sábado, 29 de junho de 2013

MORREU MÁRIO NUNES





 Subitamente, esta manhã, faleceu Mário Nunes. Pela primeira vez, conheci este homem por volta de 1982, era ele então funcionário bancário, salvo erro do BNU, Banco Nacional Ultramarino, ali em frente ao café Nicola. Na altura ele escrevia para o Diário de Coimbra em crónica semanal, se a memória não me atraiçoa, ao Domingo. Como eu, de vez em quando, também publicava uns desabafos no mesmo jornal começámos a falar-nos. Para além disso, ele estacionava o carro no largo da Sé Velha diariamente e, como eu tinha o café com o mesmo nome no vetusto largo histórico, passámos a entabular conversa facilmente. Acompanhei de perto, em 1987, o Congresso Internacional “Alta, que futuro?” promovido por ele enquanto presidente do GAAC, Grupo de Arqueologia e Arte do Centro. Entretanto licenciou-se em História, na Universidade, e aposentou-se da entidade bancária onde prestava serviço. Fui sempre acompanhando o seu percurso até que se tornou vereador da Cultura, em 2002, da Câmara Municipal e à frente da Coligação por Coimbra.
Mário Nunes era um gentleman. Um homem gentil de um sorriso largo e fantástico. Era um lisonjeador. Fomos sempre falando. Ainda há poucos dias, um pouco magro e de aspecto cansado, me encontrou e, naquela sua forma de bom comunicador, me dizia: “ó Luís, as suas crónicas n’O Despertar são fantásticas. Nunca perco uma”. E eu, meio encavacado, lá lhe fui dizendo: lá está o senhor a lisonjear-me. Você é um adulador nato. Infelizmente, para mim, para Coimbra, para todos nós, Mário Nunes deixou-nos. Se todos na morte somos boas pessoas, para mim, este homem, para além de ser o paradigma do homem pobre que vem do interior e sobe a corda a pulso- era natural de Espinhal, ali ao lado de Penela-, sempre me considerou e me fez ver que era uma óptima pessoa. As minhas sinceras condolências à família. Paz à sua alma. Coimbra está de luto.

(PRESSA INIMIGA DA RECTIDÃO: ontem, por lapso de memória, escrevi que Mário Nunes era licenciado em direito e foi presidente da ADDAC. Como se vê, agora pela substituição, houve erro da minha parte. À família enlutada as minhas desculpas)

  

sexta-feira, 28 de junho de 2013

INTERROGAÇÃO DE COMERCIANTE





 À hora do almoço caminhava em passo largo numa destas ruas estreitas. De repente: “psssttt… pssssttt… psssttt!”. Olhei para trás, era uma colega comerciante: “ó senhor….nhem…nhem… Ai, como é que você se chama?”
(Conhece-me há mais de 20 anos, nunca memorizou o meu nome. Aliás, estou convencido que só terá gravado na memória aqueles apelidos que lhe tragam um imediato interesse) Continuou ela: “espere um bocadito. Tenho uma coisa para lhe perguntar. Afinal, você parece ser tão solidário com todos e juntamente com os músicos de rua, que têm canções tão bonitas, tocam sempre nas ruas largas de lá de cima. Porquê? Estas ruas apertadas não merecem ter música?”
Como já conheço a peça de ginjeira, respondi: é assim, penso que sabe, os músicos de rua só ganham se as pessoas colocarem moedas no cesto. O que derem é inteiramente para eles. Eu não ganho nada. Tocamos nas ruas largas simplesmente porque lá passa mais gente. Nestas estreitas, como sabe, infelizmente circulam menos pessoas. Mas podemos remediar isso facilmente, a senhora dá uma nota de 10 euros para eles e nós, na próxima quarta-feira, viemos tocar para a sua porta. Aceita?
Primeiro retraiu-se como se fosse picada por uma vespa, depois contra-atacou: “o quê? Homessa! Porque vou pagar? Eu não sou todo o mundo. Só falei porque você defende tanto estas ruas no que escreve. Acho que deveria olhar mais por nós, não é só escrever….”

LEIA O DESPERTAR...



LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA 

Para além  do texto "PATRIMÓNIO DA HUMANIDADE...QUÊ?", deixo também as crónicas "O ÚLTIMO REGRESSO"; "A MORTE COMO FINAL FELIZ"; REFLEXÃO: A PRIMEIRA ESPERANÇA"; e "VIDAS ERRANTES (1)"


PATRIMÓNIO DA HUMANIDADE… QUÊ?

 Depois de um trabalho árduo e exemplar, resultado de várias personalidades envolvidas no processo, no último sábado, a Universidade e a Rua da Sofia, na cidade, foram classificadas como Património Universal da Humanidade pela Unesco –a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura é uma entidade internacional que, através da classificação, busca a preservação e salvaguarda do património cultural, material e imaterial, mediante o reconhecimento público mundial, cativando milhões de visitantes e receitas turísticas para os sítios dos países reconhecidos.
Enquanto decorreu esta candidatura, Coimbra, na sua modorra costumeira, manteve-se adormecida, apática, para esta alta distinção de consequências políticas, sociais e económicas. Depois do ato declarativo já ser conhecido de todos os citadinos, talvez fosse bom ouvir um comerciante com loja na Rua da Sofia. Chama-se Alípio Mendes Pereira. Tem 69 anos de idade e está na rua dos antigos colégios há mais de meio-século. Gerente da Retrosaria Mendes, coloquei-lhe a pergunta de chofre: o que significa para si esta distinção? É boa? É má? Ou assim, assim?

Se lhe respondesse de uma forma objetiva, e até do “politicamente correto”, diria que sim, que era boa. Porém, como lhe disse, tenho 69 primaveras e se, por um lado, a idade nos torna mais sábios, por outro, atribui-nos uma responsabilidade manifestada numa certa desconfiança, um ceticismo, perante um dado adquirido. E assim sendo, se os procedimentos mudarem talvez seja o caminho para a recuperação do património, público e privado, na Rua da Sofia –e, apesar de alguma apreensão, tenho esperança de que assim vá acontecer. Se tudo continuar como até aqui nem aquece nem arrefece. Vou contar-lhe a minha experiência. Tenho um prédio virado para o Terreiro da Erva que quero recuperar. Ando há um ano à volta do processo. Ainda está tudo no zero. Até agora ainda não me disseram o que querem de uma forma clara, nem consegui perceber. Há três entidades envolvidas e, entre si, não se entendem. Para piorar, na última reunião, uma delas faltou. Diga-me lá, isto é alguma coisa? Isto não é um desrespeito? Ou melhor, não há respeito nenhum! Assim, desta maneira, algum particular pode restaurar o seu património? Eu já não tenho paciência e, por isso mesmo, a minha filha é que tem acompanhado estas tentativas de acordo. Ela é geógrafa em uma autarquia próxima, acompanhando de perto estes trabalhos, e enfatiza comigo que nunca viu nada assim. Ela acha que eles não sabem o que querem. Estas entidades continuam a viver o seu dia-a-dia, contrariamente ao que deveriam ser, proactivos, desempenham um lugar de impedimento, sem se importarem nada com os privados. Devo esclarecer que não culpo o Departamento de Urbanismo Câmara Municipal de Coimbra. Esta divisão está à espera da decisão desta troika, que, até agora, não aparece. Devo salientar também que tenho muito boa ideia do engenheiro Sidónio Simões. É um homem prático. Vejo bem que tem vontade de resolver as coisas rapidamente mas não consegue porque, como disse, as três entidades envolvidas nem atam nem desatam. Nesta recente classificação da Rua da Sofia, se não houver outra forma célere de decidir, esta dignidade pode vir complicar ainda mais. A Baixa, entre outros obstáculos, está em quase completa ruína por causa destas situações. É muito fácil passar a culpa para os proprietários mas eu sinto na pele o que se está a passar comigo e sei bem que não é assim. Esta nomeação seria boa se abrangesse a Baixa toda. Esta zona é um todo. Veja o que se passa na Rua Direita e vias circundantes. Aquilo é um cancro com metástases à vista.
No tocante ao comércio local tradicional confesso que também não tenho muita esperança de que vá melhorar. Se calhar irá ser bom para a hotelaria. Isso sim! Mas oxalá eu esteja enganado e seja bom para todos!”


