segunda-feira, 31 de maio de 2010

O PÁTIO DAS CANTIGAS DE MAIO




 O sítio onde moro é um encanto. É um velho pátio no subúrbio da cidade. Ali todos se conhecem –ou pelo menos julgam conhecer-se-, todos são amigos de longa data, e, por isso mesmo, se preciso for, qualquer um dá um braço pelo vizinho.
 Nem precisaria de grandes explicações, até porque todos conhecem, mas como sou minucioso vou fazer a planta geográfica e topográfica. Quem é que não conhece o Pátio das Cantigas? Claro, todos! Estão a vê-lo, não estão? Pois, é assim um rectângulo, talvez com cinquenta metros de fundo por vinte de largo. Estão a visualizar? Posso continuar? Então avancemos para bingo que se faz tarde. Então, estão a ver no meio aqueles pequenos canteiros? Sim esses! Estão um bocadito “p’ro” abandonados, nota-se sim. Desde que o “ti” César morreu o nosso pátio nunca mais voltou a ser o que era. Continuando, como sabem a maioria daquelas pequenas casas pertencem ao Anacleto “Emigra”, estão a ver quem é? Para que estou eu aqui com tantos pormenores se o homem é mais conhecido que o Papa?
 Continuando a fazer o desenho, como quem diz, do nosso pátio, do lado esquerdo mora o Abílio, aquele que trabalhou na Poceram, estão a ver quem é? Agora, já há uns anitos valentes, profissionalmente, é “Papa-Cursos”. Verdade! O rapaz é muito aplicado. Já tirou 15 e ainda não fica por aqui. Quando ele passa, lá no átrio, as pessoas até começam a gaguejar, eu seja ceguinho se não é verdade, ficam na dúvida se o deverão tratar por doutor Abílio.
Na casa a seguir ao “Papa-Cursos, mora o Aguinaldo, é brasileiro, trabalhava na construção civil, mas o patrão entrou em dificuldades e fugiu para Espanha. Agora o Aguinaldo, diariamente, desconstrói o sonho que tinha arquitectado para arranjar uns “óreos” e poder comprar uma casinha em São Salvador da Baía, lá no “Braziú”.
Mesmo ao lado, naquela casinha amarela, quer dizer, já foi, agora é assim da cor do burro quando foge, mora o Alcides. Não sei se conhecem, se calhar não! Pois o Alcides, o meu amigo Alcides, é um amor de pessoa. Tem um coração maior que a Fafá de Belém, quer dizer, não é assim tão bem apetrechado mas é puro mesmo. Farta-se de trabalhar só para receber o Rendimento Social de Inserção. Quando toda a gente dorme lá no pátio, o Alcides está a esforçar-se no calor da noite. Ou melhor, no frio, porque a noite é muito impessoal. E, segundo ele, trabalha muito e ganha pouco. Coitado! Às vezes chega a casa com os braços cheios de cortes. Ainda há dias me disse que esta coisa de agora todas as lojas terem grades é um problema dobrado. Diz que ás vezes não dá para o trabalho. A maioria dos comerciantes estão todos falidos. É trabalhar para aquecer. Chego a ter pena do Alcides, palavra de honra. Porra! Não está certo! O rapaz esforça-se imenso! Poderia ser perfeitamente como o Idalécio, o seu vizinho da casa ao lado, que faz o canto do rectângulo, não sei se estão a ver. Ora o Idalécio é o “calaceiro” lá do pátio, não faz nenhum! Quer dizer, não é bem assim, desculpem lá! Retiro o que disse anteriormente, porque tenho obrigação de ser honesto –sim porque para se ser sério, só se for por obrigação, não sei se me entendem?! Além de mais, o rapaz até pode vir a ler esta crónica e não vai gostar. É ou não é? Ora portanto, sendo justo, o homem até trabalha: é polidor de esquinas. E não se pense que é fácil. Só quem sabe. Só quem passa por lá é que sente os bicos de papagaio e o reumatismo na perna direita, por causa da posição de quatro que o Idalécio é obrigado a manter sempre, em função da sua abnegada entrega ao labor.
