquei-os na mesinha pequena e à disposição de quem quisesse ler. Apenas duas pessoas folhearam o diário. Uma delas foi uma moça cigana. Pensei para mim que a imprensa em papel, acabando os velhos como eu, está mesmo condenada ao desaparecimento.

Liguei à minha amada. Depois de muito reclamar que era diabética, tinham-lhe dado uma copo de água e um pacote de leite. Disse também que a desorientação nas urgências era quase total. Uma senhora ao seu lado tinha recebido a medicação trocada. Para piorar, por que um mal nunca vem só, colocaram-lhe oxigénio… que era destinado à minha companheira. A outra azarada doente exclamou: “Estes gajos querem matar-me”.


IX


Eram cerca de duas horas da manhã. As ambulâncias eram agora mais espaçadas. Passavam duas por hora.

Como se obedecessem a um controle remoto, primeiro levantou-se o arrumador e comeu duas sandes embaladas previamente por si. Senti uma vontade enorme de lhe oferecer uma bebida. Sei lá porquê, não o fiz.

A seguir o Beethoven comeu uma sandes, bebeu um café e foi fumar um cigarro lá para fora.

Em seguida, a mulher de vida difícil levantou-se e foi à casa-de-banho – a propósito, esta parte essencial da higiene humana, apesar de não me ter apercebido de ver alguém a limpar, durante todo o tempo em que estive presente, quer a sanita, quer a bacia de lavatório mantiveram-se sempre limpas.

Tal como os companheiros, a sem-abrigo retirou duas sandes da sacola e comeu com ansiedade.

Eram 3h30 quando recebi um telefonema da minha mulher para me dizer que, provavelmente, ficaria internada e o melhor mesmo era ir embora para casa. E ficou mesmo.

Foram 13h00 à espera. Esta crónica não pretende ser uma via para a crítica fácil a um serviço essencial que, sabemos todos, é estruturante na sociedade portuguesa. Antes é um meio para atingir o pensamento. E todos, mas todos, precisamos muito de pensar o que queremos do SNS, Serviço Nacional de Saúde, para uma vida que, infelizmente, é cada vez mais curta.


domingo, 19 de março de 2023

HOJE É O DIA DOS BONS FILHOS

  



