Um destes domingos. Na torre sineira da igreja de Santa Cruz bateram as 22h30. Nas ruas silenciosas não se vê viva alma. Nem um gato, nem um cão, que noutros tempos, a esta hora, deambulavam por entre caixotes de lixo à procura de um suculento repasto, fazendo alarido por entre um miar defensivo e um ganir impositivo, há muito, fieis companheiros da longa solidão dos idosos.As montras das lojas, outrora reluzentes, hoje, reflectem, na sua luz difusa, a apatia e o tédio, como se estivessem acesas para ninguém. Um casal de espanhóis vagueia como fantasmas solitários. Ao verem-me, pareceram ficar aliviados, "afinal havia vida por aqui", terão pensado, certamente. Entre a surpresa e o descontentamento, interrogam-me: “mas isto à noite é sempre assim?...não se vê ninguém!?...Queríamos comer qualquer coisa…onde o poderemos fazer?”. Entre o meu engasgamento e a minha solicitude, ofereci-me como cicerone para juntos procurarmos um bar aberto e comermos qualquer coisa. Seguimos em direcção à Praça do Comércio. Tudo encerrado. Partimos em direcção ao Largo da Portagem…só o café Toledo mantinha luz no interior. Estava em limpezas mas já de porta fechada. Entre o meu desapontamento, misturado com alguma amargura envergonhada, e a fome que os dilacerava, continuámos até ao Largo das Ameias e mais uma vez…
nada! "Sabem…é domingo…é dia de descanso", tentava eu, titubeante. Como podia explicar o vexame que sentia? Vamos em direcção à Praça 8 de Maio… aí sim…vão ver, vamos ter sorte! Pois sim! A sorte não nos sorriu, estava tudo encerrado. Então, como para mostrar que não desistia facilmente e que encontraríamos um oásis no meio deste deserto, ofereci-me para os transportar e…eureka…encontrámos. O restaurante O Rio, junto à Estação Velha, estava aberto.
Quinta-Feira, 01 de Março, o meu amigo Cerveira –o homem que nunca se abate e que, por entre o imobilismo e o autismo de quem devia e não faz, com uma força titânica de invejar, vai desbravando a selva da indiferença, abrindo caminho a expensas próprias- no Centrum Corvo, na Rua do Corvo, convidou-me para a inauguração, da excelente exposição de quadros a ponto de Arraiolos, baseados em mosaicos de Conímbriga, do artista, artesão, António Adauta –que, sinceramente, convido a visitarem, quer pela excelência invulgar do trabalho manufacturado, quer pela policromia e realismo desta nova técnica. São 18 horas. Apesar dos muitos convites enviados, entre o artista, palestrantes e convidados, seríamos cerca de uma dúzia de pessoas. Das restantes dezenas de faltosos pouco interessa, desses não reza a história, a não ser para análise, de qualquer modo a inauguração correu muito bem e o artista, penso, teve e sentiu o merecido carinho dos presentes, sobretudo, depois do discurso introdutório e laudatório de Helena Rainha. Às 19 horas tudo acabou.
Sexta-Feira, 02 de Março, na Galeria Artes e Restauros, na Rua da Sota, pelas 18 horas,Foi inaugurada uma “vernissage” do pintor alemão, radicado em Portugal, Hans Georg Shussler, uma excelente mostra de pintura em aguarela, estilo multifacetado entre o retrato paisagístico urbano e misturas parcelares visuais – também aconselho vivamente uma visita a esta excelente exposição de pintura.Com este artista,contando com os amigos e visitantes, seríamos, aproximadamente, também uma dúzia de pessoas. Sensivelmente, às 19 horas tudo acabou.
A Baixa é como uma velha fábrica do século passado: abre às 09 encerra às 13h00 para almoço. Reabre às 15 e encerra portas às 19 horas. Mal retinam as 19 badaladas, é ver, em louca correria, quer patrões quer empregados, irem atrás de uma liberdade ansiada, contida fastidiosamente ao longo do dia, como se tivessem estado numa prisão. A partir desta hora, o silêncio sepulcral invade toda esta zona histórica, tudo cerra portas. Não fora um grito ao longe do “Aspirante”, já embriagado e pensaríamos estar num qualquer cemitério. Tudo parece demasiadamente mecânico, numa rotina enfadonha, como se cada um procurasse, a muito custo, realizar apenas e só o esforço que necessariamente lhe cabe. Como roldanas que se encaixam simpaticamente, sabendo que só através do movimento individual é possível fazer andar o todo, cada um procura desonerar-se da responsabilidade que lhe cabe na revitalização da "máquina”. É assim que a Baixa, numa apatia lancinante, neurasténica, resvala para o suicídio colectivo. Atribuir culpas,pelo menos neste texto, provavelmente a todos nós. Desencadear soluções? É o que se pretende, de modo a tornar viva esta imensa zona velha, aparentemente ultrapassada, uma “cota” rebelde, viçosa e “sexy”, em que se torne desejada e desafiada, por novos e velhos, numa movida alternativa, noite após noite e sobretudo que a partir do “toque de trindades”, sinal de recolha, possa renascer da Fénix.
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