O ÚLTIMO REGRESSO

 O Paolo Vasil é um músico de rua. Toca acordeão junto ao Museu Municipal do Chiado. Para além disso, desde Novembro, último, faz parte integrante da denominada Orquestra de Músicos de Rua de Coimbra. De rosto cheio de bonomia, trabalhador, cumpridor da palavra dada, que se nega a estender a mão em humilhação sem dar algo em contraprestação, este romeno de 63 anos, veio quebrar o estereótipo que normalmente se inventariam todos os seus compatriotas.
Trabalhou no seu país-natal até aos 53 anos. Para além de ali ter tido uma banda de baile, onde tocava nas horas vagas como acordeonista, era empregado numa fábrica de utensílios metálicos. Até ao dia em que foi dispensado como se fosse um ferro-velho sem utilidade. Decorria o ano de 2003. Tinha de continuar a trabalhar para sobreviver. Deixou a sua única filha na Roménia, pegou na mulher e rumou a Portugal onde residiam uns familiares, em Coimbra. Agarrou-se ao que sabia fazer: tocar acordeão. Andou pelo Sul do nosso país até que um acontecimento trágico, em 2009, veio alterar todo o seu destino previamente concebido em noites de solidão. Há quatro anos levou o maior sopapo que um pai pode levar: a sua querida e única filha morreu de cancro na Roménia. Tudo fez para a salvar, mesmo recorrendo a um empréstimo particular de uma vizinha no país de Nicolae Ceausescu. Pouco depois largou o Sul e, conjuntamente com a esposa, veio para a cidade dos doutores morar para casa dos consanguíneos. Para fazer face às despesas, desde essa altura, toca nas ruas principais da calçada. Até agora, o que tem auferido, em moedas deixadas no pequeno cesto pelos transeuntes, tem dado para viver. Nunca pediu ajuda à Segurança Social. Nunca recebeu qualquer subsídio. Hoje está com imensos problemas. O que ganha na rua já não dá para comer. Para piorar, está doente. Sofre da Diabetes e tem graves problemas na Cervical. Passou este último fim-de-semana no hospital. Acompanhado da mulher, veio ter comigo. Na sua linguagem de português arranhado, como andorinha abandonada, com rosto triste e resignado, entabulou: “Sinhor” Luís, preciso de ajuda. Quero regressar à Roménia, mas não tenho dinheiro para as passagens. Para além disso, precisava de, ao menos, poder amortizar a dívida lá com a minha vizinha. Sabe, tenho vergonha na cara –e passa a mão no rosto. Se ao menos conseguisse uns 600 euros poderia entrar na minha rua de cabeça erguida. Quero morrer lá. Aqui não posso mais continuar. Financeiramente estamos a passar muito mal. Não consigo ganhar para comer e comprar medicamentos. Animicamente, desde que a minha filha nos deixou, nunca mais recuperei. Sinto-me morrer todos os dias. Pode fazer alguma coisa por mim, “sinhor” Luís?”



A MORTE COMO FINAL FELIZ

 Na semana passada, a vinte metros da Praça Fausto Correia –outrora chamada Machado Assis-, na zona de Celas, em Coimbra, uma senhora de 74 anos espetou uma faca no abdómen vindo a ser encontrada por familiares numa poça de sangue e já sem vida. Em Fevereiro, a uma dezena de metros desta praceta, também um meu amigo colocou termo à sua existência. Segundo um residente próximo, nos últimos dois anos, 8 pessoas recorreram ao suicídio num raio de uma centena de metros. Nenhum jornal da cidade relatou a morte desta senhora.
A primeira questão que nos ocorrerá é tentar perceber se a zona terá algo de fatídico. Penso que não. Estes factos estão apenas associados à grave crise emocional que atravessa o país. Lembrei-me de escrever sobre este caso ao ler que “o consumo de medicamentos antidepressivos disparou no último ano,  revela o relatório da Primavera do Observatório Nacional dos Sistemas de Saúde, apresentado esta terça-feira em Lisboa.  "De facto, há um acentuar dos problemas de saúde mental, normalmente muito associados ao desemprego. Está a aumentar o consumo de antidepressivos e isto é um alerta, afirma à Renascença a coordenadora do estudo, Ana Escoval.” 
Outra questão pertinente é tentar entender até que ponto, com o argumento de que o suicídio é desencadeado por simpatia, os jornais, com esta segregação de notícias e na maioria dos casos apresentando estas mortes como de causas desconhecidas, estarão ou não a contribuir para falsos diagnósticos e diminuição de um alerta social que urge discutir. Ou seja, com o argumento de que se deve proteger a coletividade para estímulos de ordem simpática, que levem à imitação de procedimentos, até que ponto não estará esta sonegação de notícias a evitar o debate público sobre uma saúde mental cada vez mais precária?
Os cortes na saúde nos países desenvolvidos e em vias de desenvolvimento estão a ser brutais. Ainda há pouco visionei um vídeo da histeria de uma médica nas urgências no Rio de Janeiro perante o excesso de trabalho da sua unidade hospitalar e, com centenas de pacientes em fila de espera, em que o encerramento de outras periféricas era uma constatação.
Depois de vinte anos de um Serviço Nacional de Saúde quase excelente, em que a vida era colocada acima de qualquer outro valor ou interesse, hoje assiste-se a uma degradação continuada dos serviços públicos e em que cada vez mais a morte provocada, sendo uma libertação das agruras existenciais, é um ato individual, pensado e escolhido, de final feliz. Com os aumentos das taxas moderadoras e sem dinheiro para se adquirir medicamentos, o suicídio é cada vez mais uma alternativa à saúde primária dos portugueses. Talvez valha a pena pensar nisto.


REFLEXÃO: A PRIMEIRA ESPERANÇA

 A recente classificação da Alta, com incisão na Universidade, e Baixa, na Rua da Sofia, como Património Universal da Humanidade, pela Unesco, foi uma lufada de ar fresco num compartimento fétido e malcheiroso. No entanto, mais uma vez se verifica que, tal como a tentativa de salvação das contas públicas, inevitavelmente como fado, a solução vem de fora. Ressalvo que esta minha especulação não retira o mérito a todos quantos trabalharam nesta candidatura. O que quero dizer é que a sensação que nos aflui é que só se olha para as partes baixas quando alguém do exterior nos vem chamar a atenção para a riqueza colossal que temos entre mãos e não cuidamos devidamente, e, por isso mesmo, por estarem inoperacionais precisam de atividade. É uma frustração sentir que, tal como a história nos mostra, continuamos sem políticos de craveira, com olhos pequeninos, que olhem para o horizonte tridimensional.
Esta distinção internacional, para quem reside e trabalha na Baixa, apesar de algum ceticismo, constitui não a última mas a primeira esperança de um futuro que se augura melhor.