19 de Março é a data atribuída a São José, operário e padroeiro dos trabalhadores e também patrono e protector da Igreja Católica.
Simultaneamente, neste dia celebra-se o Dia do Pai. Ou melhor, é o dia dos bons filhos, aqueles que, com um simples telefonema, ao menos nesta época, não esquecem o seu progenitor.
Há pais e pais, há filhos e filhos”, como diz o povo. Quer dizer, portanto, que não há procriadores perfeitos nem herdeiros maravilhosos. Uns e outros, no âmbito da sua imperfeição, serão sempre passíveis de ficarem aquém da esperança de ser.
Uns e outros serão sempre o resultado de um tempo cultural, de um costume mais ou menos libertário, de uma circunstância económica, de uma educação acordada e dividida a meias entre o austero e a liberalidade, de frustrações e momentos de felicidade, de muito ou pouco amor dado na infância.
Como tal, por não se saber as quantidades certas dos factores para obter um bom produto, a resultância final balançará sempre entre a alegria e o desânimo.
É tudo uma questão de sorte”, voltará afirmar o povo na sua eterna sabedoria. Não é certo que um filho muito desejado e muito amado, nascido no seio de uma família de classe média, quando adulto, não seja um escroque, um vadio, uma alma cruel para os seus pais. Uma criança gerada num ambiente paupérrimo, onde pode faltar tudo, desde alimentação até outros bens essenciais, carinho e amor, pela necessidade de ultrapassar a carência, pode perfeitamente vir a ser um pilar de exemplo para os seus e para a comunidade.
Os tempos baralharam tudo. Até aos anos 1970, os filhos estavam subjugados aos mais velhos, pais, avós, padrinhos. Entre eles havia um tratamento reverencial imposto. O trato de “você” era obrigatório. Era normal diariamente os filhos, num acto solene de humildade, pedindo a mão ao progenitor, rogarem: “sua bênção, meu pai!”.
Já não falando nos fortes castigos corporais, por outro lado, era normalíssimo os descendentes entregarem aos pais todo o salário que auferissem no labor do seu trabalho.
A partir do terceiro quartel do século XX, consequência da nova ordem mundial liberal que varreu o mundo, tudo se alterou na relação bilateral entre pais e filhos. Os mais velhos, de mão-beijada, sem pensarem nas consequências futuras, aceitaram conceder aos novos nascidos o poder de decisão que até aí detinham. O poder discricionário, em muitos casos arbitrário, do “Pater famílias”, que já vinha do tempo dos romanos começava a sua iminente extinção.
Os filhos desta altura, por terem sido tão maltratados pelos ancestrais, por ressabiamento com o antanho, desenvolveram uma espécie de reacção de corte com o passado. Os ensinamentos recebidos, que vinham detrás, estavam obsoletos.
O trato de “tu lá, tu cá” passou a ser a nova dinâmica corrente entre velhos e novos. Os filhos, de forma unilateral, em muitos casos, apoderando-se, passaram a ser senhores de decisões no seu dia-a-dia relativas a si e também aos seus ancestrais.
O respeito entre a família, até aí hierárquico e imposto verticalmente, passou a ser, em consequência natural, de aplicação horizontal. Lá em casa, o valor dos votos de uns e outros detinham o mesmo peso. Os mais velhos, perdendo o seu valor empírico e experiencial da praxis, tratados como coisa, ficaram entregues à sua sorte.
A subordinação, progressivamente, foi-se esboroado como castelos de areia batidos pelas ondas do mar.
Sem cálculo intermédio, desaparecendo os princípios do acompanhamento, morais e éticos, que eram o sustentáculo da prole, sem revolta e perante os olhos dos mais velhos, passou-se rapidamente do oito para o oitenta. E a revolução, em nome dos novos tempos, veio para ficar.
Os governos do após 25 de Abril de 1974, minando toda a autoridade do professor na escola, quase fazendo dele um mero narrador de programas que iam mudando conforme o vento, lavrando numa área social desvirtuada que facilmente gerava consensos populistas – tal como hoje se verifica com o exagero na protecção animal confundindo o caso particular com o geral, tomando o isolado pelo todo, construiram facilmente um detonante complemento educacional-formativo de usar e deitar fora conforme a conveniência.
Se verificarmos hoje, o número de pais maltratados pelos filhos é de tal envergadura que assusta. Por vergonha, se a maioria das queixas que não são denunciadas e sofridas em silêncio no recanto de quatro paredes, se o fossem a colectividade sofria um tremendo abalo sistémico. Olhos que não vêem não sentem.
Bem no fundo, no fundo, nem é para preocupar. “Por que filho és, pai serás”, a natureza, na sua infinita justiça, se irá encarregar de castigar a maldade dos prevaricadores. O que não for perceptível agora, por força do destino, sê-lo-á mais tarde. Sempre assim foi, e sempre assim será.
Já ligou ao seu velho pai hoje? Vá lá! Faça o favor a si mesmo.

sexta-feira, 17 de março de 2023

GRANDE COMÉRCIO: A DEMAGOGIA CONTINUA A CAVALGAR JUNTO COM O POPULISMO (4)

 

(imagem de Leonardo Braga Pinheiro)




Ter lucros é indispensável.

Mas, se o único propósito for ganhar dinheiro isso já não é bom.

Há que compartilhar com toda a sociedade, com os trabalhadores,

com os fornecedores, com os acionistas.

Mas se não há lucro, não se pode reinvestir, ampliar e manter uma empresa.

