terça-feira, 25 de abril de 2023

MEALHADA E AS COMEMORAÇÕES DO 25 DE ABRIL

 






1 - O dia, ensolarado e bem temperado com a canícula, não convidava a grandes elucrubações, meditações, sobre o passado. Relativamente perto, a cerca de quatro dezenas de quilómetros, o mar, esparramado na areia fina, parecia enviar convites apelativos e invisíveis.

Embora a data de 25 de Abril, com feriado registado no Calendário Gregoriano, fosse de apologia, exaltação, pelos significados transformador e revolucionário, a verdade é que, por volta das 11h00, a cidade da Mealhada estava mais calma do que noutros dias de semana, com pouco ou nenhum movimento nas suas ruas e ruelas interiores. Até as sombras avançavam devagar.

O Café Cote d’Azur, para feriado de início de semana e contrariamente ao habitual, estava a meio-gás. Metade das mesas e cadeiras apelavam a quem as ocupasse. A trocar as voltas ao ritmo frenético costumeiro – “dois galões, três bicas, um Martine e um pastel de nata”-, o senhor João, o empregado de mesa e embaixador de boa-vontade da gerência, funcionava em rame-rame.

Numa mesa, a cumprimentar quem entrava, o Marcial, o “Menino Mota”, figura icónica da cidade, do alto das suas 65 primaveras, fazia as honras da casa.

Tendo em conta a efeméride da implantação da Liberdade, estranhamente, ou talvez não, nem um único cliente ostentava um cravo vermelho na lapela.

Noutra mesa ao lado, a professora de música Maria Antónia Mota, como mãe-galinha que protege o seu pintainho, envaidecida pelo sucesso do adolescente na recente Gala da TVI, “Uma Canção para Ti”, conversava e aconselhava o seu pupilo Pedro Pimenta, natural de Luso. O “miúdo”, de apenas 14 anos, esguio e de altura considerável, com cabelo encaracolado à “Tom Jones” dos idos anos de 1980, calça e blusa cavada com rendas justas ao corpo e em redor do pescoço um colar a imitar pérolas, no visual de artista, dá para ver que está a conquistar o seu espaço carismático no difícil mundo do espectáculo.


2 – Há mesma hora, como quem diz 11h00 batidas na igreja paroquial, decorria já há cerca de quarenta e cinco minutos a sessão solene da Assembleia Municipal especial evocativa ao 49º 25 de Abril no Salão Nobre da Câmara Municipal, e transmitida para o Mundo via “streaming”, no YouTube.

Lá dentro, nos assistentes e intervenientes, a forma de vestir dividia as ideologias. Se era simpatizante da esquerda (PCP) as vestes, em completa informalidade, eram constituídas por calça de ganga, t-shirt ou camisa aberta por cima da cintura – cravos só na mão.

Se era do centro/esquerda (PS) a forma de apresentação, como marca de distinção, assentava num fato e gravata de cor ligeiramente escura e sapatinho bem polido – e cravo vermelho na lapela.

Se era do centro-direita (PSD) a inclinação ia para o desportivo com pullover e camisa aberta e calça branca – cravos vermelhos ao peito, presumidamente, poucos ou nenhuns.

Se era simpatizante/apoiante do Movimento Independente Mais e Melhor a indumentária era uma parte da esquerda e outra parte da direita – ou não quisesse este movimento político local implantar-se e conquistar território ao PS e ao PSD. A forma de vestir era o fato institucional e camisa branca aberta, sem gravata – e com cravo no bolso pequeno do casaco.


3 – Quanto aos discursos no seu pendor interpretativo e ideológico, o PCP, pela voz do deputado João Louceiro, fez uma resenha do antes e do depois, aqui com críticas sublinhadas à Comunicação Social e ao imperialismo conduzido pelos Estados Unidos e aos lucros obscenos das grandes empresas em detrimento de mais de dois milhões de pobres. E rematou a intervenção com “25 de Abril sempre, fascismo nunca mais”.


