sábado, 23 de outubro de 2010

O MEU PRIMEIRO BRINQUEDO



 Quem manda lá em casa, umas vezes sou eu outras vezes é a minha mulher -é evidente que eu muito menos. Isto é, o poder reparte-se, através de negociação, por nós os dois. Lá não há eleições. É assim uma espécie de oligarquia concentrada em duas pessoas. Ora mando eu, ora manda ela.
Os meus filhos, como é normal, reclamam e reivindicam uma fatia deste crédito. Eu até gostava que eles dirigissem o lar, lá isso gostava, mas não dá. Não têm experiência de governar, falam, falam, mas não convencem o eleitorado, que sou eu e a mãe deles. Acham que deveriam ser mais apoiados financeiramente. Quando lhes digo que a riqueza é uma aquisição que só tem verdadeiro sabor quando conquistada grão-a-grão, acham que não.
Porque são filhos, no seu entender, têm direito a toda a repartição material. Quando lhes falo em cortar a relva, as silvas e aparar a sebe lá no quintal, dizem que não, que o esforço não compensa. Preferem ficar só com a mesada familiar. É claro que governante sofre, e ou faço ou pago a quem me substitua.
Volta e meia vêm fazer empréstimos. Farto-me de lhes dizer que só se deve pedir emprestado verbas que deverão apenas servir como investimento de reprodução. Ou seja, tentar multiplicá-lo num bom investimento. Um bom computador para se aceder à internet não é um investimento reprodutivo. Se for para trabalhar, criando mais-valias, já o é.
Gostam muito de viajar. Estou burro de tanto lhes dizer que as viagens como simples geografia não dão créditos. Argumentam que conhecer novas terras é o melhor que se leva desta vida. Com cara de surrados, a gozar o panorama, apontam para mim e dizem: “já viste que tu não conheces nada do mundo? É isso que está certo?”. Realmente, começo a pensar cá com os meus botões que se calhar não. Mas eu nunca tive dinheiro disponível para viajar. Como é que eu poderia fazer isso? Comprava viagens a crédito? Nem pensar. O meu pai, enquanto vivo, dizia que a crédito só se comprava chão…que desse uvas. Ora uma viagem, para além de um bom relaxe e conhecimento, nada mais dá. E eu tinha de escolher. Ou optava por ter o que necessitava para viver materialmente ou me virava para o conhecimento intelectual.
Quando lhes digo que o dinheiro é o sangue que corre nos interstícios da vida, riem-se. Afloram que o capital foi feito para se gastar. De pouco me ligam quando lhes lembro que nunca se deve ir até ao último cêntimo. Deve-se guardar sempre alguma coisa.
Bem lhes tento lembrar que na idade deles, com vinte e poucos anos, eu e a minha mulher, já casados e com eles já nascidos, vivíamos numa pequena casa de renda, onde olhando para o tecto se viam as telhas. Não tínhamos praticamente nada. O único dinheiro que juntámos, antes de casar, foi cerca de 12 contos –hoje 60 euros-, que foram direitinhos para uma mobília de quarto, adquirida nos desaparecidos “Móveis Pereiras”, à Sé Velha. Estávamos então em 1977. Não tínhamos televisão, não tínhamos frigorífico, hoje, bens considerados essenciais numa casa, mesmo muito pobre. Só muito mais tarde vim a adquiri-los na “Bruma”, uma loja de electrodomésticos na Rua Adelino Veiga.
Algumas estantes mais necessárias foram feitas por mim. Sempre tive algum jeito para carpintaria e bricolage. A camita de madeira onde a minha filha mais velha e o irmão mais novo dormiram pela primeira vez foi feita pelas minhas mãos. No dia em que ela nasceu na maternidade estava eu a terminá-la. Com a pressa de a acabar, acabei por varar um dedo com uma goiva. Ainda hoje cá conservo a cicatriz no indicador esquerdo.
O meu primeiro carro foi um mini…usado. Custou 30 contos –hoje 150 euros. Era o veículo que se comprava mais baratinho. Tive vários usados, sempre adquiridos com valores que oscilavam entre os 50 contos, hoje 250 euros. Tive sempre carros passados por várias mãos até 1992. Foi neste ano que comprei a minha primeira carrinha nova a estrear. Ainda conservo na memória o seu cheiro a novo, saído dos estofos a tecido.
Eram tempos difíceis. Muito difíceis mesmo. Costumo dizer que não sou saudosista. Sou nostálgico, talvez de mais. Se calhar estou agarrado de mais à imagem dos objectos que passaram por mim. Tenho-os todos gravados na memória. E porquê? Provavelmente, porque foram adquiridos a ferros incandescentes de desejo. Primeiro eram sonhados, depois namorados em olhares de enleio nas montras das lojas, e então, depois de muito lutar para os conseguir, então vinha aquele prazer imenso de os possuir, como se abraça uma mulher pela primeira vez e desejada em noites longas de solidão. Eram gozados até à última gota de deleite. Não havia ainda este “usar e deitar fora” que hoje –talvez para melhor, não sei- é filosofia corrente. Os objectos, por força do sacrifício enorme que se passava para os adquirir, quando na nossa mão, transformavam-se em extensões de nós. Era como se, apesar de coisas, ganhassem um direito de personalidade.
Mesmo depois da adesão de Portugal à então CEE, em 1986, tudo era difícil de adquirir.
Hoje, apesar desta crise enorme que estamos a viver, tenho a certeza, dificilmente será mais duro do que nessa época. É evidente que, nessa altura, talvez vivêssemos mais resignados com o pouco que tínhamos. Uma coisa é nunca termos chegado ao cume, outra, como agora, é termos atingido o pico máximo de bem-estar e, abruptamente, ter de descer perdendo o que se julgava ter conquistado. Isso, comparativamente, é o que custa mais.
Porque é que estou para aqui, com este texto, a carpir mágoas que pareço um velho do Restelo? Então, eu sei lá?!

2 comentários:

Anónimo disse...

Comungo perfeitamente com as suas ideias,desfazer-me de algo que adquiri é como deitar fora um pouco de mim. Quando tenho de substituir alguma peça de mobília, penso primeiro qual o fim digno a dar-lhe em fim de vida, e por norma arranjo sempre um cantinho para a encaixar,mesmo que a mesma pouca ou nenhuma utilidade venha a ter no futuro, se não consigo procuro dar a quem precisa.A mentalidade de hoje,é a da era do descartável, quer seja nos bens materiais como nos afectos.
Penso que este nosso agarrar a tudo, faz parte do quão difícil nos foi conseguir tudo o que temos de nosso, por outro lado acho que uma grande parte da geração de hoje, não sabe "quanto custa cinco tostões".

Ana Soares

LUIS FERNANDES disse...

Obrigada, Ana.
Volte sempre. É um gosto receber os seus acutilantes comentários. Só sente quem sofreu e passou os caminhos tortuosos do pouco ter.
Um grande abraço.