Há que transmitir esta mensagem à sociedade”

Juan Roig, presidente da Mercadona



Numa acção mediática concertada, durante mais de trinta anos fomo-nos habituando a ver, a ouvir e a ler que os preços praticados no comércio tradicional eram mais caros em comparação com as grandes superfícies. E nem é difícil de aceitar esta verdade como axioma sem contestação se confrontarmos a capacidade económica de um e outro.

Mas esta mensagem passada aos consumidores (que somos todos) nunca pretendeu estabelecer e atingir o objecto de um paralelo de honestidade intelectual. Pelo contrário, sempre carregou um discurso envenenado.

Por sua vez os sucessivos Governos das últimas décadas, para justificar um descarado proteccionismo ao grande comércio, foram deixando passar que a “mão invisível de Adam Smith”, numa total liberalização, regularia por si mesmo os mercados. Invocando que era bom para os portugueses viverem numa economia aberta, sem empecilhos do Estado, onde as forças em confronto atingiriam um equilíbrio, mesmo nomeando Entidades Reguladoras – que nunca funcionaram com transparência. Numa clara falta de imparcialidade, perante escandalosos oligopólios, como é o caso dos sectores de combustíveis e comunicações, estas entidades sempre pareceram desprezar os mais pequenos.

Eis então que num cenário de guerra e após-pandemia, num palco imprevisível, o Governo PS, com um ministro da economia algo atarantado e sem saber o que dizer, nos apresenta nos últimos dias uma peça bufa, com o burlesco a saltitar de rosto em rosto dos contribuintes das classes baixa e média.

Ao culpar as grandes áreas comerciais de praticarem margens de lucro abusivas, e prometer mandar todo a “infantaria” de fiscais da ASAE para o grande comércio para conter os enormes aumentos, só pode estar a gozar com os reformados de baixas pensões.

Num ridículo sem limite, de repente o país viu-se a contabilizar os preços de venda da cebola, da alface e do peixe congelado. Como se margens de 50% em produtos perecíveis fossem inadmissíveis e constituissem o busílis da questão.

Ao tornar o grande comércio em bode expiatório para acarretar com a responsabilidade dos custos inflaccionistas só pode estar mesmo a brincar com todos nós.

quarta-feira, 15 de março de 2023

GRANDE COMÉRCIO: A DEMAGOGIA CONTINUA A CAVALGAR JUNTO COM O POPULISMO (3)

 

(imagem de Leonardo Braga Pinheiro)




Sobre a recente operação visando o setor da distribuição, a ASF-ASAE

refere que, não estando fixados no atual quadro legislativo os limites máximos

das margens de lucro por parte dos operadores económicos, "a ação da ASAE

é muito limitada, ficando-se unicamente pelas situações de especulação prevista

num Decreto de Lei de 1984", o que não permite explicar, resolver ou punir

"a questão de base, que é saber quem está a lucrar com esta subida drástica

do preço dos bens, quando comparada com a inflação geral".

(Associação Sindical dos Funcionários da ASAE)


O motor de desenvolvimento económico das cidades de pequena e média-dimensão, sobretudo nas últimas três décadas, foi a grande área comercial. A maioria de autarcas, com dificuldade em captar investimento na indústria para preenchimento das zonas industriais do seu território, pouco mais lhe restou do que render-se e, a troco de novos arruamentos, piscinas, campos de futebol, Pavilhões Multidesportos e sabe-se lá que mais, entregar a cabeça do comércio de rua numa bandeja de prata ao grande capital.

Os Governos nacionais, PS-PSD/CDS, somente preocupados em extrair receita e liberalizar a Economia, com o fortíssimo apoio da Comunidade Europeia, fizeram bem o seu papel de exterminadores implacáveis do pequeno comércio de proximidade, um sector que foi sempre o catalisador, o sistema de filtragem que equilibrava o “modus vivendi” dos lugares habitados. Fosse na segurança das artérias da urbe com as suas montras iluminadas e reclames a piscar em “neon”, fosse na pequena economia de subsistência enraizada no porta-a-porta, fosse numa vivência muito “sui generis” dos seus agregados, a loja de bairro, imponente e dinâmica como a conhecemos noutros tempos, foi sempre a sentinela alerta para os vários perigos iminentes.