Por parte da Coligação “Juntos pelo Concelho da Mealhada”, que agrega o PSD, CDS-PP, Iniciativa Liberal, Movimento Partido da Terra, Partido Monárquico, falou Pedro Semedo. Com um naipe relatado de conquistas no longínquo ano de 1974, criticou o analfabetismo ainda vigente no país e, em contradição, enalteceu a vinda de estrangeiros em busca de tratamentos médicos. “Abril vai-se cumprindo”, disse. E continuou, “a utopia de uns seria o pesadelo de todos os outros”. “A liberdade conquistada é o valor mais valorizado (…)”. “A brutalidade do totalitarismo”. “Vivemos dias difíceis”, enfatizou. Para logo a seguir afirmar que “há uma ideia generalizada de que o mundo está pior, não é verdade”. E terminou com “viva o 25 de Abril, viva a Liberdade e viva a Humanidade”.


Pelo PS, pela voz do deputado municipal João Silva, abrindo a porta do passado, resumidamente foi contada a história da ditadura em Portugal dirigida à sombra de Salazar.

E, já mais virado para dentro com uma longa lista de conquistas, disse: “curiosamente, em todos os campos que nomeei, o Partido Socialista teve um papel de criador”.

E criticou alguém: “na Mealhada temos de continuar a pugnar por um Concelho mais forte. Parece que andamos adormecidos e a assobiar para o lado no que a isso diz respeito, condenando as gerações futuras e o próprio Concelho, desculpando-nos consecutivamente com o passado, tem de haver capacidade e rigor”. E terminou com um elogio a vários fundadores do PS e uma salva: “Viva o 25 de Abril. Obrigado


Pelo Movimento Independente Mais e Melhor, pela voz de André Melo, num discurso cáustico, a tocar o pessimismo, foi dito queTinha por certo que em 2024 estaríamos a celebrar a consolidação democrática. Que viveríamos numa sociedade de iguais e sem castas e onde os todos teríamos as mesmas responsabilidades, oportunidades, obrigações e direitos. (…) Não sei se foi apenas ingenuidade ou se realmente durante algum tempo estivemos nesse caminho. Sei que hoje verifico que não estamos”.

E prosseguiu, Continuamos a ter uma imprensa muitas vezes condicionada pela “câmara corporativa” dos velhos poderes, seletiva nas opiniões e com agenda. (…) Com intromissões à gestão infantis de políticos que claramente não têm categoria para o cargo, seja a nível local na Ersuc com claros choques éticos e até legais entre a administração da empresa e o poder político que a devia escrutinar. (…) Não serão os populistas, os extremistas ou os fascistas a matar Abril!” (…) Viva o 25 de Abril”.


4 - Por parte de António Jorge Franco, Presidente da Câmara Municipal, foi contado o nascimento da revolução vista na sua tenra idade e da sua janela. Deixou bem vincada a esperança num amanhã melhor, “ é nossa responsabilidade continuar a construir um Concelho mais justo e mais próspero onde todos os cidadãos tenham as mesmas oportunidades e os mesmos direitos”. (…) “Viva o 25 de Abril, viva a Mealhada, viva Portugal”.


E a encerrar a sessão discursou Carlos Cabral, Presidente da Assembleia Municipal. Falando de improviso, sem papel escrito previamente, “comemorar o 25 de Abril é sempre um dia de emoção”.

E continuou: (…) “não é fácil trabalhar com as limitações que o poder central, regra geral, estejam os governos que estiverem, com as migalhas que vêm para as autarquias”.

E continuou: “eu queria felicitar o nosso Presidente da Câmara pelo trabalho que tem desempenhado neste mandato. O nosso Presidente merece o nosso profundo respeito, porque sendo um homem com muita bonomia, certamente está a modificar a mentalidade existente (…). Ele, hoje, é um exemplo vivo do que é uma pessoa com muita simpatia e, sobretudo, com grande capacidade de trabalho (…)”.

