segunda-feira, 6 de julho de 2009

UMA ALMA PERDIDA A VAGUEAR ENTRE NÓS





Manuel –vamos chamar-lhe assim- tem 35 anos. Pelo menos é o que marca o Bilhete de identidade. Mas podemos afiançar que sim, conhecemos este rapaz era ainda um adolescente.
Se ele caminhar à sua frente, numa destas ruelas qualquer, você pensará que se trata de um ancião em fase de vida terminal. Olhe para ele: alquebrado, como se tivesse todo o peso do universo sobre os ombros. Arrasta os pés como se quisesse passar silenciosamente e despercebido por entre quem passa. Você repara na roupa que ele veste, apesar de se apresentar minimamente limpa, nota-se, para além de estar coçada, nunca viu um ferro de passar. Os braços, como o Manuel, caminham caídos, sem vida, como se fossem um mero artefacto naquele corpo desconjuntado. O cabelo está desgrenhado, há muito a pedir uma escova. Este rapaz, a caminhar por entre gente, parece sonâmbulo, uma alma penada, que, em penitência, percorre a cidade em busca de um ideal matafórico de um aperfeiçoamento terreno.
Por entre as centenas de pessoas que se cruzaram com este rapaz-velho, ninguém reparou nele. É como se Manuel fosse invisível. Pode até parecer-lhe que este passageiro solitário, que conhece todo o “bas fond” da cidade, não se importa com o desligamento dos demais, mas não é verdade. Ele sofre por ninguém lhe dar importância. Ele só quer conversar um bocadinho, mais nada. Mas ninguém o cumprimenta, ninguém lhe pergunta como está.
Você ultrapassa-o, está curioso, quer ver-lhe a cara. E vê. E o que vê? Um rosto escanzelado, de vermelhão, certamente provocado pelo álcool. Os seus olhos são ternos. Estão encovados e sem brilho. Este homem, como solitário ambulante, carrega a tristeza. Repare que, apesar dos maus-tratos que Manuel deu ao rosto, este ainda mostra um certo ar de menino imberbe. Você deixa descair o olhar observador para o tronco. Parece que as costelas ameaçam saltar daquele corpo velho, de novo em idade, mas que o tempo fustigou pelo desleixo. A cintura é fina, talvez pouco mais de 34.
O rapaz dá-lhe pena. Você vai falar com ele. O que provocou a tua descida aos infernos da cidade, Manuel?, interroga o leitor. “Não sei”. –Responde o rapaz. “Acho que cada um tem um destino. Este é o meu!”.
Mas tu, com 17 anos, trabalhavas em bares na cidade. Eu lembro-me de ti, interroga você, novamente. “É verdade, sim. Eu trabalhei em vários bares da cidade. Mas a tristeza, essa terrível solidão que sempre me consumiu, empurrou-me para o “axe” (haxixe). Depois, como já não dava pancada, comecei no “cavalo” (heroína) e algumas vezes na “Branquinha” (cocaína)”.
Mas porquê?, Manuel –questiona você o rapaz. “Não sei, é qualquer coisa que nos empurra para o abismo. Talvez nascesse sem sorte. Predestinado, “tá” a ver? A minha mãe nunca me deu muito carinho. Era assim um bocado fria –“tá” a ver, “meu”?. Separou-se do meu pai muito cedo, era eu ainda criança. O meu pai era um amor de pessoa –você conheceu-o, pois conheceu?- arrumava carros ali para a Alta. Infelizmente, por volta de 1990, foi operado ao apêndice, no Hospital dos Covões, qualquer coisa correu mal, não sei, e já em convalescença, em casa, viria a morrer novo. Teria quarenta e poucos anos. Este facto, para mim, penso –não é estar a desculpar-me-, mas foi fulminante. A partir daí nunca mais deixei de rebolar pelo cano. A minha mãe, coitada, apesar dos seus defeitos, ao ver-me assim, largou-me de vez –se é que alguma vez me agarrou. Hoje tem leucemia, está a morrer aqui perto numa instituição”.
E costumas ir vê-la?, interroga você. “Não. Não consigo. Apesar de nunca sermos ligados, custa-me vê-la naquela situação, entre a vida e a morte. Afinal ela é a minha mãe, não é?”.
Mas, explica-me Manuel, interroga você? Como fazes para conseguir dinheiro para a tua “dose”? Arrumas carros? “Não. Já não consigo. Tenho dores pelo corpo todo. Nem isso consigo fazer –sou seropositivo há cerca de 10 anos. Qualquer esforço, por pequeno que seja, dá cabo de mim. O dinheiro aparece”.
Aparece? Aparece como? Interroga você. Andas no gamanço? “o quê?! Não me faça essa pergunta. Você sabe que eu não sou disso! Você conhece-me há muitos anos. Para eu explicar, não é assim numa conversa destas, “tá” a ver? Eu vou-me safando, embora o “material” que anda por aí não presta para nada. “Aquilo” é tudo cortado. De pó verdadeiro tem muito pouco. Deviam acabar com os traficantes. A gente injecta uma coisa daquelas e “mara-se”. Valia mais legalizar a venda em farmácias e receitado pelo médico. Andamos todos a encher o “bandulho” a estes filhos da puta. Ninguém vê isso. Volta e meia lá vai um. Como ninguém está referenciado, a família também já há muito que lhes perdeu o rasto, é enterrado em campa rasa. Sem história, sem direito a recorte no jornal na página da necrologia. Um dia destes vou eu. Eu sei que não tardará muito tempo”.
Onde estás a dormir, Manuel?, interroga você, um pouco condoído com este filho de ninguém. Olhe, agora estou a dormir ali para os lados de Celas, numa garagem abandonada, pelo menos até me “enxotarem” de lá. Mas se isso acontecer, imediatamente arranjo um outro qualquer local. Na cidade não faltam prédios abandonados”.
E onde comes e tomas banho? “Olhe, comer, umas vezes vou à Cozinha Económica, outras vezes, na maioria, vou ali à Caritas, à Rua Antero de Quental. Tratam-nos muito bem lá. Tomar banho? Olhe… é onde posso. Tá-se bem!”

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