Quem nos (des)governou nas últimas décadas soube levar a cartilha ultra-liberal a bom porto. Retirando o voto de decisão aos (poucos) edis que se opunham, começou por serem criadas comissões de avaliação e decisão onde o autarca, contra cinco a favor, era uma voz isolada no conjunto.

Paulatinamente, num processo pensado ao detalhe, foram fechando a torneira financeira, que vinha em forma de projectos subsidiados, às associações de classe e, com a conivência implícita de dirigentes, levando muitas à insolvência, os mercadores foram ficando sem defesa e à mercê da sua sorte.

Não é despiciente referir que, por norma, o comerciante de rua é um ser acomodado e pouco preocupado com os sinais anunciados de tragédia. Quando a inundação está a chegar ao vizinho mentalmente regozija-se por ficar sem concorrência. Até ao dia em que cai também.

Para compor o ramalhete, temos um consumidor analfabeto, insensível e interesseiro e somente fixado no seu umbigo. Apenas preocupado com o quanto mais baixo preço melhor e, se preciso for, com uma árvore centenária que vai ser abatida na sua zona de convívio, um cão maltratado, a defesa dos pequenos lojistas que vão caindo todos os dias, para este cliente nefelibata, é mais do menos que pouco importa para a história. Neste usar e deitar fora, nesta luta completamente desigual, acaba a culpar a vítima por não ter sabido reagir à “invasão”.

Não se deve olvidar, também, o papel decisivo na contribuição para o desaparecimento de pequenos negócios, industriais e comerciais, pela aplicação de coimas abusivas, excessivas e imorais com valores entre 20 mil e mais de 50 mil euros, por entidades fiscalizadoras como a ASAE, Autoridade Tributária e Aduaneira e Segurança Social. Num novo tempo em que o igualitarismo feroz e cego tomou conta de quem nos rege, tomando um coxo tão capacitado a correr quanto um atleta de alta competição, a este comportamento justicialista e de destruição massiva este consumidor bate palmas.

(CONTINUA)


segunda-feira, 13 de março de 2023

GRANDE COMÉRCIO: A DEMAGOGIA CONTINUA A CAVALGAR JUNTO COM O POPULISMO (2)

 

(imagem de Leonardo Braga Pinheiro)





Começo por tentar explicar as duas curiosidades que elenquei no artigo anterior. E inicio com a respeitante a Manuel Machado para se tentar compreender como é que, apesar da contestação, continuou a ganhar eleições até 2001.

Faço uma ressalva: à distância de trinta anos, consigo entender o comportamento deste presidente e dos que vieram a seguir. Coimbra estava numa camisa de sete varas e, sem dúvida, ainda que custe admitir, as grandes superfícies vieram libertar e projectar a urbe da cércea que manietava a sua expansão.

O que tem de se chamar a atenção é o facto desta descentralização, a deslocalização do centro para novas centralidades, ter sido feita sem planos de urbanismo comercial, isto é, sem equilíbrio das partes em confronto, em que, quase criminosamente, se esvaziou uma importantíssima parte da cidade.

Como vou tentar demonstrar mais à frente, este licenciamento desbragado de novas áreas comerciais, para além da aprovação dos autarcas que vieram a seguir na cadeira do poder da Praça 8 de Maio, teve sempre a mãozinha por baixo dos sucessivos governos. Mas houve uma excepção, talvez uma tentativa de emendar a mão: Machado, reeleito em 2013 e com mandato repetido até 2021, tentou ser um forte obstáculo à implantação do IKEA, no Planalto de Santa Clara, o que segundo se sabe, corre uma demanda em tribunal da multinacional Sueca contra a Câmara Municipal de Coimbra.

