Eu não te conhecia, Helena. O que me levou até ti, ao teu departamento, foi para resolver um assunto. Enquanto esperava para ser atendido, para preencher o tempo, ia registando tudo ao meu redor.
A primeira pessoa que fui examinando foi a funcionária da entrada, que faz a triagem dos processos e encaminha os utentes para as técnicas respectivas. Reparei que tinha um ar austero de tecnocrata. Mentalmente, fiz analogia entre o seu rosto e a frente de um autocarro. Raramente sorria, ou melhor não ria mesmo. Os utentes chegavam, alguns, reparei, ensaiavam um profundo suspiro, expunham o seu assunto, e ela, friamente, como inquisidora, do alto da sua ilusória importância majestática, interrogava: “de que área é? Pois, mas não é aqui! Quem?...Não está!”.
A sala era grande, demasiadamente enorme, talvez com 60 metros quadrados. Com um pé-direito de alguns cinco metros, era um monstro no campo da decoração. As paredes brancas, despidas de calor humano, eram apenas preenchidas com uns posters com mensagens do tipo “Ser Solidário Agora e Sempre”. Para além de umas vinte cadeiras, metade estavam ocupadas com pessoas de caras fechadas e, certamente, almas despidas de esperança. O que, pretensamente, ali amenizava o ambiente eram quatro vasos com plantas de média dimensão. No canto, a secretária da funcionária e, junto a esta, um armário de chapa de ferro, a fazer lembrar os tempos de tropa. A meio da divisão, uma televisão de último modelo, debitava sons e oferecia imagens…a preto e branco.
Enquanto esperava sentado pressentia a tensão que aquele objecto, por estar mal sintonizado, ou sem antena, emanava naquela sala já de si carregada de desumanidade. Metaforicamente, comparei a tv com aqueles motores dos aquários que agitam as águas.
Entretanto, nos cerca de 45 minutos, enquanto esperava por ser recebido, entrou um miúdo, talvez romeno, com cerca de oito anos, a vender pensos. A funcionária da recepção, rapidamente, deixou de atender um utente e, num rápido, foi em sua direcção: “vai embora!...Lá para fora…rua!”.
Foi então que me chamaram para ser atendido…por ti, Helena. Falámos do assunto que me tinha levado ali. Falaste da tua entrega à causa social, ao funcionalismo público. O tempo controlado que tens para atender pessoas, a frustração que sentes em não poderes resolver a maioria dos casos. Contaste-me o esforço que desenvolveste para resolver a situação de determinadas pessoas, que depois de tanto trabalho, estes, na tua cara, para além de te maltratarem verbalmente, ainda desistiram.
Foi então que tu choraste, Helena. Naquele pequeno cubículo, quase que chorava contigo. Deu para ver o teu estado de cansaço físico e psíquico. Estás no limite, mulher. Tens mesmo de te cuidar. Se o não fizeres, adivinho um esgotamento proximamente.
Mentalmente, enquanto te via e ouvia a desabafar, maldizia-me por tantas vezes fazer um juízo de valor facilitista sobre os funcionários públicos. Ainda, poucos minutos antes, eu estivera a analisar a funcionária da entrada com o mesmo apriorismo anteriormente formado do nada. Na minha injustiça mental, nem por um momento me ocorreu que a empregada da recepção estará cansada de lidar sempre com os mesmos casos, de pedincha, de engano, de exposição de planos de “estórias” previamente orquestradas. Nem por um momento me lembrei que ela, como tu, Helena, são obrigadas a enfiar máscaras de desumanidade para não serem arrastadas neste rio cheio de rápidos traiçoeiros e escolhos de solidão. Carregados de irresponsabilidade de administração, de desleixo, de miséria humana. Até aqui, nas minhas reflexões, nunca pensei que vocês, que todos os dias, lidam com pessoas cheias de vícios, malcheirosas, doentes com hepatites, toxicodependentes, estavam no fundo do cano, no limbo, na fronteira que divide os “bons” e os “maus” deste caldeirão social.
Fiquei comovido contigo, Helena. Tenho a certeza que por esse país fora, nos 700 mil funcionários públicos, a maioria serão como tu, desligados do estatuto e plena entrega à causa Social.
Obrigado, Helena. Desculpa, antes de te conhecer, se pensei mal de ti e de outros tantos teus colegas como tu.
Envio-te, a ti e a todos os teus camaradas, um grande abraço solidário.
Em nome de todos, bem-hajas, Helena.
4 comentários:
Talvez por uma cultura trágica do meu país, sempre encarei os funcinários públicos como os grandes perdulários do tempo alheio, e alguns realmente são, mas temos a obrigação elementar de separar o joio do trigo e enaltecer servidores como a "sua" Helena, muitas vezes vitimas de descontroles e assomos de sabedoria.
Nossa grande miséria,é a condescendência com a incompetencia de centenas, talvez milhares de funcionários publicos que lambuzam-se protegidos na mantra da disfarçatez, humilhando e destratando seus patrôes veradeiros(é o povo que paga seus salários) protegidos pela estabilidade funcional(regido pelo CLT).
Em todos os cantos, em qualquer situação, sempre haverá exceções.
Parabéns pela iniciativa Senhor.
Muito obrigada por ter comentado, Nilza. Aqui também é assim...mas como diz, felizmente há excepções.
Volte sempre. Deste lado do Atlântico, para esse lado mundo, um grande abraço e votos de felicidades.
Tudo de bom.
Obrigada, Luís, por ter conseguido ver para além das fronteiras dos conceitos pré-concebidos sobre as funcionárias públicas do nosso país, sobretudo as que trabalham em sítios como os Serviços de Emergência Social. Obrigada, em nome de todas as "Helenas" que por este Portugal fora se "esquecem" que são mulheres, esposas, mães, para se dedicarem às causas sociais, sem horários, sem pagamento de horas extras, sem sequer um "muito obrigada" dos chefes ou dos próprios utentes que elas defendem e por quem lutam.
É pena, realmente, que as entidades para quem as "Helenas" trabalham não reconheçam o seu mérito e dedicação. É de lamentar as condições em que trabalham, a falta de civismo dos utentes e sobretudo a subsídiodependência que se criou com programinhas mal estruturados que só camuflam as realidades sociais, ao invés de criarem mecanismos para as pessoas se integrarem na sociedade,trabalhando, criando riqueza e estabilidade.
Há muito mais a dizer, por isso, Luís, continue com o seu trabalho e como alguém dizia...faça o favor de ser feliz!
Obrigado por ter comentado. Ainda bem que o fez. É profundo, no sentir do penar diário de quem trabalha sem apoio, sem rede, sem reconhecimento. Tenhamos esperança que um dia destes as coisas mudem.
Um grande abraço sincero.
Volte sempre.
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