E terminou com “Viva o 25 de Abril, viva Portugal”.


segunda-feira, 24 de abril de 2023

O 25 DE ABRIL VISTO DA MINHA JANELA


 

(CRÓNICA ESCRITA EM 2015)




Quando se anunciou em Coimbra que tinha havido uma revolução em Lisboa eu tinha 17 anos de idade e estava a trabalhar numa loja de comércio da Baixa. Até aí, desde os dez, eu laborara na hotelaria. Trocar o servir à mesa por ir atender ao balcão a vender trapos foi uma transferência extraordinária. Não pelo ordenado, já que, em comparação com um qualquer café, era menor. Nessa altura a vida comercial estava considerada num plano superior. Isto é, a actividade hoteleira era muito mais intensiva, com muito mais horas de labor e, embora já com um dia de folga semanal, trabalhava-se domingos e feriados. Por outro lado, servir num café era muito mais serventuário. Ali era notório o nós, os simples, e os outros, os donos do dinheiro. Estava-se obrigado a um exagerado exercício permanente de servilismo. Se bem que também houvesse classes distintas. Havia os simplórios como eu, que normalmente vinham da região do Luso e zona da Bairrada, que inicialmente eram pau para toda a colher e começavam como grumete, havia os chefes, de balcão, de cozinha e de mesa, e depois existia toda uma classe garbosa, vestida de calça preta, camisa branca e laço, casaco branco e nos pés um sapato preto impecavelmente engraxado. Ser empregado de mesa era o sonho de qualquer miúdo como eu, já que maioritariamente nesta arte se trabalhava à percentagem de 10 por cento sobre o total da caixa. Para além disso havia um costume arreigado de dar gorjeta ao "criado" de mesa.
Num período da nossa história em que dois terços da população portuguesa eram pobres –e estes se dividiam em remediados e pé-descalço-, entrar para o comércio, acima de tudo, foi o poder ser mais igual a qualquer um, já que comecei a vestir melhor, a ter, por exemplo, duas camisas, a não precisar de lavar a roupa durante a noite para vestir no dia seguinte, húmida e enxovalhada. Para além de estudar de noite, continuei a trabalhar aos fins de semana a servir casamentos –conheci um senhor de idade, o senhor Quintas, que me contratava praticamente todos os Domingos. Nunca lhe agradeci em vida a atenção que teve comigo. E assim continuei até casar com 20 anos e ir, a seguir, para o serviço militar, para Estremoz –a título de curiosidade, apanhava o comboio em Coimbra no Domingo à noite com 200 escudos no bolso (1 euro). A viagem ferroviária custava 75 escudos para cada lado. Então, para poupar, juntamente com o Jorge, a trabalhar na altura no Cruz Oculista, na Rua Adelino Veiga, e hoje estabelecido na Rua Corpo de Deus com o mesmo ramo, vínhamos à boleia no regresso. Ora poderia acontecer, como aconteceu tantas vezes durante as cerca de três centenas de quilómetros, sermos transportados num Mercedes como em cima de uma camioneta de caixa-aberta.
O tempo foi correndo e, tal como o meu amigo Jorge, trabalhando muito, muito, estabelecemo-nos por conta própria e fomos comprando o que nos fazia falta, o que era essencial para o bem-estar como habitação, e podermos proporcionar aos nossos filhos tudo o que não tivemos. Sem lhes exigir muito em troca, apenas pelo prazer de dar, oferecemos-lhes todas as ferramentas que poderiam concretizar os seus sonhos –nesta realização revíamo-nos. Éramos nós também quem estava ali. No dia em que a minha filha entrou para a Faculdade de Psicologia chorei como uma criança. Passado um tempo, como morava fora da cidade, comprei-lhe um carro para que ela pudesse estar mais à vontade nos transportes. Tal como o Jorge, as dívidas que assumimos cumprimos sempre. Somos herdeiros do compromisso, onde a palavra dada vale mais que toda a riqueza universal. Nunca fomos ao banco pedir dinheiro para ir para férias. Praticamente nunca viajámos para fora, e do mundo não conhecemos nada. O nosso lema era trabalhar afincadamente enquanto éramos novos para quando chegássemos às portas da velhice podermos usufruir do empenho hercúleo anteriormente desencadeado.
Passados quarenta e um anos depois do 25 de Abril de 1974, agora na pré-entrada de sermos sexagenários, o que está acontecer connosco? Estamos aflitos para conseguir aguentar o que temos e continuar a viver com dignidade. É como se agora, já sem esperança, estivéssemos a fazer o percurso descendente, contrário a quando começamos. É como se sentíssemos que não valeu a pena. Foi um esforço inglório. Para piorar, sinto um terrível sentimento de impotência, de nada poder fazer. Estou contente com o balanço? Não. Passados quarenta e um anos, é triste dizer, mas a sociedade portuguesa está demasiadamente igual a 1974. Duas partes são pobres e uma parte é demasiado rica. Não tenho gosto nenhum em fazer parte deste sistema viciado. Não gosto deste Portugal.