Voltando outra vez às curiosidades, se as manifestações contra o Continente e a Macro instaladas no Vale das Flores em 1993, como um grande fogo, começaram com enorme força de combustão, foi certo e sabido que depressa se apagaram. E como? E porquê?

A meu ver, teria sido resultado de uma estratégia de Machado em tentar “aliciar” com promessas de emprego para familiares e outras benesses os chefes revoltosos dos comerciantes, conotados com o PCP e o PS.

Para ajudar à festa, em 1995 caiu Cavaco Silva e subiu a primeiro-ministro António Guterres, com o ministro da economia Pina Moura. Com a promessa de revitalizar o tecido comercial de proximidade – chegava a sugerir-se substituir mobiliário antigo por fórmica -, foi um bodo aos pobres e remediados do comércio de rua. Mas era um presente envenenado, e isto, sem tomarem consciência do endividamento que estava em marcha, poucos recusaram o rebuçado.

Se o licenciamento governamental seguia em forte marcha no sentido da total liberalização – que veio a acontecer já no novo milénio –, para entreter os merceeiros, os tendeiros e outros ramos de comércio, foi lançado o PROCOM, Programa de modernização ao pequeno Comércio. Este pacote de medidas demasiado benevolentes para serem sérias, salvo erro, com um limite por unidade de meio milhão de contos (quinhentos mil euros), era oferecido aos lojistas um bónus de 70 por cento a fundo perdido. Ou seja, o proponente apenas tinha de apresentar 30 por cento de garantia para que o remanascente precentuário lhe caísse no regaço sem grandes entraves. Acontece, porém, que, nesta altura a venda de rua já apresentava algumas debilidades fracturantes. Começava a ser notória a concorrência, selvagem e desleal, entre o elefante e a formiga. A maioria recorreu à banca para financiamento de 30 por cento do projecto. Anos mais tarde, esta ligação ao banco revelar-se-ia mortal. Basta dizer que na Baixa todos os que recorreram ao PROCOM faliram ou encerraram. A seguir, no mesmo tipo de ajudas, na década seguinte, ainda vieram o URBCOM e o MODCOM.

O regabofe era tão grande na distribuição de dinheiro que desde que fosse apresentado o montante inicial a aprovação era certa e garantida, de tal modo que muitos se envolveram na feitura e venda porta-a-porta de projectos, incluindo empresas particulares e as próprias associações comerciais do sector. Todos ganhavam.

Segunda curiosidade no que toca à minha pessoa, no início de 1995 adquiri uma loja na Baixa. Não quero parecer visionário, mas, contrariamente ao que pensava antes, imediatamente me apercebi que o comércio de rua, perante a grande oferta, mais tarde ou mais cedo, estava condenado ao desaparecimento. E escrevi imensos textos de alerta no Diário de Coimbra.

(CONTINUA)


domingo, 12 de março de 2023

GRANDE COMÉRCIO: A DEMAGOGIA CONTINUA A CAVALGAR JUNTO COM O POPULISMO (1)

 

(imagem de Leonardo Braga Pinheiro)





No início de 1990, sempre que passava em Leiria, onde havia já uma grande superfície da Modelo e Continente, ia ver a grande catedral de consumo, ao lado da A1, e ficava extasiado.

Nesta altura eu era proprietário de um pequeno café e restaurante na Alta – e refiro este facto por que a forma de ver o grande comércio, como ameaça ou não, varia consoante a profissão que desempenhamos e a posição que ocupamos na sociedade e nos toca individualmente.

Foi no ano de 1993 que abriram, pela primeira vez, o Continente e a Macro no Vale das Flores – a primeira grande superfície, com 6500 m2, que abriu no país foi em Matosinhos no ano de 1985.

Por parte dos comerciantes estabelecidos com pequenas lojas na Baixa, temendo uma concorrência selvagem que levasse ao extermínio de tudo o que era ponto de comércio, organizaram-se grandes manifestações em frente a estas grandes lojas e já depois da sua instalação.