VIDAS ERRANTES (2)



 Junto à porta de armas da delegacia, falei com o agente que estava na triagem. No princípio olhou-nos com alguma desconfiança e secura na voz. Como o João se afastou, entre caminhares de coisa nenhuma, lá lhe expliquei a emergência da situação e o guarda, mais ou menos da minha idade, apesar da máscara de indiferença, quase certo já ter chorado em silêncio sobre quadros de solidão análogos, intuí, passou para o meu lado e disponibilizou-se a colaborar. Do meu telemóvel, liguei o número telefónico do 144. Imediatamente recebi uma mensagem gravada: “bem-vindo à linha nacional de emergência social. Por favor aguarde!”. Durante alguns minutos, esperei ao som de música de fundo. Através de voz, veio a técnica e indagou em perguntas sem fim. Lá fui desenrolando o novelo, dentro do pouco que eu sabia e contando que, não sendo psiquiatra, era notório que o rapaz estava profundamente perturbado. E a funcionária, entre interrupções com música e mais perguntas, lá atirou: “o senhor está então na 2ª Esquadra de Coimbra? Pode passar ao agente que está ao seu lado? E eu passei. Entre os dois ficou assente que, logo em seguida, ligaria ao comandante do posto para que este mandasse transportar o André aos serviços de emergência social em Coimbra. Confirmou-me isto mesmo depois de falar com o cívico. Durante cerca de meia hora aguardámos todos, e da central de emergência nacional nem um pio nem um sinal. Voltei a ligar. Agora era outra colega. Lá fui dizendo o que tratámos com a sua camarada e a promessa de contacto dela. “Mas o que é que se passa? Interrogava esta senhora. E eu, já a ferver de impaciência, lá lhe voltei a contar. Disse-lhe também que, em minha opinião, estes serviços, tendo em conta o seu logótipo de ajuda social, não podiam funcionar desta maneira, sendo disfuncionais. Qual a razão da sua colega não ter cumprido o prometido? Questionei. Respondeu a senhora que a comparte entendeu melhor ligar primeiro para os serviços da Segurança Social. E eu, que estou aqui há quase uma hora, porque não me contactou, se tinha o número? Perguntei. E a senhora já com a paciência esgotada, perante um chato descarado como eu, lá foi dizendo para aguardar que ia mesmo ligar ao chefe da esquadra. Desta vez ligou. Uma hora depois, deixei o João na polícia à espera de ser intervencionado.
A seguir, liguei à mãe e contei-lhe o que estava acontecer com o filho e que, a meu ver, deveria tomar providências. Remeteu-me para uma técnica de Serviço Social da Câmara Municipal do Concelho. Então mas não deveria ser a senhora a fazer isso? Interroguei. A senhora é que é mãe. Eu não sou nada ao João. Repliquei. Por entre um choro descontrolado, lá disse a mulher: “por amor de Deus, senhor, ligue a esta doutora. Eu não posso fazer nada”. E liguei à técnica social. Esta explicou-me a situação. “Os pais do André, fartos de uma situação sem fim à vista, tinham desistido do filho. Para além disso, disse-me, o João estaria descompensado psiquicamente, porque certamente não tomaria os medicamentos há vários dias, e, com alguma urgência precisaria de ser acionado o internamento compulsivo –consignado na alteração à Lei de Saúde Mental em 2010. Prometeu-me que contactaria os serviços de Coimbra.
Passadas cerca de duas horas apareceu-me o João já completamente diferente, asseado e, notoriamente, com outra disposição, a dar-me um abraço e, no meio de uma lengalenga, a soletrar: “muito obrigado… muito obrigado. Nunca me esquecerei!”
Na segunda-feira, 3 de Junho, passados 3 dias, recebi um telefonema do pai, “tinha aqui este número de telefone, foi o senhor que ligou para a minha mulher, não foi? Gostava de lhe dizer que tenho passado um martírio com este meu filho. Nem o senhor imagina o que tem sido a minha vida. Agrediu-me e fez uma participação no Ministério Público, aqui no Alentejo. Ele foi aí para Coimbra e levou um carro. Teve aí um acidente. Já recebi a participação do sinistro. Agora não sabemos onde é que ele abandonou a viatura. Não sei se o senhor sabe, mas já trouxeram o André de ambulância! Mas sabe o que aconteceu? Os técnicos de saúde, chegaram aqui e largaram-no. Ele assinou um termo de responsabilidade e, agora, descalço percorre as ruas da cidade. Que mal fiz eu a Deus para merecer isto, senhor?” (FIM)

(A primeira parte de "Vidas Errantes" pode ser lida aqui ou na totalidade aqui.




quinta-feira, 27 de junho de 2013

QUIM BARREIROS NA BAIXA -PELA ROSETE SEMPRE-EM-CIMA (1)

(Quim Barreiros com o director do blogue)


 Estava eu ontem sentada na esplanada do Café Santa Cruz –de perna traçada, com um palmo de pano a fazer de saia, e com um decote até ao umbigo daqueles que fazem (faziam) ressuscitar mortos- a morder o ambiente. Fosca-se! Quem viu esta Baixa e quem a vê! Antigamente bastava eu apenas cruzar as pernas para ter um exército de homens a apontar os olhos sobre mim, como soldados de arma em riste a controlar o inimigo. Agora, que até subi a minha saia para o máximo, com um palmo da cintura abaixo, deixei de usar cuecas e soutien, desci o meu decote completamente até ao umbigo, e ninguém olha para mim. Isto está um caos. Os homens passam à minha frente, cabisbaixos, a arrastar os pés, e nem um olharzinho cá para o meu corpo –e que corpo, meu Deus! Sou uma raparigola de vinte e poucos anos, quase nos trinta, mas com tudo no sítio, com as medidas estandardizadas, como manda a lei. Sou uma barbie, uma boneca de carne e osso. Uma carinha de anjo seráfico imberbe, emoldurada com longos cabelos louros e dois olhos verdes que parecem prometer a eternidade. Tenho uma boa prateira, onde qualquer homem adoraria pendurar as mãos, um corpo de garrafa de Coca-cola, com uma cintura bem definida, como se fosse moldada por um barrista de renome, e umas pernas melhores do que as da Sharon Stone, no filme Instinto Fatal.
Fogo! Sentir na alma o que está acontecer aos homens é simplesmente dramático. Isto para uma mulher é uma tragédia! É certo que andamos constantemente a renegar o assédio dos homens mas não passamos sem ele -agora até é criminalizado. Ser assediada, é assim uma espécie de choque eléctrico na auto-estima, uma recarga anímica na bateria. Raios partam isto, mais a minha sorte! É que nem um olha para mim! Vejam bem ao tempo que estou a escrever aqui na mesa do café, e nem uma pestanada sai daquele velho que está ali no canto –não devem estar a ver, mas enfim! Olhem ali ao lado, aqueles dois bonitos rapazes… Pois, já percebi, são gays! Porra, isto está mesmo preocupante! Eu a escrever isto e estou a sentir um olhar fulminante daquela morena –está no meu lado esquerdo, não confundo com a esquerda ideológica. Foi por puro acaso. Estas coisas das inclinações não escolhem ideologias. Que há uma certa moda lá isso é verdade. Ou seja, as pessoas estão mais desinibidas no campo sexual e sentem um maior à vontade na sua manifestação. Cá para mim, ainda bem. A cada um a sua quota de felicidade a que, legitimamente, tem direito. Que tenho eu a ver com os gostos e o que se passa debaixo de lençóis do meu vizinho? Aliás, tenho a certeza, se cada um fizesse o que gostava no terreno sexual o mundo seria muito mais pacífico. Se repararem bem, a vida começa na cama e acaba na cama. De uma forma geral, todos nascemos na horizontal e acabamos morrendo na mesma posição. Mas não, em vez de criarmos mais posições, gastamos o desgraçado tempo da nossa existência a criticar os outros. É assim, é assado, é cozido! E mais, passados quase quarenta anos da queda do Estado Novo, continuamos a encarar o sexo quase do mesmo modo dessa altura. Pouco evoluiu o conhecimento técnico sobre o conteúdo. Todos falam religiosamente da forma, mas poucos se ajoelham para rezar. O acto sexual não é um fim em si mesmo, mas um meio para a felicidade conjugal; a cereja em cima do bolo de quem primeiro o come e em último, como prémio, a apanha para deglutir e saborear, o entrosamento entre corpo e alma de quem se ama verdadeiramente; um meio para a estabilização psicológica e física –o Governo de Passos Coelho não percebe nada do que se passa com os portugueses. Em vez de tentar poupar nos cortes do comatoso Serviço Nacional de Saúde, nos medicamentos e gastos hospitalares, deveria mandar foder todos os portugueses adultos. Nem que para isso, tivesse que mandar vir umas tailandesas boas para os velhotes que estão internados em lares de terceira-idade. Estes gajos, o senhor dos Passos e o Ministro da Saúde, não entendem nada de saúde pública, carago! Por decreto deveriam ser proibidas as rapidinhas e as escapadelas à hora do almoço, à noite e sempre que a vontade imponha. A bem da saúde pública mental, cada berlaitada deveria ter um tempo mínimo de duas horas. Fogo, mas isto não é evidente? Até os cegos, coitadinhos, sem ofensa, não precisam de ver para sentir o agravo, gravíssimo, à transa. É ou não é? Eu, que por acaso não sou cega de olho nenhum, vejo bem o que se passa à minha volta com os casais héteros. Coitadas das mulheres! Andam cheiinhas de fome, com anúncios meio disfarçados na Internet. É certo que, na maioria, os maridos não foram ensinados para partilhar o gozo com a sua comparte, mas a sensibilidade dos homens também é, pura e simplesmente, animalesca. Querem é o seu próprio gozo e nós, mulheres, que nos tramemos. Sem ofensa para a convicção de ninguém, é apenas uma opinião, mas logo que qualquer português fizesse o crisma, juntamente com a bíblia, deveria receber o livro do Kama Sutra.
Eu sei do que escrevo, fui amante, durante muitos anos, do director do blogue, onde ainda faço trabalho de freelancer, e sei do que falo. O gajo tem muita léria, lá isso tem, mas depois, nas obras, os projectos saem pior que as casinhas do Sócrates na Covilhã. Mal-amanhadas e muito à porteguesinha. Por isso mesmo não quero nada de sério, dou as minhas voltas com quem me apetece e nada mais! Eu vejo bem o que se passa por aqui, em meu redor. Se as pessoas são mal-amadas na cama como podem alguma vez serem felizes? Como se pode exigir rentabilidade a alguém que não pina como deve ser? Sim, não façam essa cara, a actividade sexual, enquanto multiplicador da espécie e tónico de equilíbrio humanos, é um acto económico.
Olha, olha, lá vem o meu amigo Veiga em passo apressado. Até aposto que me vai dar uma informação em primeira mão. Bom, vou ter de falar com ele. Para já fico-me por aqui. Mas volto, tenham a certeza de que voltarei. Até breve.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