sábado, 22 de abril de 2023

MEALHADA: QUINTA-FEIRA HÁ ASSEMBLEIA MUNICIPAL

 





Na próxima Quinta-feira, dia 27 de Abril, pelas 20h30, vai realizar-se mais uma Assembleia Municipal Ordinária no Cine-teatro Messias. Relembra-se que este órgão está obrigado a reunir, pelo menos, em cinco sessões ordinárias, respectivamente, em Fevereiro, Abril, Junho, Setembro e Novembro ou Dezembro. Pode reunir mais vezes em sessões extraordinárias.

Com uma Ordem de Trabalhos variada, em relação às anteriores, pouco ou nada trará de novo. Será mesmo assim? Ou antes pelo contrário?

Será desta que o presidente Carlos Cabral fará cumprir o Regimento, nomeadamente, os tempos de Intervenção do Público, que é de trinta minutos na totalidade e cabendo a cada interveniente cinco minutos para expor (num único assunto preferencialmente) o que o levou a intervir?

Bem como no “Período de Antes da Ordem do Dia” (que deverá ter um tempo de sessenta minutos gerido pelo Presidente e distribuído em função do número de inscritos), com os tempos atribuídos aos deputados a serem respeitados na íntegra e a evitar que o exercício da convocatória se prolongue noite dentro, para além da meia-noite.

Assim como o “Período da Ordem do Dia”, em que a apreciação/discussão a cada ponto inscrito na ordem de trabalhos pelos membros da Assembleia não deve ir além de dez minutos (sem exceder este tempo, pode usar da palavra em duas partes na intervenção). Se a discussão não tiver terminada, haverá um segundo período de intervenções até trinta minutos distribuído pelos intervenientes mas sem exceder os cinco minutos a cada um.

E ainda, conforme a redacção do Regimento, obrigar (todos) os vereadores à Câmara Municipal a estarem presentes nas sessões da Assembleia Municipal.


E NÃO SE PASSA MAIS NADA?


Segundo as previsões meteorológicas do IPMA, ou de uma bruxa, por acaso minha conhecida, é de antever que, num acerto de contas, vai chover granizo entre João Cidra Duarte, Presidente da Junta de Freguesia de Barcouço, e António Jorge Franco, Presidente da Câmara municipal de Mealhada. O caso não é para menos, o primeiro, João Cidra, fartou-se de malhar no segundo, António Franco, em duas edições – última e penúltima – do Jornal da Mealhada.

Se eventualmente as “mocadas” verbais acertaram no rosto de Franco será de prever que o “nosso primeiro”, na próxima Terça-feira, vai aparecer cheio de nódoas negras no Cine-teatro Messias.

Portanto, preparemo-nos para um grande combate verbal entre o eleito pelo PS, em Barcouço, e o eleito pelo Movimento Independente Mais e Melhor, na Mealhada.

