sábado, 7 de março de 2009

A VIDA POUCO SIGNIFICANTE DE IRENE



Conheço esta mulher há mais de vinte anos. Trabalhou na Alta, em casa de uma família que eu conhecia bem, mais de 40 anos. Tudo estaria bem se tivesse o seu normal e legítimo ordenado correspondente ao seu esforço de serviçal. Mas não. Há muitos e muitos anos que me contou que o seu trabalho era remunerado apenas pela sua hospedagem. Para além de um tecto, nunca ganhou nada. Nessa altura eu deveria ter tido a coragem de investigar melhor a favor de Irene –assim se chama esta simpática mulher, agora com 85 anos. Como conhecia a família “hospedeira” de Irene, confesso, não me quis “meter”. Tal como outras recordações de erros que cometi, se pudesse voltar atrás, teria agido de outra maneira.
E tinha obrigação de o fazer, porque a Irene não sabe ler. Mas este não é o único óbice: esta mulher é muito ignorante. Todos somos, evidentemente, mas, apesar dessa natural e normal prescrição de conhecimento, a verdade é que Irene nunca se interessou por novidades e assuntos que pudessem aumentar a sua informação na utilidade da sua vida futura. Falar com ela é como se estivéssemos na presença de uma criança crescida…que não cresceu. É uma pessoa sem maldade. Quando fala, e fala muito mesmo, com a sua pronúncia beirã, arrastando as frases no “che” –como o Procurador da República, estão a ver?- e, ao mesmo tempo, faz uma expressão embevecida de bebé carente, como se o seu rosto reflectisse e fosse um modelo de paz e harmonia. Não sei se esta calma aparente terá alguma coisa a ver com o seu étimo. É que, por curiosidade, “irena” vem do grego “eiréne” que significa “paz”. Assim como “írene”, também do grego, significava o mancebo, com mais de vinte anos, que falava nas assembleias.
Quando me vê, é sempre a mesma coisa, e foi o caso de hoje, a mesma pergunta salta como uma mola: “paga-me um galão?”
Irene está muito surda. Há pouco tempo morreram os seus antigos “patrões” e ficou sozinha. “O que me valeu foi a família onde estou agora –também na Alta da cidade. São muito bons para mim. Foi Deus que os mandou. Não me mandam fazer nada. Nem querem que eu trabalhe. Estou muito bem, graças a Deus!”, confidencia-me em resposta à minha pergunta.
Digo-lhe que vou escrever sobre a sua vida. Sorri para mim e interroga-me: “vai dizer bem de mim não vai?”.
Despeço-me da Irene, não sem antes me atirar a pergunta, acompanhada de um trejeito embevecido e cheio de ternura: “na Páscoa não vai lá para "chima", para os lados da minha terra, "Cheia" (Seia)? "Che" for, leva-me? Há tantos "janos" que não vou à minha terra…”

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