sábado, 2 de junho de 2007

BAIXA: AS 19 HORAS DO SILÊNCIO




  Um destes domingos. Na torre sineira da igreja de Santa Cruz bateram as 22h30. Nas ruas silenciosas não se vê viva alma. Nem um gato, nem um cão, que noutros tempos, a esta hora, deambulavam por entre caixotes de lixo à procura de um suculento repasto, fazendo alarido por entre um miar defensivo e um ganir impositivo, há muito, fieis companheiros da longa solidão dos idosos.As montras das lojas, outrora reluzentes, hoje, reflectem, na sua luz difusa, a apatia e o tédio, como se estivessem acesas para ninguém. Um casal de espanhóis vagueia como fantasmas solitários. Ao verem-me, pareceram ficar aliviados, "afinal havia vida por aqui", terão pensado, certamente. Entre a surpresa e o descontentamento, interrogam-me: “mas isto à noite é sempre assim?...não se vê ninguém!?...Queríamos comer qualquer coisa…onde o poderemos fazer?”. Entre o meu engasgamento e a minha solicitude, ofereci-me como cicerone para juntos procurarmos um bar aberto e comermos qualquer coisa. Seguimos em direcção à Praça do Comércio. Tudo encerrado. Partimos em direcção ao Largo da Portagem…só o café Toledo mantinha luz no interior. Estava em limpezas mas já de porta fechada. Entre o meu desapontamento, misturado com alguma amargura envergonhada, e a fome que os dilacerava, continuámos até ao Largo das Ameias e mais uma vez…
nada! "Sabem…é domingo…é dia de descanso", tentava eu, titubeante. Como podia explicar o vexame que sentia? Vamos em direcção à Praça 8 de Maio… aí sim…vão ver, vamos ter sorte! Pois sim! A sorte não nos sorriu, estava tudo encerrado. Então, como para mostrar que não desistia facilmente e que encontraríamos um oásis no meio deste deserto, ofereci-me para os transportar e…eureka…encontrámos. O restaurante O Rio, junto à Estação Velha, estava aberto.
Quinta-Feira, 01 de Março, o meu amigo Cerveira –o homem que nunca se abate e que, por entre o imobilismo e o autismo de quem devia e não faz, com uma força titânica de invejar, vai desbravando a selva da indiferença, abrindo caminho a expensas próprias- no Centrum Corvo, na Rua do Corvo, convidou-me para a inauguração, da excelente exposição de quadros a ponto de Arraiolos, baseados em mosaicos de Conímbriga, do artista, artesão, António Adauta –que, sinceramente, convido a visitarem, quer pela excelência invulgar do trabalho manufacturado, quer pela policromia e realismo desta nova técnica. São 18 horas. Apesar dos muitos convites enviados, entre o artista, palestrantes e convidados, seríamos cerca de uma dúzia de pessoas. Das restantes dezenas de faltosos pouco interessa, desses não reza a história, a não ser para análise, de qualquer modo a inauguração correu muito bem e o artista, penso, teve e sentiu o merecido carinho dos presentes, sobretudo, depois do discurso introdutório e laudatório de Helena Rainha. Às 19 horas tudo acabou.
Sexta-Feira, 02 de Março, na Galeria Artes e Restauros, na Rua da Sota, pelas 18 horas,Foi inaugurada uma “vernissage” do pintor alemão, radicado em Portugal, Hans Georg Shussler, uma excelente mostra de pintura em aguarela, estilo multifacetado entre o retrato paisagístico urbano e misturas parcelares visuais – também aconselho vivamente uma visita a esta excelente exposição de pintura.Com este artista,contando com os amigos e visitantes, seríamos, aproximadamente, também uma dúzia de pessoas. Sensivelmente, às 19 horas tudo acabou.
A Baixa é como uma velha fábrica do século passado: abre às 09 encerra às 13h00 para almoço. Reabre às 15 e encerra portas às 19 horas. Mal retinam as 19 badaladas, é ver, em louca correria, quer patrões quer empregados, irem atrás de uma liberdade ansiada, contida fastidiosamente ao longo do dia, como se tivessem estado numa prisão. A partir desta hora, o silêncio sepulcral invade toda esta zona histórica, tudo cerra portas. Não fora um grito ao longe do “Aspirante”, já embriagado e pensaríamos estar num qualquer cemitério. Tudo parece demasiadamente mecânico, numa rotina enfadonha, como se cada um procurasse, a muito custo, realizar apenas e só o esforço que necessariamente lhe cabe. Como roldanas que se encaixam simpaticamente, sabendo que só através do movimento individual é possível fazer andar o todo, cada um procura desonerar-se da responsabilidade que lhe cabe na revitalização da "máquina”. É assim que a Baixa, numa apatia lancinante, neurasténica, resvala para o suicídio colectivo. Atribuir culpas,pelo menos neste texto, provavelmente a todos nós. Desencadear soluções? É o que se pretende, de modo a tornar viva esta imensa zona velha, aparentemente ultrapassada, uma “cota” rebelde, viçosa e “sexy”, em que se torne desejada e desafiada, por novos e velhos, numa movida alternativa, noite após noite e sobretudo que a partir do “toque de trindades”, sinal de recolha, possa renascer da Fénix.


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