APANHADOS NA RUA LARGA (2)

(Fotos de Veiga You)


 Em jeito de ressalva, para quem não souber, quando estou a tocar na rua ou a fazer outra qualquer macaquice transformo-me num tipo desligado de inibições, um sem-vergonha. Como sou um democrata assumido, tanto envio um piropo à velhinha como um bejinho ao borracho. Claro que quando vejo um político cá da terra a passar em frente, pumba!, toca de me meter com ele. Em especulação até consigo adivinhar o que pensarão estes apanhados: “fosca-se, como a cidade desceu de nível. Antigamente, nas ruas, eram só doutores, agora levamos só com cromos.”
Hoje, entre as 1h30 e as 15h00, enquanto actuava na denominada Orquestra de músicos de Rua de Coimbra, de uma assentada, apanhei com dois ilustres políticos da nossa urbe: Manuel Machado, que foi presidente da Câmara Municipal de Coimbra até 2001 e agora, novamente, é o candidato pelo Partido Socialista à autarquia, e João Paulo Barbosa de Melo, o actual presidente em exercício na edilidade e à frente do executivo. Numa espécie de exame, convidei-os a, perdendo três minutos, ouvirem uma canção. Pensava cá com meus botões que só com a interferência divina da Rainha Santa conseguiria tal intento. E então, pasme-se, não é que ambos, em horas diferenciadas, aceitaram o desafio? Durante uns minutos estiveram perfilados a ouvir duas canções por mim sugeridas. Sem qualquer ponta de ironia, em nome dos músicos de rua, agradeço a gentileza. Curiosamente ainda ontem escrevi um texto sobre o facto de os transeuntes não pararem um segundo em frente a quem desenvolve uma acção cultural na via pública. Por isso mesmo, entendo que esta manifestação de boa vontade dos dois políticos mais importantes da cidade tem o seu quê de importância. É que quem os viu lá, ou ler este texto, estou certo, vai pensar que também os deve imitar no que fazem de bem. Todos sabemos que os exemplos devem vir de cima e, aqui, foi o que aconteceu:
Eis a letra da canção que sugeri a Manuel Machado:

AURORA

Aqui trabalho, desde criança,                  
aqui casei, com muita esperança,           
vieram filhos, vi-os crescer,                      
tiveram sonhos, vi-os morrer;                  

Sempre votei, em consciência,
nos candidatos p'rá presidência,
nos indicados pelos partidos,
não tive voto nos escolhidos;

Questionei o meu destino,                  
o meu futuro não tinha tino,              
quero ser parte, parte interessada,   
participar em tudo... e nada!;              

Este sistema não está a dar certo,
quero mudar e estar mais perto,
dos problemas, das soluções,
ver alegria, nos corações;

Quero romper com a situação,
quero mostrar que a rotação
só conduziu a uma certeza:
mais sem-abrigo e mais pobreza.



APANHADOS NA RUA LARGA (1)

(Fotos de Veiga You)

 Em jeito de ressalva, para quem não souber, quando estou a tocar na rua ou a fazer outra qualquer macaquice transformo-me num tipo desligado de inibições, um sem-vergonha. Como sou um democrata assumido, tanto envio um piropo à velhinha como um bejinho ao borracho. Claro que quando vejo um político cá da terra a passar em frente, pumba!, toca de me meter com ele. Em especulação até consigo adivinhar o que pensarão estes apanhados: “fosca-se, como a cidade desceu de nível. Antigamente, nas ruas, eram só doutores, agora levamos só com cromos.”
Hoje, entre as 1h30 e as 15h00, enquanto actuava na denominada Orquestra de músicos de Rua de Coimbra, de uma assentada, apanhei com dois ilustres políticos da nossa urbe: Manuel Machado, que foi presidente da Câmara Municipal de Coimbra até 2001 e agora, novamente, é o candidato pelo Partido Socialista à autarquia, e João Paulo Barbosa de Melo, o actual presidente em exercício na edilidade e à frente do executivo. Numa espécie de exame, convidei-os a, perdendo três minutos, ouvirem uma canção. Pensava cá com meus botões que só com a interferência divina da Rainha Santa conseguiria tal intento. E então, pasme-se, não é que ambos, em horas diferenciadas, aceitaram o desafio? Durante uns minutos estiveram perfilados a ouvir duas canções por mim sugeridas. Sem qualquer ponta de ironia, em nome dos músicos de rua, agradeço a gentileza. Curiosamente ainda ontem escrevi um texto sobre o facto de os transeuntes não pararem um segundo em frente a quem desenvolve uma acção cultural na via pública. Por isso mesmo, entendo que esta manifestação de boa vontade dos dois políticos mais importantes da cidade tem o seu quê de importância. É que quem os viu lá, ou ler este texto, estou certo, vai pensar que também os deve imitar no que fazem de bem. Todos sabemos que os exemplos devem vir de cima e, aqui, foi o que aconteceu:
Eis a letra da canção que sugeri a Barbosa de Melo:

   HINO À CIDADE PERDIDA

“Olhem, tenham dó”,                                                        
gritava a cigana,                                                                
“tenho dez filhos e “mi home, entrevadinho”,             
está na cama, coitadinho, e não pode trabalhar;        
Davam uma moeda,                                                          
tinham compaixão,                                                            
na outra esquina um ceguinho repetia a lengalenga 
trauteada em oração;                                                        
No largo em frente                                                            
jogavam à moeda,                                                             
e entre um copo e uma sardinha na tasca da Mariazinha  
se depuravam as mágoas;   
                                                    
ESTA CIDADE JÁ NÃO EXISTE                                            
SÓ NA MEMÓRIA É QUE PERSISTE 
                                 
O tempo passou                                                                       
e tudo mudou,                                                                          
e a minha rua que era luz, agora é triste, tem uma cruz  
p’ra lembrar que pereceu;                                                     
Já nem um pregão,                                                                  
um gato a miar,                                                                       
só o silêncio modorrão invadiu seu coração                    
e de quem teima em ficar;      
                                            
ESTA CIDADE NÃO TEM VIVER                                          
JÁ NÃO TEM VIDA, ESTÁ A MORRER.                                                        



P.S. - A canção sugerida a Manuel Machado está no post seguinte

QUIM BARREIROS NA BAIXA


 Ontem, a convite da sua amiga Isabel Leão, com estabelecimento de malas e carteiras na Rua Eduardo Coelho, Quim Barreiros, o popular instrumentista e cantautor brejeiro do Casamento gay, andou pela Baixa a distribuir charme. Procurou Meias de Renda e, numa grande confusão, acabou a comprar cuecas na loja da Rosinha

Entrou na perfumaria Baviera, também na mesma rua, e, como perdido em busca d’A Cabritinha, começou a ter Insónia, perguntou à Mikas, funcionária da loja dos odores: “viu Minha Vaca louca?”. É claro que a rapariga não estava a entender mesmo nada e, meio a titubear, ainda disse; “se calhar pode estar na Garagem da Vizinha”. Mas o Quim, que tem pinta de malandreco, embora não gostando d’A coisa, enfatizou: “Fica Amor tá cedo”. Mas a empregada, que até estava ligada Na Internet, achou aquilo meio Tico, Tico. E lá com seus botões, em solilóquio, lá foi pensando que “Quem pode, Pode. Os Bichos da Fazenda são o que são!”

