sábado, 14 de março de 2009

UM SORRISO EM SACRAMENTO



Há dias fui aos HUC, Hospitais da Universidade de Coimbra, a uma consulta. No guichet, na fila, enquanto esperava a minha vez de ser atendido, os meus olhos iam seguindo cada movimento da funcionária que, dentro do pequeno cubículo, atendia os utentes. De quarenta e poucos anos, era uma bela mulher. De corpo bem cuidado, quase escultural, com um colo que prometia ressuscitar um morto, com cabelos médios à “Marilyne”, anos 60, deambulava entre os processos e o computador.
Nesta imaginária pintura viva de Henrique Medina, havia um senão: esta escultura com vida não ria, funcionava como um autómato. A todos os beneficiários do serviço de saúde, em lamúria sem fim, repetia exaustivamente: “o seu cartão de utente, se faz favor; a morada, o telefone?...”
Enquanto esperava, pensava para mim, bolas!, que desperdício! Se naquele belo rosto, esta mulher juntasse um pequeno sorriso, o que não seria. Quando chegou a minha vez, a mesma coisa: “o seu cartão de utente, se faz favor”. O trato era tão distante, tão impessoal, que me apeteceu abaná-la ou então, nessa impossibilidade, dizer-lhe na cara o quanto a sua atitude fechada me irritava. A custo, lá me contive.
Passado um bocado fui chamado no microfone. Entrei então no gabinete médico. À secretária uma médica de cinquenta e poucos anos –que só se aferiam depois de um olhar bem profundo, parecia muito mais nova. De cabelos médios, pintados de vermelho, com um rosto bem cuidado, onde a maquilhagem ajudava a preservar uma beleza serena. Neste corpo belo de “avant gard”, ao pescoço, pendurado, um fio de ouro com uma figa e outros objectos contra a má-sorte e o mau-olhado, acompanhado com um sorriso de orelha a orelha.
Bom dia, cumprimentei, sentando-me. “Bom dia, querido, como estás?, retribuiu-me em saudação, no meio de um sorriso. “Então o que te traz aqui? De que te queixas, amor?”. Perante a comparação com o tratamento a que tinha sido submetido pela funcionária anterior, fiquei quase em choque. Perante esta forma de tratamento tão amistoso, comecei a rir-me e disse à Zulmira –assim se chamava a médica- que bom o seu tratamento, lindo, acredite, palavra de honra. Ainda mais contrastando com a antipatia da sua colega da triagem. A Zulmira, cravando os seus profundos olhos claros em mim, pareceu ficar sem palavras. Certamente, tão habituada que estava a esta forma de ser, nem se apercebia o quanto era diferente para melhor. Quando lhe disse o que sentia pareceu ficar sem reacção e, por momentos, temi o pior. Mas foram apenas escassos segundos, logo a seguir, sai dali um sorriso escancarado que parecia coisa má. “Ai que bom ouvir o que diz”, repetia com calor.
Passei então à outra sala. Nesta estavam três enfermeiras. Duas mulheres brancas com cara de enterro e uma negra de nome Sacramento. Esta, muito simpática e sempre de sorriso no rosto.
Enquanto esperava a minha vez ia observando tudo. Diziam as duas mulheres brancas, uma para a outra: “não é justo, não é justo isto acontecer. Ela é competentíssima. Viste? Ainda por cima o Judas veio dar-lhe um abraço e um beijo, isto não se faz!”
Veio a mulher de penteado à Marilyne e, a chorar, abraçando-se a Sacramento, vociferava, entre a indignação e o inconformismo: “tens de reagir, não podes aceitar isto passivamente. Tu és tão competente. Como vamos passar sem ti?”
Sacramento, mulher negra de Angola, que provavelmente passou as passas da guerra do outro lado do mar, exclamou: “reagir para quê? Se eu fui transferida para outro serviço é porque faço lá falta. Eu trabalho em qualquer lado. Se Deus quer assim, assim será.”
“Mas tu não podes ser assim”, insistia a mulher do guichet, acompanhada pelas outras duas enfermeiras. Porque não?, repetia Sacramento, no meio de um sorriso desbragado. O Criador encarrega-se de nivelar as assimetrias, castigando os maus. Sempre foi assim ao longo dos tempos. Um dia, há muitos anos, quando vim trabalhar para aqui, para os HUC, aquando da mudança da hora, esqueci-me de acertar o relógio e, de manhã, em vez de entrar às 8, entrei às 9 horas. A colega que eu ia substituir fez um barulho danado e até ao chefe foi queixar-se. Eu não disse nada. No ano seguinte, quando mudou a hora, estava eu a fazer a noite até às 8 horas. A colega que me substituiu chegou apenas às 9 horas, porque se esqueceu de acertar o relógio. Sabem quem era esta mulher-colega? Isso mesmo! Era a que no ano anterior fora queixar-se ao chefe. Deus é ou não misericordioso?”

Sem comentários: