Era terça-feira à noite de um dia destes de Julho. Estava naqueles dias em que sentimos o peso do mundo sobre os ombros. Uma angústia que teima em não largar a nossa envolvência. É a crise mundial, são as nossas dificuldades estruturais nacionais, é a cidade que, como cana no canavial, balança para um lado, balança para outro, mas não sai do mesmo sítio. É o meu cão, raio do rafeiro, que teima em tornar-me a vida impossível. Rói tudo a eito. Começa na vassoura, vão os chinelos, os gatos e até as galinhas. Fogo! Só preocupações!
Neste oceano de maldições em surdina, “peguei” –como quem diz, roguei, encarecidamente- na minha “cara-metade” e convidei-a a ir beber um café ao Parque Verde da cidade. É que, para mim, sempre foi assim. Um extenso lençol de água, como o mar, um lago, ou um rio, relaxa-me profundamente. Então, se for ao entardecer, com o sol a estender-se ao comprido com os seus raios sobre aquela manta brilhante de água resplandecente, a formar um raio de luz, desde o ponto onde nos encontramos, até ao astro-rei, lá longe, no horizonte, provoca-me uma espécie de clímax espiritual. Posso estar muito angustiado, cheio de ansiedade, mas, perante aquele quadro sublime de rara beleza da natureza, sinto, todas as tensões a esvaírem-se como fluídos a saírem do meu corpo e a entrarem naquela projecção avermelhada, em forma de espelho, como se, hipoteticamente, fosse emanada de Deus.
Sentámo-nos então numa daquelas bonitas esplanadas do Parque Verde, em frente ao rio Mondego, com a encosta de Santa Clara em fundo e vários barcos brancos de recreio, à vela, ancorados, como se nos convidassem a saborear aquelas águas benditas, nascidas e vindas da Serra da Estrela. Apesar de ser dia de semana, quase todos os lugares estavam ocupados. Encontrámos uma mesa junto a um casal de brasileiros de meia-idade. Pela proximidade, naturalmente, tínhamos de ouvir as suas conversas. Volta e meia, no meio de uma explanação, o homem sorria. A mulher acompanhava-o com trejeitos de felicidade no rosto.
Às tantas, a senhora levanta-se e coloca-se a jeito, com os barcos ancorados em fundo, para o marido lhe tirar uma foto. Eu ofereci-me para lhes servir de fotógrafo ocasional. Pronto! Estava dado o mote para uma longa conversa de duas horas sobre o mundo político que nos rodeia.
Começámos, na América do Sul, naturalmente no Brasil, em Lula da Silva, subimos para norte e parámos no Canadá, que apesar de ser um país recente, apostou tudo na educação. Segundo o meu novo amigo Levon, que é médico, tudo deveria começar aqui. Em vez de os governos continuarem a subsidiarem os cada vez maiores buracos da saúde, a seu ver, deveriam apostar na educação desde a infância. É nesta disciplina, transversal ao “modus vivendi” da humanidade, que tudo começa. “Não se é só saudável através de nascimento. Também se aprende a evitar as doenças, e é aqui que os governos falham clamorosamente. O Canadá, ao apostar na educação precoce, é um bom exemplo”, enfatiza Levon.
Ainda na América do Norte, deixamo-nos deslizar um pouco, e entramos nos Estados Unidos, que Levon conhece muito bem. A nossa conversa recai sobre o novo inquilino da Casa Branca, Barack Obama, e na sua importância para o globo. Falamos dele como o novo timoneiro do navio da esperança do mundo. Se a embarcação submergir poderá vir uma nova catástrofe económica de consequências intermináveis. Levon acha que não. Obama é, e será, um bom presidente dos “States”.
Ilusoriamente tomamos o avião e aterramos na Europa. A nossa conversa debruça-se agora sobre esta amostra de estadistas sem carisma que, actualmente, é transversal ao nosso Continente. Cortamos na casaca na maioria, com incidência em Sílvio Berlusconi e Nicolás Sarkosi. Pedimos meças com Charles de Gaulle. Levon, o meu amigo brasileiro, acabou de chegar a Portugal, vindo de França de um congresso sobre Geriatria. Segundo as suas palavras, corroboradas pela esposa Vanda, aquele país, pátria de Astérix, não é mais a nação ordeira e limpa que conhecemos há meia-dúzia de anos. Hoje as ruas estão permanentemente sujas. O outrora Metro seguro, limpo de pedintes, nos nossos dias, é apenas uma miragem. Está tudo muito sebento. A França está decadente, acentuam com ênfase.
E Portugal, interrogo com curiosidade, como o vêem? “Excelente”, ratificam em coro. Embora seja a primeira vez que visitam o nosso país, estão surpreendidos com a limpeza das cidades, com o trato das gentes e da sua alegria que notam nos portugueses. Acham, mesmo isso? Interrogo, um pouco incrédulo. Sabem que, nos últimos anos, devido a sucessivas crises estruturais do país, nós, progressivamente, nos tornámos mais taciturnos? Fomos perdendo o riso, como se a nossa alma passasse a ser um fado triste de saudade. Tento justificar a minha admiração.
“Não diga isso. Tristeza, mesmo a sério, sentimos em França, no rosto das pessoas. Aqui não. É como se os naturais estivessem permanentemente em estado de felicidade”, teimam os dois, no mesmo ponto de vista.
Estiveram em Lisboa, gostaram imenso da cozinha tradicional portuguesa. Das tasquinhas do Bairro Alto e do seu fado castiço. “Que bonita que é Lisboa! E tão limpa! Onde comemos, nos restaurantes, víamos a limpeza. Inclusive das casas-de-banho. Em França, nalguns, chegámos a sentir nojo”, corroboram, como se estivessem em êxtase.
E Coimbra, o que acham da cidade? Um dos principais queixumes que se ouve é de que, do ponto de vista turístico, a cidade não oferece uma oferta variada a quem nos visita. O que acham disso? Interrogo. Nem pense nisso! Estamos aqui há dois dias e ainda não parámos. Há tanta oferta. Ai e então a Biblioteca da Universidade? Que coisa linda! Como só vamos estar cá dois dias –amanhã iremos para o Porto-, não tivemos tempo de ver tudo. Há aqui tanta coisa boa para ver…e comer. Ontem fomos à “Malhada” –Mealhada, atalho eu- comer leitão. Fomos ao “Pedro dos Leitões”, foi-nos recomendado no Brasil. Ai que bom! Logo que possamos vamos voltar aqui. Queremos ver e ouvir o vosso fado de Coimbra, tão famoso além-mar. Gostámos imenso da cidade. É muito limpa. É tudo tão convidativo”, dizem-nos sempre intervalado por sorrisos abertos de orelha-a-orelha.
Interessante, a vossa forma de comunicar. Sempre a sorrir, constato eu. Sou interrompido por uma gargalhada do Levon. “Sabe como me chamam no hospital onde presto serviço, em Santos, a 60 quilómetros de São Paulo? “Doutor Sorrisos”, é assim que me tratam lá”. Despedimo-nos com um grande abraço e no meio de gargalhadas. Saí do Parque Verde completamente bem-disposto. Obrigado, Levon e Vanda. Boa Viagem até terras de Vera Cruz. Voltem quando quiserem. Como embaixador virtual do país, da cidade, receber-vos-ei de braços abertos. Gostámos muito de falar convosco. Recebemos uma lição. Andamos tão embrenhados nos nossos problemas que até nos esquecemos das coisas boas que temos aqui.
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