São 21H30 de uma destas segundas-feiras. O carro pára no antigo “Bota-abaixo”, agora conhecido como Largo das Olarias. Do seu interior saem duas pessoas, uma rapariga de 30 anos –a Cláudia, que, para além de ser psicóloga-clínica e ter defendido, há menos de um mês, na Universidade do Minho, uma tese de mestrado sobre “Narrativas de adultos sobre experiências de institucionalização, está desempregada- e um rapaz, o Daniel, de 25 anos. São irmãos. Este, embora tivesse frequentado uma grande escola de música de Lisboa, a ETIC, e seja dotado de elevado talento, apesar de continuar a enviar as suas músicas para editoras, nenhuma aposta na sua criação e continua desempregado.
Quando saem da viatura, cerca de mais de uma dezena de indivíduos, sentados ao longo do largo, como que movidos por controle remoto, lentamente vão-se chegando aos dois jovens. Das ruas em redor, como se tivessem obedecido a um imperceptível sinal sonoro, mais de uma dezena de pessoas com um certo ar de abandono e olhar perdido se aproximam.
Neste heterogéneo grupo há várias mulheres, uma de vinte e poucos anos e outras mais velhas. No total serão uns trinta. No geral estão relativamente bem vestidos, embora em algumas roupas se notem nódoas de sujidade. Quando aparecem junto a nós, os seus traços fisionómicos, banhados pela luz amarelada dos candeeiros de rua, reparo que, em grande maioria, os reconheço a todos como frequentadores das ruelas e praças da Baixa. Não imaginava que a sua situação fosse tão miserável. Olhando alguns mais maltrapilhos, num “redutivismo” pouco consentâneo com o momento, mentalmente, interrogo-me se não seria um destes que já me assaltou a loja mais do que uma vez.
Como câmara de observação, constato que, sobretudo entre os homens, há similitudes comuns: cabelos desgrenhados e mal cuidados, barba de muitos dias e por aparar. Na maioria deles, reparo, a sua placa dentária, para além de muito amarela, têm muitos dentes em falta.
A Cláudia e o Daniel, por entre um sorriso simpático, vão cumprimentando, parecem conhecê-los a todos: “como está senhor António? Olá senhor Joaquim! Ora viva, senhor João!”. Poucos respondem ao cumprimento. Quem o faz, em voz rouca, como que arrancada a ferros, diz: “boa noite, “dótora”.
Naquelas caras de aspecto duro, meio avermelhadas, lavradas por rugas de solidão, como vincos traçados por um arado mal amanhado de vida difícil, nota-se uma crescente ansiedade. Esperam simplesmente alguma coisa que satisfaça a sua necessidade imediatamente.
Cláudia e Daniel começam a distribuir pequenas doses de comida embrulhada em marmitas de alumínio, acompanhadas com garfo plástico. Esta comida, que sobra diariamente, é cedida gratuitamente por um restaurante do Fórum Coimbra ao Projecto Casa –Centro de Apoio a sem-abrigos- e, entre médicos, advogados, jornalistas, a Cláudia e o Daniel fazem parte integrante deste generoso voluntariado a favor dos mais carenciados.
Vejo o ar sôfrego como alguns engolem a comida quase sem a mastigar. Por analogia, parecem animais famintos de vários dias diante de uma pia com comida. Depois de comer a primeira dose, um deles, de ar famélico, talvez tóxicodependente, interroga, “dótora”, não me pode dar outra? Não tenho tido dinheiro para ir comer à Cozinha Económica”.
Outro, o Emanuel –nome fictício-, que conheço bem, há mais de vinte anos, quando era funcionário da Câmara Municipal de Coimbra, pede uma dose extra para levar a um seu amigo, que é cego. Quando dá de caras comigo, um pouco atarantado, engelhando o rosto várias vezes, sem que o tivesse questionado, como a auto-justificar-se, enfatiza: “o que se há-de fazer? É a vida!”.
Perante esta aparente fragilidade, interrogo-o, então já não estás na autarquia? “Não. Estava a receber o Rendimento Mínimo Garantido. Tive um grande acidente, mas como tenho 58 anos ainda não me posso reformar. Estava a pernoitar naquela pensão, sabe?! Agora cortaram-me o subsídio e estou a dormir numa entrada de uma porta, juntamente com o cego, ali na Rua Eduardo Coelho. Se você pudesse ajudar-me a arranjar um sítio para ficar?!”, interroga-me em apelo pungido e num estudado trejeito de menino.
Não tenho experiência com sem-abrigos, mas sei que raramente dizem a verdade. Pintam sempre um cenário onde aparecem como vítimas, ora do sistema –do governo, da sociedade-, ora da técnica da Segurança Social que não gosta deles, advogam. Estes argumentos, quase sempre em mentira crónica, funcionam como defesa, talvez para justificar o quase ponto-sem-retorno onde se encontram.
Sabe-se que estas pessoas, depois de sofrerem desgostos de amor, terem perdido a mãe, simplesmente por opção, ou uma outra causa traumática, desistindo de lutar pela integração em sociedade, tornam-se desenraizados e desenvolvem patologias associadas ao álcool, às drogas.
Prometo então ao Emanuel de que irei falar com a técnica responsável da Segurança Social que o acompanha. Volto então a interrogá-lo. Diz-me, estás mesmo a contar-me tudo? Cortaram-te mesmo o subsídio sem mais nem menos? “Foi sim, acredite em mim, palavra de honra!”, jura o Emanuel.
Antes de falar com a responsável pela Segurança Social, fui falar com a dona da pensão. Segundo esta profissional de hotelaria, “as coisas não são nada assim! O Emanuel, para além de ser muito mentiroso, recorrendo à fraude para obter dinheiro, estoira tudo. Já estoirou uma fortuna de uma indemnização de um acidente que teve há poucos anos. Gastou tudo no Casino. Não pode ter um tostão. Isto foi assim…assim…e assado”, contou-me tudo, mas não vou reproduzir.
Já tentei contactar a técnica desta área social, mas até ao momento ainda não foi possível. Uma coisa devemos ter atenção, mesmo com muitas razões que os serviços sociais tenham –e não ponho em dúvida que os terão- alguma coisa tem de ser feita. Estas pessoas não podem continuar a dormir na rua. Felizmente que Coimbra, para além do “Projecto Casa” tem uma série de associações que se debruçam sobre a temática dos “sem eira nem beira”.
Apesar de tudo isto, cada um de nós deve partilhar esta temática, este lado negro da sociedade, como um projecto partilhado de inter-ajuda por todos.
Se você chegou até aqui, acredito que o fará porque é sensível. Só assim se entende pelo seu interesse nesta questão. Caso contrário, não teria pachorra para tão longo texto. Parabéns para si. Obrigado.
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