Salienta-se que, nesta época, o Centro Histórico, sendo considerado o Centro do Centro, transmitindo uma aura cosmopolita à cidade, pela sua efervescência e demasiada concentração de lojistas, constituía um ponto de atração para quem vinha de fora. Com as suas muitas características próprias e singulares, a Baixa era um micro-cosmo onde labutavam milhares de vidas entrelaçadas umas nas outras. Eram consultórios médicos, eram escritórios de advogados, eram bancos, era tudo e mais alguma coisa. Ou seja, estava completamente sufocada com milhares de pessoas a acotovelarem-se diariamente nas ruas e com uma procura excedentária em relação à oferta – o que, naturalmente, encarecia todos os produtos. Como é lógico, perante uma procura incontrolável de espaços comerciais para as pessoas se estabelecerem. Uma entrada de porta para vender fechos de correr poderia chegar aos 5 mil contos (vinte e cinco mil euros).

Esta desmesurada procura pode ser explicada por Cavaco Silva, nesta altura primeiro-ministro, ter espalhado milhões de contos a rodos vindos da então CEE, Comunidade Económica Europeia, a agricultores, a pescadores e outros para abandonarem a sua faina, considerada excedentária por Bruxelas, em comparação com outros países da Comunidade.

Mas havia ainda outro detalhe a contribuir para a procura de espaços: os trespasses. Sempre que havia uma transmissão no negócio em locado arrendado, esta passagem era feita unicamente entre o novo adquirente e o arrendatário. Por conseguinte, o proprietário não podia opor-se à cessão, a não ser que pagasse o mesmo que o novo adquirente – esta solução anómala viria a ser parcialmente corrigida por José Sócrates, com o NOVO RAU de 2006.

O presidente da autarquia era Manuel Machado. Nesta altura de grande contestação por parte dos mercadores na cidade, Machado estava no final do seu primeiro mandato – Foi eleito em 1990, e sucessivamente reeleito até 2001.

Primeira curiosidade que salta à vista: perante uma massa tão cerrada de controvérsia – que, salvo erro, até meteu ameaças de morte ao edil -, como é que Machado continuou à frente da edilidade?

Segunda curiosidade, embora sem qualquer relevância, nesta altura de 1990, e da implantação do Continente e da Macro, eu escrevia muito para o Diário de Coimbra e para o Diário as Beiras. Mais que certo por não me sentir amedrontado pela vinda do grande comércio, publiquei vários textos a contrariar o que era defendido pelos vendedores de rua.

(CONTINUA)

sábado, 11 de março de 2023

LÁ LONGE, PARA ONDE FOSTE…

 




Há pessoas que marcam a nossa vida para sempre.

Como se fosses minha mãe, tu foste uma delas.

Recordo a tua gargalhada estridente e desvalorizante perante tudo o que parecia mau de mais para ser verdade.

No confronto com o lado negro das coisas, parecias ter o dom de colorir o negrume com cores garridas.

Foste sempre uma mãe-galinha na verdadeira acepção da palavra, no entanto, na hora de voar, incentivavas os teus “pintos” a abrir as asas, e, com incentivo marcante, sempre cada vez mais alto.

O sentido de protecção dos teus filhotes era tão vigoroso, tão enorme como um Céu estrelado de Agosto.

Muitas vezes dividias o pouco que tinhas com os mais carenciados, teus familiares ou outros que não sabias de onde provinham.

Se tinham necessidade, sem olhar à cor da pele, sem julgamentos apriorísticos e bacocos, logo ajudavas sem mais delongas.

Foste uma fervorosa seguidora da religião católica, da doutrina cristã, que te levou, mesmo já muito debilitada, a não faltar à missa de Domingo na igreja da paróquia.

Eras a trave-mestra, agregadora e essencial na união da prole.

Foste uma mulher incrível, “velhota” – foi assim, carinhosamente, que te tratei sempre.