Podemos antecipar que o perdedor nesta contenda está obrigado a pagar ao vencedor um leitão no reconhecido restaurante Rei dos Leitões – que, ao que parece, Franco já fez as pazes com o gerente desta famosa casa pantagruélica.

Será mais que provável que o Bloco de Esquerda/Mealhada (mais uma vez) não irá intervir no tempo atribuído ao público. A razão? Sei lá, mas podia alvitrar. Lá poder podia, mas não devo.


UMA TROCA QUE ENVERGONHA

 

(imagem de Leonardo Braga Pinheiro)





Quase batemos de chofre na superfície comercial, ao dobrar um corredor. Era impossível não falar. Ela era uma minha conhecida desde há muitas décadas, eu sabia de todo o seu percurso existencial, desde que nasceu até à actualidade, agora com algumas rugas no rosto e cabelos branqueados resultado de um passado com mais de meio século.

Com a idade a avançar a todo o gás, na qualidade de sexagenário aborrecido e constantemente a fazer o balanço da vida, tenho reparado que me tornei mais “bicho do mato”, fugindo cada vez mais ao contacto com outras pessoas. Por mais dias sobrepostos que passam por mim a correr, a minha maior felicidade é, isoladamente, ler e escrever. Tentar explicar este meu afastamento social, é como se me faltasse a pachorra para conversas vazias e de circunstância. De certo modo, é como se me faltassem os temas para manter um diálogo vivo e interessante; como se o tempo, no seu esmagar de recordações, me levasse, amiúde, a repetir sempre as mesmas coisas; é como se estivesse cansado de me ouvir e farto de escutar os outros. Para os mais velhos, como eu, os tópicos são sempre os mesmos. Em repetição, insistimos no modelo cénico passado a papel químico: então como vai a tua vida? Estás com bom aspecto. E a tua saúde, vai bem? Há muito tempo que não te via…

Para e com os mais novos ainda é mais difícil de entabular diálogo. Aqui noto que o que soçobra é um “bota de elástico”, lá querem eles saber da nossa memória cultural, das dificuldades que passámos, do quanto tivemos que recorrer ao desembaraço, ao desenrascanço para não sermos apanhados em ramo verde. Com defeitos e virtudes, nascemos, crescemos e chegámos à terceira idade como resultado de um circunstancialismo económico, social e cultural.

Evidentemente, os interesses dos mais jovens, como água e azeite que não se ligam, são completamente diferentes dos nossos, dos mais velhos. Afinal, nasceram numa época de desenvolvimento mais rápido que a sombra, molecular, electrónico e digital, como nunca houve outra igual.

Como é normal ao fim de cada ciclo, está para se saber se, como humanos na sua interação, estamos melhor ou pior. Ou seja, se este progresso ao segundo, em busca de uma felicidade perene mas utópica, que é inalcansável, e do menor esforço mental e físico, está a contribuir para um Homem Novo ou, pelo contrário, está a concorrer para um humano perdido, sem crenças em si mesmo, ou no transcendente – por que numa delas, forçosamente, terá de acreditar -, sem saber muito bem para onde se caminha.

Depois da conversa introdutória e de circunstância, que se estabeleceu neste fortuito encontro entre eu e a minha mulher e a minha “amiga” na média-área comercial, atirou: “já não estou com ele… trocou-me por outro… foi viver com um homem. Já viu a vergonha que sinto? Se ao menos fosse com outra mulher, ainda vá que não vá...”

sexta-feira, 7 de abril de 2023

BARRÔ E A VISITA PASCAL

 





Em consequência de haver um único padre na paróquia de Luso, a visita pascal em Barrô foi sempre realizada na Segunda-feira a seguir ao Dia de Páscoa. Neste dia, por cá, ninguém trabalhava.

Embora mais carregada de solenidade sacra, somando à festa das Alminhas, de São José e de São Sebastião, era mais um dia de festividade na povoação. Os residentes vestiam o engomado fato domingueiro - e único, que para além de estar guardado somente para sair em ocasiões especiais, durava toda a vida e serviria para mortalha na última viagem sem retorno.

