quarta-feira, 5 de agosto de 2009

O TERRÍVEL ANÁTEMA DE SER VELHO





 O homem, todo curvado sobre duas bengalas fortes de madeira, dirige-se-me: “quanto custa aquela peça?”. Respondi, mas não fiquei com a certeza de ele ter percebido. Não era pelo facto de ouvir mal, e até ter um aparelho no ouvido direito, nada disso. Ao velho que estava à minha frente pouco lhe interessava o preço daquele artigo que lhe lembrava a sua meninice por volta da década de 1920. “Nasci em 1922. Já vivi muito. Estou muito velho”, confidencia-me com embargo na voz.
Sempre que posso converso com idosos. Gosto de os ouvir. Tenho a certeza que é pelo facto de eu gostar de escrever. Vou buscar muita coisa a estes diálogos. Não faço mesmo nenhum sacrifício. Na minha loja, onde trabalho, já conversei com dezenas, talvez centenas. Não é “conversar” apenas por “conversar”. É ouvir com atenção as histórias que me querem contar. Sem grande enfado, escuto e tomo notas. Mais tarde escrevo parte da conversa, ou um pequeno trecho que me ficou na memória.
Já conversei com pintores que morreram de velhice. Lembro-me por exemplo de um que me marcou profundamente o velho Hébil. Morreu há cerca de uma década. Aprendi muito com ele. Era uma figura carismática. Com um ego maior que a torre da Universidade. Cheio de ratice –normalmente, os artistas para o negócio são uma lástima. Pois, a contradizer todos, o Alberto Hébil, para além de “ser o maior pintor do mundo”, como me dizia com ênfase, era um comerciante de excelência. Conhecia o género humano como ninguém. Todas as suas fragilidades e pontos fortes. Defendia teses que ninguém acreditava nelas a não ser ele próprio, ou, se calhar, nem ele mesmo. Passei muitas tardes a conversar com ele, sempre que o meu trabalho o permitia.
Os velhos querem apenas alguém que os escute. Eu sei isso. Quando hoje, na loja, entrou o senhor Fausto –como disse chamar-se- a perguntar um preço, pela minha experiência, sabia que ele apenas queria conversar com alguém. E não me enganei, era mesmo isso, confessou-me mais tarde. “Tenho 87 anos. Passo dias que não converso com ninguém. Os meus amigos já morreram todos. Hoje as pessoas mais novas não conversam…não têm tempo para os mais velhos. A minha mulher está ali, naquela clínica, está a ver? Coitada! Mal me conhece, já não profere uma palavra. Só os seus olhos “falam” quando me vê. Todos os dias vou vê-la. Fui muito feliz com esta mulher. Uma pena estar assim –e as lágrimas saltaram-lhe daqueles olhos claros. Sabe, não tenho vergonha de o dizer, choro muito. Estamos casados há 27 anos. Foi o meu segundo casamento. Do primeiro não fui feliz. O remédio foi mesmo separar-nos. Mas este segundo casamento foi tudo. Foi o paraíso em folhas-soltas de vida. Foi lindo. Sinto tanta falta dela em casa. Daqui a pouco vou vê-la, estou lá cerca de uma hora, e depois vou para casa. É lá que passo a maior parte do tempo. Se não fosse o meu amor não viria para a Baixa. Custa-me muito andar. Eu moro lá em cima…na Alta da Cidade…está a ver? É na rua que vai do largo até à Cruz, já viu onde é, não já? Pois! É essa mesma. Se não fosse a minha saúde e a da minha mulher, até estaríamos bem. Não tenho filhos. Nem deste nem do anterior casamento. Dinheiro não é o nosso problema. O que temos dá para viver desafogadamente. Sempre vivi bem. Conheço quase toda a Europa. Paris, então, foi a minha segunda pátria. O meu pai foi fulano, conheceu? O meu avô, foi beltrano. Um homem muito culto. Deu muitos livros para o museu Santos Rocha, na Figueira da Foz, em 1904. Ainda guardo o original da carta de agradecimento do museu. Quer ler? Um dia destes trago-lhe uma fotocópia.
Vivemos tempos complicados –está a ouvir-me não está?-, todos se sentem com direitos e ninguém com deveres. Mas, olhando para trás, afinal, nem é de surpreender. Somos um povo esquisito. Está a ver aqueles prédios ali na avenida Fernão de Magalhães, junto à Segurança Social? E aqueles na Rua António José de Almeida, junto ao Ténis e Sport? E aqueles ali na Rua Gomes Freire? Foram todos construídos na década de 1950/60 pelo Filipe. Veio da América riquíssimo. Era um tipo muito cordato e humilde. Conheci-o bem. Tinha cinco filhas. Todas casaram bem. Pois, olhe, quando ele chegou a Coimbra e começou a mandar construir vários prédios aqui na cidade, sabe como lhe chamavam em surdina? O “Ganster”. Pobre gente miserável. Não podem ver uma camisa lavada a um qualquer. Se estiver vestida num pobre, é porque este a roubou. Se estiver vestida num rico é porque este matou para enriquecer. Sempre fomos assim. É a inveja que , como maldição, nos há-de arrastar pelo mundo. Nunca passaremos da cepa torta. É uma pena, não é?”, interroga-me, ao mesmo tempo que se levanta para ir então visitar a esposa.
Com as mãos ocupadas nas duas bengalas, arqueado para a frente, levanta a cabeça e, num misto de agradecimento, interroga: “posso voltar outro dia?”

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