Não deixas casas, terrenos, conta bancária, mas, apesar disso, os teus filhos, tenho a certeza, davam um pouco da sua vida para te manter por cá mais uns anitos.

Deixas um exemplo existencial para os presentes e vindouros como, numa casinha pobre, pequena, arrendada, sem os confortos tão exigíveis da modernidade, puderam nascer 11 filhos, e onde nunca faltou o pão.

Não trocavas, a “tua palha” – como referia o teu falecido marido Américo – pela melhor casa do mundo.

Lá, nas paredes de construção toscamente erguidas, estava a tua história, a resenha de uma pessoa simples, e de toda a sua família, que com pouco viveu mas nunca se queixou, e sem jamais exigir o que quer que fosse ao Estado.

Foste uma mãe sempre alegre e bem-disposta, de rosto efusivo e marcante para quem contigo conviveu.

Partiste hoje, para um lugar de descanso eterno que – acreditavas tu – é o sítio, o Paraíso, onde todas as almas espirituais vão parar.

Sem ser bafejado com a tua fé, nem de perto nem de longe, acredito piamente que exalaste o último suspiro no sono dos justos e agora descansas serenamente nesse lugar sagrado onde o teu “Deus” é o gestor, Aquele que esquece o mal causado em sofrimento e dor e perdoa tudo à Humanidade.

Gostei tanto, mas tanto de te conhecer...

Nunca te pagarei o alento e o quanto foste importante para mim...

Até um dia, a ser verdade o que espalhavas como dogma e verdade única sem contestação, que nos encontraremos na última paragem sem retorno.

Descansa em paz, Justina Carvalho Pereira.


terça-feira, 7 de março de 2023

VENDA DE OVOS CASEIROS OBEDECE A REGISTO E LIMITAÇÃO



Nos últimos tempos, tenho reparado que, sobretudo em páginas do concelho de Mealhada, volta e meia se assiste à oferta de venda de ovos caseiros.

Não faço a mínima ideia se quem os comercializa está ciente, ou não, das suas obrigações. A intenção deste escrito é somente informar os menos conhecedores. Para quem souber, naturalmente, passa ao lado.

A informação nunca é demais. Relembro que a coima (contra-ordenação) é abusiva. Para além disso, saliento que invocar o desconhecimento de nada vale.

Por isso mesmo deixo este conhecimento:


Venda de pequenas quantidades em feiras e mercados



De acordo com o estipulado na Portaria nº 74/2014 de 20 de março, o fornecimento de pequenas quantidades de ovos pelo produtor primário (diretamente ao consumidor final ou a estabelecimentos de comércio retalhista local que abasteçam diretamente o consumidor) pode ser efetuado na quantidade de 350 ovos por semana.


Para tal o produtor primário não pode possuir mais de 50 galinhas poedeiras, não podendo ser utilizada nenhuma classificação em função da qualidade ou do peso e o nome e o endereço do produtor devem ser indicados no ponto de venda (Despacho nº 10050/2009, de 15 de abril).


O produtor primário deverá ainda proceder ao registo dessa atividade na Direção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV).

 

O SITE CAMARÁRIO JÁ ESTÁ EM CIMA

 




Depois de comunicarmos da impossibilidade de aceder ao site institucional, no Google, e à página do Município, no Facebook, recebemos a seguinte informação:


Bom dia,

Agradecemos o alerta. Temos tido alguns problemas técnicos que estamos a tentar resolver. O que esperamos é que o site volte a estar online o mais rápido possível.

Com os melhores cumprimentos,


Tânia Moita

Setor de Comunicação e Imagem

tel.: 231 200 980 (ext.281) | telm 926 608 284

e-mail: comunicacao@cm-mealhada.pt


À hora a que escrevemos podemos informar que a “coisa” já se levantou e está pujante para novas curvas. O que não sabemos é se o Viagra teve alguma coisa a ver com o milagre. Se teve, ninguém tem de se envergonhar. Os que nunca experimentaram tal solução milagrosa que levantem o braço.