 Na casa ao lado, aquela que tem um passarito junto à porta azul-céu, estão a ver? É a menina Angelina. É um amor de rapariga, juro que é verdade. Sempre preocupada com as questões ambientais. Ainda há dias, quando foi do abate dos plátanos na Avenida Emídio Navarro, se não fosse eu a conter a sua ira tinha vindo para a Câmara Municipal com um grande cartaz a manifestar-se. Eu é que, cá com a minha léria, lá fui afagando a sua dor. Claro que eu sabia porquê: no dia anterior tinha morrido o Barnabéu, o seu pássaro de estimação com uma trombose, devido ao susto do cão da dona Arminda, a locatária do lado, não sei se conhecem…se calhar não. Continuando, a Angelina é uma rapariga multifacetada. Sério, mesmo! Durante o dia parece a Manuela Ferreira Leite com aqueles fatos mal “injorcados”. À noite, é engraçado, transforma-se completamente, então não é que parece a Ângela Merkel, com aquele grande decote até ao umbigo? Para mim, esta rapariga, pela sua mobilidade visual, é uma surpresa. Coitada, farta-se de trabalhar, entra sempre já noite avançada, com umas grandes olheiras e com o rímel todo descontrolado, parece mesmo que chora de desalento naqueles olhos profundos da rapariga. Mas o que fará profissionalmente a Angelina? Penso, penso, e não consigo chegar lá. Que deve ser um trabalho esforçado, lá isso deve ser!
Continuando, ao lado da Angelina, mora a dona Arminda, boa pessoa, um bocado cusca, mas atura-se. Está reformada da CP. Era guarda-linha ali para os lados de Taveiro. Com esta coisa das automatizações, automaticamente automatizaram a senhora Arminda e mandaram-na para a prateleira. Ficou um bocado para o rezingona, quase intratável, mas atura-se…que remédio!
 E então, era aqui que eu queria chegar: ao lado da dona Arminda moram as primas, Bárbara e Beatriz Belchior, não sei se conhecem. Se calhar não?! Então é assim, hoje, desde as oito horas da manhã, lá no sítio, é uma barulheira infernal. Parecia o concerto do Tony Carreira no “Choupalinho”, na Queima das Fitas. Eu estranhei, pela alma da minha avozinha. E porquê? Porque estas duas primas até hoje foram sempre recatadas. Parece-me estar a vê-las a caminhar para a missa das 18 horas, na Igreja de Santa Cruz. Se calhar você até já as viu. Ai de certeza! Assim muito educadinhas, com uma saia abaixo dos joelhos e uma camisola até ao pescoço, e, na mão, uma bíblia. Já estão a ver quem são? Ai não? Pensei que estavam. Continuando. Pois eu logo de manhã comecei por ficar de sobreaviso com a música. Então não era que o Quim Barreiros tinha sido convidado lá para casa com aquela brejeirice que todos conhecemos? Não sei se estou a ser claro, mas que diabo, se ao menos fosse o Padre Borga, ainda vá lá! Não sei se estão a conseguir acompanhar o meu raciocínio. Estão? Óptimo. Então vou continuar para bingo. Além da música marada, que me deixou de pulga atrás da orelha, então não é que, em toda a largura da casa, tinham um grande cartaz: FINALMENTE LIVRES! NUNCA FOMOS PRIMAS! SOMOS AMANTES!
 Como devem calcular, eu que, não é para me gabar, mas sou muito inocente, fiquei de cara à banda. Ou melhor, caí de queixos, como se ousa dizer. Fiquei sem reacção. Eu seja ceguinho se não é verdade! Mau, mas ali havia coisa. Alguma coisa aconteceu para esta rebaldaria de explosão social no Pátio das Cantigas de Maio.
Não sei se já vos aconteceu ter necessidade de descobrir uma coisa e arranha-se na cabeça, arranha-se, mas não sai nada. Já vos aconteceu? Pois era o que me estava a suceder. Estava todo mordido de curiosidade. Acreditem, no braço esquerdo já tinha uma mancha maior que a fuga de petróleo no Golfo do México. Quer dizer, se calhar estou a exagerar um bocadito, mas nunca tanto como o Carvalho da Silva nos números da manifestação da CGTP.
Foi então que liguei à Internet e a solução estava aqui, no Jornal de Notícias.

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