Entrou na Sapataria Paiva e disse à Fátima e à Célia: “Deixai-me Chutar”. As duas funcionárias, um pouco nervosas perante a estrela de todas as Queimas das Fitas do país, e natural de Vila Praia de Âncora, avisaram logo: “Cuidado Zé”, não se meta connosco. Aqui vendemos sapatos e não chuteiras. Além disso, Use Álcool no bigode para o deixar branquinho e parecer mesmo o Malhão dos Santinhos. Em coro, um bocado irritadas com as avançadas do Barreiros, ainda enfatizaram: “não puxe do cigarro que aqui É proibido Fumar”. Mas o Quim, vivido c'mo o raio, safardolas até à quinta casa, não se ficou e devolveu a investida: “Casado também Namora”.

Embora o Quim Barreiros fosse coberto –salvo seja, quero dizer em reportagem de exterior- pela nossa grande e boa jornalista Rosete Sempre-em-cima”, como o trabalho noticioso esteja a tardar –suponho que a rapariga não Tá fugindo, ou sofreu algum afrontamento perante o “Mestre da Culinária” que por aqui procurava Uma Virgem e, mesmo até n’Os Buracos do chão, não encontrou- e a ansiedade por parte dos fotografados ao lado do Zé do Pau é grande, cá na Quinta da Pentelheira, entendemos publicar as fotos. A qualquer momento, e assim que recebermos a crónica da nossa enviada especial, contamos dar ao prelo a sua vivência com o homem do nariz que Quer cheirar teu bacalhau.

BOM DIA, GENTE DE ESPERANÇA... PAZ ÀS ALMAS!

terça-feira, 25 de junho de 2013

OS MÚSICOS DE RUA NA COMEMORAÇÃO DA UNESCO

(Fotos de António Santos)


(Fotos de Veiga you)


 Neste último Domingo a denominada Orquestra de Músicos de Rua de Coimbra participou na comemoração da elevação da Universidade e Rua da Sofia a Património Universal da Humanidade, menção atribuída pela Unesco. Durante a tarde, este agrupamento, constituído essencialmente por músicos que tocam isoladamente na rua –o Paolo, o Lourenço e o Armando e os acompanhantes Celeste, Emanuel e eu- actuou nos becos e largos da Baixa. À noite, nas Escadas de São Tiago, foram tocadas duas músicas originais, “Mondego” e “Esta cidade”. Gostaria de lembrar que as cerca de vinte peças que são executadas por esta banda, letras e músicas, são totalmente originais. Passando a imodéstia, tenho a certeza do que vou dizer: quer os poemas, de intervenção, que falam das nossas vivências diárias citadinas e chamam a atenção para uma nova forma de se olhar os artistas na cidade que mostram a sua arte na rua, quer as músicas, algumas são bem ritmadas e outras em baladas de amor, garantidamente têm uma boa qualidade.
Como mentor deste projecto, embora ainda passasse pouco tempo, tenho muita pena que, apesar das minhas letras, como bandeiras desfraldadas ao vento, procurarem ser um alerta social, os passantes na rua continuem a olhar para este grupo como coitadinhos. São instrumentistas de inegável qualidade –não falo de mim, que sou um simples amador. Pessoas extraordinárias, músicos inatos, cujo destino, por terem nascido no meio da palha, não lhes foi permitido ascender a um patamar que, pela sua vocação, mestria e talento, deveriam ter por direito. Mas a vida é mesmo assim. Quase sempre aqueles que se entregam a uma arte são eleitos para ascender a um pódio que deveria ser seu por direito próprio.
Como já vem sendo hábito, mostramos o nosso trabalho todas as quartas-feiras, das 13h30 às 15h00 na Rua Visconde da Luz –os proventos são divididos entre eles. Enquanto toco e canto vou apreciando o transeunte que passa à nossa frente. Na generalidade, ora segue em passo apressado e nem olha, ora, sem fixar os músicos, baixa-se e deixa uma moeda no cesto –como se neste gesto, pela contribuição, redundasse tudo: a redenção e a paz com o mundo terreno. Interessante que este dar a moeda tem muito de Freudiano. Um dia gostava de ver e ler uma tese sobre o acto de dar esmola. Porque, na forma como se faz, no dar por dar, este é o verdadeiro problema. No abaixar forçado de consciências projectadas em quadros de miséria está muito a caridadezinha, enquanto fraqueza e calculismo humanos, de que falava Nietzsche. Os artistas de rua necessitam, de facto, da moeda, mas acima de tudo, e essencialmente, de consideração, do calor humano de quem passa. São pessoas marginalizadas, que por vários factores redundam em patologias várias e associadas, mas com um coração enorme. Depois de 8 meses desta experiência estou a aprender imenso; como pessoa enriqueci extraordinariamente. Tenho a certeza, nunca lhes pagarei a confiança depositada, no acreditar em mim. Foi graças à sua generosidade que estou a tirar da gaveta dezenas e dezenas de composições que fui fazendo ao longo das décadas. Se assim não fosse, creio, lá morreriam de tédio pelo obscurantismo.
A quem chegou até aqui, façam um favor a todos nós –como eu, citadinos agregados e funcionais-: olhem nos olhos os artistas de rua. Quando algum estiver a actuar, parem um minuto à sua frente e apreciem o seu trabalho. Todos temos muito a aprender. E há aprendizagens que só se fazem estando no lugar do morto.
Muito obrigado à organização das comemorações do reconhecimento mundial declarado pela Unesco, e muito particularmente à Clara Almeida Santos por ter acreditado em nós e permitido que, mais uma vez, nos mostrássemos à cidade. Um muito obrigado também à Emília Martins, presidente da direcção da Orquestra Clássica do Centro, pelo apoio que nos tem dado.
Para todos, um abraço do tamanho da universalidade mundial. Bem-haja.

Deixo a letra de uma das muitas nossas canções:

Não me dêem uma moeda,
sem um sorriso também,
sem alegria não passo,
sem dinheiro passo bem

Não me atirem uma moeda,
sem alguma humanidade,
afinal não sou pedinte,
sou um artista na cidade,
que precisa da moeda,
mas que traga dignidade,

Não me dêem uma moeda,
sem um sorriso também,
sem alegria eu não passo,
sem dinheiro passo bem,

Não me joguem uma moeda,
como se eu fosse alguém,
insensível ao amor,
e que não ama também,
sem amor eu não passo,
sem dinheiro passo bem.




segunda-feira, 24 de junho de 2013

PATRIMÓNIO DA HUMANIDADE... QUÊ?



