quarta-feira, 4 de março de 2009

EDITORIAL: A APLICAÇÃO CEGA E SURDA DA LEI



A minha tomada de conhecimento ontem de que o “Zé Manel dos Ossos” –uma das casas turísticas mais emblemáticas da Baixa de Coimbra- tem pendente uma acção de encerramento administrativo proposta pela autarquia, para além de me apanhar completamente de surpresa, deixou-me a pensar.
Lendo o Despacho/Deliberação da Câmara Municipal de Coimbra (CMC), que transcrevo no artigo anterior, facilmente somos levados a pensar que o fiscal instrutor do auto limitou-se a cumprir a lei. É verdade. E, para mais, o dono do estabelecimento até não deu cumprimento a dois ofícios anteriores que o obrigavam ao “projecto de arquitectura de obras de remodelação/legalização”.
Por momentos, saiamos deste caso e passemos à actuação do agente da Polícia Municipal –que também transcrevo aqui no blogue. Ao autuar os trabalhadores, no caso uma camioneta carregada de areia, cujo “concursante” da obra é a própria CMC, o agente, ao instaurar o auto, limitou-se a cumprir a lei.
Saiamos deste caso e passemos a outro. Um marginal toxicodependente, depois de três assaltos a lojas durante a noite, é apanhado pela PSP. É presente ao juiz que, em função da moldura penal ser até três anos (inferior a cinco para poder ser aplicada a prisão preventiva), limita-se a libertá-lo com a obrigação de apresentações periódicas. O delinquente sai dali e, nas noites seguintes, continua o trabalho para que está vocacionado. Ou seja, continua a assaltar. Os agentes da PSP, que tanto sofreram para chegar ao assaltante e prendê-lo, com a ordem de soltura judicial, ficam simplesmente frustrados. No fundo, penso, consideram que andaram a trabalhar para o boneco. E mais: se contabilizarmos os custos operacionais, pagos por todos nós, facilmente chegamos à conclusão de que esta situação não pode continuar.
Como disse atrás, a autarquia, o agente da polícia municipal e o juiz limitaram-se a cumprir a lei.
Mas então, nesse caso é preciso analisar e dissecar a lei. Afinal o que é isso de lei, que todos invocam? Avoca o delinquente para se queixar do polícia; avoca o polícia para justificar os seus próprios actos às vezes discricionários; avoca o juiz a lei, enquanto soberano mediador entre o bem e o mal, referindo que se limita a aplicar o consignado nos códigos; avoca também o fiscal da Câmara que se limita a aplicar a lei.
Começo por citar Papinianus, jurisconsulto romano (142-212), muito citado nas faculdades de direito. Classificava a lei do seguinte modo: “Lei é um preceito comum ditado por homens prudentes; a punição de delitos que se cometem voluntariamente ou por ignorância; a convenção comum da República”.
Abusando da paciência de quem me lê, vou citar Cícero: “Somos escravos das leis para podermos ser livres”.
Transcrevendo algumas noções do dicionário da língua Portuguesa da Porto Editora diz o seguinte acerca da lei: “prescrição do poder legislativo cujo cumprimento visa a organização da sociedade; preceito emanado de autoridade soberana”.
Certamente depois de ler estas três transcrições ficou na mesma, ou seja, sem saber onde quero chegar. Mas eu explico.
A classificação da lei reside naquela pequena frase de Papinianus: “Lei é um preceito comum ditado por homens prudentes”. Está aqui o fulcro do âmbito de tudo o que é lei. É evidente que Papinianus quando diz que é “um preceito comum ditado por homens prudentes” não se refere apenas e só ao legislador, que é o seu criador. Logicamente que abarca todos aqueles que, por inerência da sua função, a aplicam: Juízes, polícias, Câmaras Municipais e outros.
O grande mestre romano de leis diz-nos que ao aplicá-la o homem deve ser prudente. E aqui, inevitavelmente, tenho de explicar o que é isso de prudência. Prudente é aquele que usa a ponderação, a moderação e a cautela. É a qualidade daquele que, atento ao alcance das suas palavras e dos seus actos, procura evitar consequências desagradáveis.
Depois do que escrevi, penso, que já dá para perceber que nos dias que correm a prudência é folha vã a quem aplica a lei. Nos exemplos que citei, da Câmara, do agente municipal e do juiz, estas entidades, sem usar este obrigatório preceito, limitam-se a aplicar a lei escrita sem ter em conta as atenuantes ou consequências futuras para a sociedade ou para o meio em que se inserem (caso do encerramento compulsivo/administrativo do “Zé Manel dos Ossos”).
Curiosamente, a seguir à Revolução Francesa de 1789 assistiu-se durante mais de um século a um mesmo tipo de procedimento na aplicação da lei. Embora aqui, devido a séculos de obscurantismo, naturalmente, devido a abusos sobre a pessoa, surgiu o iluminismo assente no racionalismo. Esta procura obsessiva na defesa da liberdade e dos direitos do indivíduo redundou num igualitarismo feroz. O que contava era a lei –muitas vezes o legislador era um mero servidor do poder executivo. Pouco importava as atenuantes ou condições físicas da pessoa a quem era aplicada a lei. Era coxo, não sabia ler, estava a trabalhar? Isso não importava nada! “Dura lex sed lex”. A este movimento, que na Europa atravessou todo o século XIX e em Portugal chegou até meados de XX, chamou-se positivismo jurídico.
Se hoje não estamos a viver a mesma onda parece. O que interessa é simplesmente a aplicação da coima para reverter e aumentar as finanças públicas. Pouco importa as consequências criadas no meio e no ambiente social.
É preciso um novo Contrato Social, uma nova concertação? Parece-me que nunca foi tão urgente. A lei, por um lado, não pode servir como uma barreira intransponível na procura do que é o melhor para o bem comum; por outro, não pode continuar a servir de armadura desculpabilizante, para através da sua protecção, se cometerem as maiores injustiças dentro da legalidade.

1 comentário:

Anónimo disse...

A lei é de "funil" é larga em cima e estreita em baixo