Enquanto criança nos anos seguintes a 1960, relembro com saudade o ambiente de festa que invadia toda a minha aldeia. As entradas das portas eram todas atapetadas com folhas verdes misturadas com, salvo erro, rosmaninho. A fragrância envolvida, em parafernália de odores, era de tal modo intensa que apagava completamente o cheiro a estrume, aroma que se apanhava facilmente num dia de semana de trabalho árduo no pequeno povoado. Logo de manhã, ao romper da aurora desta Segunda-feira pascal, a minha mãe começava os preparativos para a cerimónia. Depois de, nos dias anteriores, de joelhos, ter esfregado muito bem o chão da sala, de madeira, carcomida pelo tempo, com uma escova de piaçaba e sabão amarelo. A sala, a única divisão com tecto forrado e a maior da casa com melhor apresentação, que no Verão se ajustava para estender o milho para descamisar e a secar e no Inverno para escolher a azeitona, era onde, dos poucos no lar, existiam alguns móveis: um armário muito alto, com várias portas e todo fechado, muito antigo, do tempo dos meus avós, um louceiro simples com espelho e vidros nas portas cimeiras, adquirido a prestações com os denominados “cartões” – e que eu, amiúde, limpava com azeite para o pôr a brilhar -, uma mesa e quatro cadeiras. A minha mãe, depois de ter estendido uma toalha branca, colocava em cima da mesa um bolo doce, de Páscoa, cortado em fatias – que nos dias antecedentes cozera no forno a lenha existente num barracão junto à cozinha, mas do lado de fora -, uma garrafa de vidro com jeropiga, uma tacinha com um pacote de amêndoas às cores -que eu via sem poder tocar, e tentava adivinhar o sabor açucarado, enquanto durasse a exposição e não viesse a comitiva pascal. Logo que a porta fosse transposta pelo acompanhamento, os doces confeitados desapareciam num ápice no fundo de uma saca de pano transportada por um dos miúdos do grupo - e, no centro da bancada, uma laranja com uma moeda de cinquenta cêntimos a servir de coroa ao fruto, e que seria levada também – já que de notas para a côngrua não havia, portanto, não rezavam para a história. Sem poder faltar, havia também em exposição uma jarra com flores e um pequeno crucifixo, com a cruz em madeira e a imagem de Cristo em chumbo moldado – chamado de “bacalhau”, por ser muito achatado. A partir das nove horas, numa ansiedade crescente, todo o lugar parecia estar de sentinela à espera do ansiado toque do sino da capela – sinal de que Monsenhor Mira, acompanhado com um séquito de, creio, três adultos e duas crianças. Vestidos com opas vermelhas e brancas e onde vinha incorporada a esplendorosa e enorme cruz de prata cinzelada e trabalhada um século antes por grandes artífices prateiros.

A seguir ao toque de anunciada começava imediatamente o bradar ritmado da pequena sineta transportada por um dos miúdos. Com o aproximar do “Ding-dong”, “ding-dong”, saído do pequeno sininho, as famílias das casas em redor eram tomadas de uma ânsia apenas explicável pela rara visita do presbítero.

Os vizinhos, pondo de lado as querelas e as arrelias que antes provocaram descontrolo e azedume, tomavam posição na casa em que o Senhor ia ser beijado, e mentalmente pediam perdão por minudências sem sentido. A visita de Cristo à casa de cada um constituía, sobretudo, uma mensagem de paz para com o dono da casa e deste para com os seus confinantes. Quando a pequena procissão entrava dentro de uma casa, com o sacristão, à frente, a carregar a cruz, era secundado pelo prelado que, ao mesmo tempo que pegava no hissope, utensílio usado para aspersão, antes mergulhado na caldeirinha, a borrifar os presentes, pedia a bênção a Deus para aquele lar, humilde ou abastado. E durante, pelo menos, um ano Barrô ficava em paz com a sua consciência colectiva.

Outros tempos!