MEALHADA: APROVADA A LOCALIZAÇÃO DO “BOM DIA” DA MODELO E CONTINENTE

 

(imagem de arquivo)



Foi uma reunião da Câmara Municipal demasiado calma e sem chama. De tal modo que, pela sonolência palpável no ar do Salão Nobre, até Marcelo Rebelo de Sousa, no retrato em pose institucional na parede, não abriu a boca – comportamento deveras estranho por que tudo o que cheira a comentário o Presidente “mete a colher”.

Até o nosso “agitador de serviço”, monsenhor Rui Marqueiro, apareceu cordato e, para se distrair, olhava o tecto em gesso do salão e figurava contar as fissuras existentes.

A República, atrás deste orador, em busto de terracota, com os olhos em bico parecia interrogar: “o senhor doutor está doente? Está? Não é por nada, mas parece uma “fera amansada”. Parece transparecer um denotado cansaço. Quem o viu noutras sessões e quem o vê agora…

Não é muito certo o que vou escrever, mas esta modorra também poderia ser provocada por uma sombra espiritual que parecia pairar no centenário salão das grandes decisões concelhias. Diz quem tem mediunidade, sensibilidade para questões mertafísicas, que hoje andava por lá, em espírito, Belmiro de Azevedo. Fosse por isso ou não, a verdade é que até o site institucional da Câmara Municipal se foi abaixo. Teria sido por esta visita tão majestática? Não sei. O que sei é que havia ali uma atmosfera algo esquisita.


E APARECEU O BRAÇO ARMADO DO GRANDE CAPITAL


E bateram as dez badaladas na torre sineira da Igreja paroquial, ali bem próximo.

E veio o período de tempo atribuído ao público.

Havia um interveniente muito especial para intervir: nada menos do que Carlos Bogas, arquitecto da Sonae Continente.

Coisa rara ver um representante do grande comércio a retalho descer ao povoado e sentar-se na cadeira consignada aos comuns para defender uma maior celeridade na aprovação de uma loja “Bom Dia”, por detrás do Cine-Teatro Messias.

Mas o citado arquitecto, sem peneiras nem vaidade, fê-lo. E, certamente fruto da sua experiência, fê-lo com simplicidade, e muito bem. Falou quando tinha de falar, calou-se quando teve de se calar.

E a sua vinda não foi por acaso, é que em cima da mesa estava em discussão a votação de uma “norma excepcional para a implantação da media-superfície Modelo e Continente”. Ou seja, segundo explicou António Franco, presidente da edilidade, ao abrigo do PDM, Plano Director Municipal, artigo 37º, embora não estivessem realizadas todas as prerrogativas impostas pelo executivo, nomeadamente relaccionadas com o estacionamento e outras questões de projecto, poder-se-ia avançar para a aprovação da localização. Isto é, uma vez que o PDM o permite, é uma forma de dar um passo em direcção ao investidor, para que este não se sinta desmotivado, agarre na trouxa e parta para outro concelho.

Com alguma celeuma, ainda que fraca, o ponto foi aprovado por maioria, com a votação dos vereadores com pelouro e com os votos contra da bancada socialista – poderia ter sido impressão minha mas pareceu-me que este assunto, de tão grande importância para a Mealhada, não foi objecto de uma reunião prévia por parte dos Socialistas. Isto porque, na hora de votar, só Marqueiro foi claro na decisão. Calhoa e Luís Tovim, este em substituição de Sónia Leite, pareceram-me indecisos e foram a reboque do líder da bancada da oposição.

Para ficar mais claro, quer dizer que a Sonae já viu aprovada a localização preliminar do seu pedido. No entanto, para a sua prossecução avançar é preciso corrigir detalhes do projecto.

No fim da reunião, pareceu ouvir-se um ruído parecido com palmas. Poderia ser um bater de asas de uma pomba na vidraça da janela ou, sei lá, do contentamento do espírito de Belmiro de Azevedo.