 Depois de um trabalho árduo e exemplar, resultado de várias personalidades envolvidas no processo, no último Sábado, a Universidade e a Rua da Sofia, na cidade, foram classificadas como Património Universal da Humanidade pela Unesco –a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura é uma entidade internacional que, através da classificação, busca a preservação e salvaguarda do património cultural, material e imaterial, mediante o reconhecimento público mundial, cativa milhões de visitantes e receitas turísticas para os sítios dos países reconhecidos.
Enquanto decorreu esta candidatura, Coimbra, na sua modorra costumeira, manteve-se adormecida, apática, para esta alta distinção de consequências políticas, sociais e económicas. Depois do acto declarativo já ser conhecido de todos os citadinos, talvez fosse bom ouvir um comerciante com loja na Rua da Sofia. Chama-se Alípio Mendes Pereira. Tem 69 anos de idade e está na rua dos antigos colégios há mais de meio-século. 
Gerente da Retrosaria Mendes, coloquei-lhe a pergunta de chofre: o que significa para si esta distinção? É boa? É má? Ou assim, assim?

Se lhe respondesse de uma forma objetiva, e até do “politicamente correcto”, diria que sim, que era boa. Porém, como lhe disse, tenho 69 primaveras e se, por um lado, a idade nos torna mais sábios, por outro, atribui-nos uma responsabilidade manifestada numa certa desconfiança, um cepticismo, perante um dado adquirido. E assim sendo, se os procedimentos mudarem talvez seja o caminho para a recuperação do património, público e privado, na Rua da Sofia –e, apesar de alguma apreensão, tenho esperança de que assim vá acontecer. Se tudo continuar como até aqui nem aquece nem arrefece. Vou contar-lhe a minha experiência. Tenho um prédio virado para o Terreiro da Erva que quero recuperar. Ando há um ano à volta do processo. Ainda está tudo no zero. Até agora ainda não me disseram o que querem de uma forma clara, nem consegui perceber. Há três entidades envolvidas e, entre si, não se entendem. Para piorar, na última reunião, uma delas faltou. Diga-me lá, isto é alguma coisa? Isto não é um desrespeito? Ou melhor, não há respeito nenhum! Assim, desta maneira, algum particular pode restaurar o seu património? Eu já não tenho paciência e, por isso mesmo, a minha filha é que tem acompanhado estas tentativas de acordo. Ela é geógrafa em uma autarquia próxima, acompanhando de perto estes trabalhos, e enfatiza comigo que nunca viu nada assim. Ela acha que eles não sabem o que querem. Estas entidades continuam a viver o seu dia-a-dia, contrariamente ao que deveriam ser, pro-activos,  desempenham um lugar de impedimento, sem se importarem nada com os privados. Devo esclarecer que não culpo o Departamento de Urbanismo da Câmara Municipal de Coimbra. Esta divisão está à espera da decisão desta troika,  que, até agora, não aparece. Devo salientar também que tenho muito boa ideia do engenheiro Sidónio Simões. É um homem prático. Vejo bem que tem vontade de resolver as coisas rapidamente mas não consegue porque, como disse, as três entidades envolvidas nem atam nem desatam. Nesta recente classificação da Rua da Sofia, se não houver outra forma célere de decidir, esta dignidade pode vir complicar ainda mais. A Baixa, entre outros obstáculos, está em quase completa ruína por causa destas situações. É muito fácil passar a culpa para os proprietários mas eu sinto na pele o que se está a passar comigo e sei bem que não é assim. Esta nomeação seria boa se abrangesse a Baixa toda. Esta zona é um todo. Veja o que se passa na Rua Direita e vias circundantes. Aquilo é um cancro com metástases à vista.
No tocante ao comércio local tradicional confesso que também não tenho muita esperança de que vá melhorar. Se calhar irá ser bom para a hotelaria. Isso sim! Mas oxalá eu esteja enganado e seja bom para todos!”

sábado, 22 de junho de 2013

UNIVERSIDADE DE COIMBRA PATRIMÓNIO DA HUMANIDADE


 Acabou de ser divulgado, há poucos minutos, a Universidade de Coimbra, e por inerência toda a cidade, foi reconhecida pela Unesco como Património Universal da Humanidade.
Num momento gravíssimo, em que os ânimos e as vontades se arrastam pelas ruas da amargura, uma notícia destas tem algo de extraordinário. Para além do político e social tem uma consequência económica que não podemos escamotear. Ao que se diz, pelo menos durante os três primeiros anos o fluxo de turistas mundiais que vão aportar à cidade vai ser incessante. Uma grande salva de palmas para a Clara Almeida Santos e toda uma vasta equipa que trabalhou neste projecto de candidatura. Se a história não se faz em cortes horizontais mas, tal como o destino, é uma subsequência, um continuum de acções praticadas desde o primeiro acto, naturalmente que não podemos esquecer todos aqueles que se bateram e pugnaram para que esta realização importantíssima fosse possível. Muitos parabéns a todos. Congratulação para todos nós. Parabéns a Coimbra.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

EDITORIAL: A MORTE COMO FINAL FELIZ



 Esta semana, a vinte metros da Praça Fausto Correia –outrora chamada Machado Assis-, na zona de Celas, em Coimbra, uma senhora de 74 anos espetou uma faca no abdómen vindo a ser encontrada por familiares numa poça de sangue e já sem vida. Em Fevereiro, a uma dezena de metros desta praceta, também um meu amigo colocou termo à sua existência. Segundo um residente próximo, nos últimos dois anos, 8 pessoas recorreram ao suicídio num raio de uma centena de metros. Nenhum jornal da cidade relatou a morte desta senhora.
A primeira questão que nos ocorrerá é tentar perceber se a zona terá algo de fatídico. Penso que não. Estes factos estão apenas associados à grave crise emocional que atravessa o país. Lembrei-me de escrever sobre este caso ao ler que “o consumo de medicamentos antidepressivos disparou no último ano,  revela o relatório da Primavera do Observatório Nacional dos Sistemas de Saúde, apresentado esta terça-feira em Lisboa.  "De facto, há um acentuar dos problemas de saúde mental, normalmente muito associados ao desemprego. Está a aumentar o consumo de antidepressivos e isto é um alerta, afirma à Renascença a coordenadora do estudo, Ana Escoval.” 
Outra questão pertinente é tentar entender até que ponto, com o argumento de que o suicídio é desencadeado por simpatia, os jornais, com esta segregação de notícias e na maioria dos casos apresentando estas mortes como de causas desconhecidas, estarão ou não a contribuir para falsos diagnósticos e diminuição de um alerta social que urge discutir. Ou seja, com o argumento de que se deve proteger a colectividade para estímulos de ordem simpática, que levem à imitação de procedimentos, até que ponto não estará esta sonegação de notícias a evitar o debate público sobre uma saúde mental cada vez mais precária?
Os cortes na saúde nos países desenvolvidos e em vias de desenvolvimento estão a ser brutais. Ainda há pouco visionei um vídeo da histeria de uma médica nas urgências no Rio de Janeiro perante o excesso de trabalho da sua unidade hospitalar e, com centenas de pacientes em fila de espera, em que o encerramento de outras periféricas era uma constatação.
Depois de vinte anos de um Serviço Nacional de Saúde quase excelente, em que a vida era colocada acima de qualquer outro valor ou interesse, hoje assiste-se a uma degradação continuada dos serviços públicos e em que cada vez mais a morte provocada, sendo uma libertação das agruras existenciais, é um acto individual, pensado e escolhido, de final feliz. Com os aumentos das taxas moderadoras e sem dinheiro para se adquirir medicamentos, o suicídio é cada vez mais uma alternativa à saúde primária dos portugueses. Talvez valha a pena pensar nisto.

quinta-feira, 20 de junho de 2013

LEIA O DESPERTAR...



LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA 

Para além  do texto "UMA FOGUEIRA NO ROMAL", deixo também as crónicas "UM MURRO CONTRA A SOLIDÃO"; "UM ÍCONE DEBILITADO"; e "VIDAS ERRANTES (1)"


UMA FOGUEIRA NO ROMAL

 É quarta-feira, dia 12. Pouco passava das 20 horas. No Largo do Romal começaram as populares fogueiras de São João. O sol, espalhando sombras num entardecer de generosidade divina, vai-se preparando para se pôr no horizonte. Como trepador a subir a montanha, o brilho do astro-rei, paulatinamente, vai subindo cada vez mais alto na torre da Igreja de São Bartolomeu, ali mesmo ao lado.
No recanto mais típico da Baixa, com mais de cem anos de historial de fogueiras mandadas por alturas dos santos populares, as cerca de vinte mesas, pertencentes às duas tabernas existentes no pitoresco local, espalhadas por metade do terreiro, estavam praticamente completas de todos as cores e quadrantes, social, político e religioso. O prato mais pedido era o das sardinhas assadas com pimentos.
Com ar descontraído, à civil, estava um agente da PSP que diariamente patrulha estas ruas estreitas; embora fora de serviço, mas polícia não desliga, e, como tal, sempre a varrer o ambiente. A verdade é que ali respirava-se paz, concórdia, e tolerância com todos os credos e profissões.
Numa mesa mais ao centro, a conviver com amigos, estava o Manel, que, há vários anos, nunca perde uma alegoria destas. Estão ali as suas reminiscências. Nos idos anos de 1970 trabalhou ali mais de uma década numa antiga firma de eletricidade, hoje, já desaparecida.
No lado esquerdo, em pé, a beber uma cerveja e a conversar com o Bruno, está o Naifas, o cigano, perfeitamente inserido neste ambiente multicultural.
No lado direito, como farol em dia de nevoeiro a romper a imensidão, o Emplastro, com o cabelo empastado em brilhantina, varria tudo em redor à procura de uma garina que lhe servisse de porto de abrigo.
Para trás e para diante, a coxear, o pintor Isaías, com as calças todas sarapintadas de tinta, ensaiava uma abordagem a uma virgem quarentona.
Descomplexados, prontos a curtir o som da orquestra, o Jacinto e o Anacleto, cabo-verdianos, de cor de pele achocolatada, com chapéu de palha na cabeça, irão mostrar como se dança verdadeiramente uma morna caliente.
Numa mesa de canto, a Lurdinhas, à espera de um prato de sardinhas, trocava um olhar de enleio com a sua companheira, ao mesmo tempo que, sub-repticiamente, não fosse alguém ver, lhe afagava uma das papudas mãos.
Bateram as 22 horas. O conjunto contratado pela Junta de Freguesia de São Bartolomeu, numa réplica de Tony Carreira, deu início ao bailarico.
A menina Etelvina, viúva dos pés à cabeça, abriu o salsifré a dançar com a dona Estefânia. Ao lado, o Xico, polidor de esquinas de profissão, com uma grande porca no focinho, quase que embatia nestas pobres e inocentes almas, residentes numa ruela ali próximo. A roda começou a encher-se nas músicas convidativas de Emanuel e Quim Barreiros. Ao som da banda Mar & Samba, com o Toy e a sua inconfundível boina à Che na bateria, podia ver-se o Toino Manias a exibir-se, dançando sozinho. Mais ao lado, toda enroscada no seu querido, a Marquitas, que habitualmente a esta hora costuma estar a trabalhar na avenida, ali próximo, alugando o corpo a retalho e resguardando a alma, mas hoje, a entrar na noite de queima de todas as calorias, nem o seu melhor cliente a faria arrancar dali. Aliás, por causa das coisas, até desligou o telemóvel. Nesta noite de festa popular, o único que a vai ter nos braços é mesmo o seu Isquim, o seu bacano mais que tudo. É o amor da sua vida. Que pena às vezes se aborrecerem sobretudo quando ele está com a buba, esquinado, e lá vem um sopapo desnecessário do raio da besta do homem. Mas que se há-de fazer? Pensa a trabalhadora do turno da noite para si mesma. Ninguém é perfeito e há muito que deixou de acreditar na vinda do seu príncipe encantado montado num cavalo branco.
Por cima dos pares de dançarinos, as bandeiras de papel mostravam querer imitá-los e pareciam também bailar em fustigo de uma aragem mais afoita.
O vinho, robusto e bem encorpado, misturado com o cheiro a sardinha assada, corria a rodos pelas largas dezenas de gargantas sequiosas. E vieram as 23 horas.
Como de costume, e legitimamente, Carlos Clemente, o presidente da Junta de Freguesia de São Bartolomeu, o obreiro e continuador destas fogueiras que têm mais de um século, a queimar os últimos cartuchos, em fim de mandato pela representação dos fregueses e extinção da freguesia, no meio do improvisado palco, interrompendo a sequência de músicas portuguesas, disse: “Boa noite. Muito obrigado por terem vindo. Valeu a pena vir à Baixa e ao Largo do Romal. É um trabalho de quatro pessoas, que nos honra trabalhar para Coimbra e, em particular, para a Baixa. Às 01H30 acaba! Os meus pedidos de desculpa para os moradores mas é por uma boa causa”.
Nas muitas janelas em volta do largo apenas uma mostrava vida, emoldurada com uma senhora de rugas avançadas. Todas as outras fenetres estavam envoltas em silêncio de sepulcro.
A festa continuou com a cantiga popular “Bairro Alto com seus amores tão delicados”, e, mais uma vez, a Fany, toda apertadinha das coxas até aos seios, num repente de solavanco, puxou para junto de si o Evaristo, mais conhecido por sorrisos, que, por acaso, estava mesmo contente, não se sabe se pelo calor emanado do corpo da Fany se dos vapores etílicos do carrascão sangue de Cristo.
Este ano, tal como em anos anteriores e sem fim de reinado à vista, o rei da dança foi o Jorge, acompanhado da Andreia. A imitarem Richard Gere e Jennifer Lopes, no filme Dança Comigo, naquele terreiro de calçada portuguesa, pareciam anjos de algodão a voar em céu azul. Também repetindo o ano passado, Barbosa de Melo, acompanhado pela simpática esposa, picou o ponto. Como a dizer aos presentes que, embora da mesma cor partidária do antecessor, era fermento de outra massa, o candidato pela Coligação por Coimbra espalhou charme no encantador Romal.
O mandador improvisado das marchas, que este ano substituiu o histórico Carlos Mendes, como pavão, levantou o pescoço, sacudiu os ombros, ajeitou a camisa, e subiu ao palco. A próxima meia hora era dele. Acompanhado pelas melodias de sempre, o homem lá ia ordenando como podia aquele exército mal-amanhado, mas tudo tão ordeiro naquela amálgama coletiva, através da dança e da música, como elos de interstícios integradores, a contribuir para uma Baixa que, apesar do pessimismo presente, se anseia próspera e melhor.



UM MURRO CONTRA A SOLIDÃO

 Cerca das 20h00 de quarta-feira, da semana passada, ouviu-se um estrondo na sem-vivalma, deserta, Rua Eduardo Coelho. Por ainda estar na loja, assomei à ponta da rua e vi um indivíduo completamente a cair para todos os lados, que mais parecia uma cana no canavial tocada pelo vento. Como aparentemente não detetei algo justificativo do barulho recolhi ao meu cantinho. Passados uns dez minutos vieram dois residentes e perguntaram: “você não tem o contacto do telefone das funcionárias da sapataria Teresinha? É que está lá um vidro da montra partido. Já ligámos à polícia!”
Não tinha o número de nenhuma das funcionárias. Entretanto veio um carro da PSP que tomou conta da ocorrência. Por coincidência, ou não –a dar provimento ao aforismo de que o criminoso volta sempre ao local do crime-, o presumível agressor passou no mesmo local. Naturalmente que o indiquei ao agente, embora apenas como suspeito, uma vez que não presenciei o facto. O cívico lá o identificou e, mais que certo por falta de provas, não poder fazer mais nada, lá foi o homem à vida. Com certeza a pensar que a existência de quem não apetece fazer nada é uma chatice das grandes, a matutar como é que haveria de expurgar a solidão que o consumia, e em descarregar a sua ira, a sua frustração, em uma qualquer outra loja. Se até lhe correu bem, porque não tentar mais uma e outra vez? Se calhar, uma montra de sapatos, cujo estabelecimento dá trabalho e emprego a duas pessoas, para este vadio, simboliza o paradigma da riqueza abastada e culpa projetada da sua pobreza –essencialmente espiritual, porque é dos muitos que por aqui vagueiam e nunca fizeram nada de útil. É de supor que receberá o RSI, Rendimento Social de Inserção.
Duas interrogações se retiram deste anómalo facto. A primeira, porque não colocam os lojistas o número de contacto de telefone na montra do estabelecimento? A segunda, nestes casos concretos de agressões públicas e particulares ao património, o que se espera para registar os acontecimentos e retirar o RSI a esta cambada de inúteis, que, quase num gozo displicente, só prejudica quem trabalha?



UM ÍCONE DEBILITADO

 Victor Campos, o mais velho dos irmãos com o mesmo nome, uma das cintilantes estrelas da Académica dos finais de 1960 e princípio de 1970, de 69 anos, sofreu na semana passada um AVC, Acidente Vascular Cerebral, muito grave. Segundo alguém próximo, muito amigo e de lágrimas nos olhos, “foi mesmo muito grave, mas, felizmente, já está estabilizado. Caramba! A vida é muito injusta!”
Quis o destino que nos últimos meses tivesse a sorte de voltar a reencontrar os irmãos Campos e, particularmente, a simpatia do Victor Campos. Desde Fevereiro que, à noite e quase todos os dias, nos encontrássemos no Café Trianon. Naquela sua forma de menino intemporal, com caracóis ao vento e boné à anos 30 enterrado na cabeça, voltámos a recordar o velho Mandarim e as suas histórias, onde veio à baila os tão conhecidos empregados do celebérrimo café da Praça da República, desde o Mendes, ao Talina, ao Tarrafa, ao Hugo ao Pardal, ao Fernando Gomes e outros tantos que agora não lembro. Prometi-lhe que, como lá trabalhei, um dia destes publicaria algumas histórias que escrevi sobre o velho café do senhor Antunes neste jornal. Ficou assente que o avisaria para que ele pudesse ler.
Foi com profunda consternação que a notícia caiu como uma bomba no mais afamado café da zona de Celas, o Trianon, na Praça Fausto Correia. A partir daí, diariamente, ao serão, o tema da tertúlia não mais deixou de ser o mesmo.
Com um enorme abraço de amizade, faço votos, muito sinceros, para que o “nosso” Victor recupere depressa deste abalo telúrico que invadiu o seu corpo e saia depressa da convalescença forçada.


VIDAS ERRANTES (1)


 Há dias vi-o transpor a porta da minha loja. Eu estava a falar com um cliente. Cumprimentámo-nos, e, rapidamente, depois de um olhar intuitivo que a racionalidade não explica, eu disse: adivinho que precisas de falar comigo. Agora estou ocupado. Vem um dia destes, vamos almoçar e conversamos. E o João André –vamos tratá-lo assim- deu meia volta e foi-se à vida. O João, de 33 anos, foi colega da minha filha. Ambos têm mais ou menos a mesma idade. Nos tempos de estudantes na Universidade eram muito amigos e frequentou a minha casa. O André é um rapaz alto, todo charmoso e do género em que uma mulher volta o pescoço duas vezes para o rever.
Há dias, na sexta-feira 31 de Maio, próximo da hora do almoço, sem se fazer anunciado, mais uma vez transpôs a porta e, na sua voz pausada, mansa de ovelhinha tresmalhada e abandonada, interrogou: “posso ir almoçar consigo?”. Foi então que me fixei no João. Barba por aparar de várias jornadas, em aspeto desleixado, de chinelos e com os pés muito sujos, calças descosidas nos fundilhos e a ver-se as cuecas, uns tiques perfeitamente notórios de alguém que está descompensado psiquicamente e um horrível cheiro intenso, parecido com inalações de uma esterqueira, saído de um corpo que já não sentiria água há muitos dias. Fomos almoçar ao pequeno snack onde vou diariamente contentar o estômago. Sentámo-nos na pequena sala. Estou convencido que, para os donos da casa e para os clientes presentes, o smel que invadiu o pequeno estabelecimento foi a prenda negra de um dia que, especulei, já não seria brilhante. Fiz de conta que o incomodativo odor era de um prado verde com cheiro a jasmim. Reparei que o João comia sofregamente como alguém que já não ingeria alimentos há uns tempos. Fomos conversando calmamente sem atropelos e de modo a que ele não sentisse que eu estava a invadir a sua privacidade –sem acreditar totalmente na reincarnação, estou convencido que noutra vida passada eu teria sido psicólogo. Não exatamente assim chamado, porque o ramo da ciência da mente e da alma tem escassas décadas, mas qualquer coisa parecido com confidente e tratador de ânimos em desalinho. E o André, enquanto ora dobrava ora desdobrava o guardanapo compulsivamente, começou a falar: “sou do Alentejo; de uma típica localidade alentejana, de casario baixo, caiado de branco e portadas a azul-cobalto. Depois de saltar de trabalho em trabalho, arranjaram-me uma colocação na vila e sede de concelho. Apaixonei-me por um médico, não me aceitaram, incluindo o meu pai, que ameaçou matar-me, apertou-me a garganta –e levou a mão direita ao pescoço. A minha mãe não se importou. Tem medo dele. Ela só está na sua companhia pelo conforto financeiro que ele lhe dá. Ela tem medo dele. Lembro-me de a minha mãe se ter tentado matar por duas vezes, era eu ainda uma criança”. Em gestos exaustivos sem controlo, levava a mão ao cabelo, olhava para o lado, sorria sem nexo de causalidade. Tragava a comida com voracidade. Fez de uma côdea restante um guardanapo para limpar completamente o prato e deixá-lo a brilhar. Despejou o molho sobrante sobre a peça vidrada, pediu mais pão e repetiu a mesma operação, como se, através do quadro figurativo, lambesse o prato redondo com os lábios sequiosos de comida.
Mais uma vez, recorrendo à intuição, enfatizei: o teu pai foi militar e não aceitou a tua homossexualidade… Sim, foi da marinha”, respondeu. Enquanto tragava uma garfada do delicioso bacalhau com natas, pensava neste estranho país que é o nosso. Legaliza-se o aborto, homologa-se o casamento gay, aprova-se na Assembleia da República a lei da adoção para casamentos do mesmo género. No entanto, no que é básico, que é o apostar na educação, ensinando o respeito pelas diferenças de cada um, na tolerância, contribuindo para a felicidade individual, não se faz absolutamente nada. Continua-se a fazer de conta, para o exterior, que somos uma nação modernaça, quando, de facto, salvaguardando a exceção, somos um rebanho de pacóvios, rústicos, intolerantes e defensores de uma masculinidade macho-latina, heterossexual, que nunca existiu.
Continuava o João, “nunca mais quero ver o meu pai. Para mim, ele não existe, morreu!” – o destino é cruel, pensava para mim em solilóquio com os meus botões. Como se eu não soubesse bem, sentindo na pele, as relações entre pai e filho. Entre os meus amigos, estou rodeado de casos parecidos com o deste André. E sendo assim, se acaso não fosse imparcial, a julgar numa leviandade notória, teria o direito de condenar este pai, assim sem mais nem menos? Como não relevar a sua frustração? Como não entender que, certamente num esforço sem precedentes, deu tudo a este filho, proporcionando-lhe instrumentos, através de um curso universitário, para que fosse uma pessoa realizada, respeitável e com família? E o que recebeu em troca? Um alcoólico, um pródigo, que não liga nada, e não dá valor, ao que lhe cai no regaço sem esforço. Para piorar, sendo de uma aldeia pequena do Alentejo, onde todos falam da homossexualidade, com desdém, chamando aos diferentes paneleiros, como aceitar um filho assim? É fácil? É sim, desde que o primogénito seja do nosso vizinho. Felizes daqueles pais que têm herdeiros certinhos, pensava eu enquanto o João emborcava mais um copo de tinto.
Ao menos, posso ligar à tua mãe? Interroguei. Na afirmativa, deu-me o contacto. Mas precisas de ajuda urgente, João –continuei. Não sei se sabes mas existe a linha 144, é um programa de assistência de emergência social. Aceitas ir comigo à esquadra da PSP? Liga-se a pedir ajuda imediata, pelo menos para tomares banho e te darem uma roupa lavada. Aceitas? Aceitou. E fomos para a polícia. (Continua na próxima edição).