Começo por apresentar o problema concreto: há
um homem a dormir durante a noite e algumas vezes de dia numa entrada de um
prédio, na Rua Eduardo Coelho, há mais de uma semana. A seguir formulo questões,
entre elas, a filosófica e do direito e a responsabilidade das instituições.
Principio pelas filosóficas e do direito.
Qualquer indivíduo, em pleno gozo das suas faculdades mentais, tem o direito de
escolher a rua como morada. Qualquer sujeito nestas condições de opção, em
pleno gozo das suas faculdades, pode não aceitar ajuda para troca da sua, aos
nossos olhos, indigente vivência por uma habitação de bem-estar mínimo. Se
ficasse por aqui, sem entrar em grandes análises interpretativas, aparentemente
tudo estaria resolvido. Acontece que nas duas frases há uma prerrogativa que se
repete e que torna a preferência sob condição: “em pleno gozo das suas faculdades mentais”. E aqui reside o busílis
da questão. Se tomarmos em boa conta os dados extraídos da Internet e que a
seguir reproduzo facilmente se chega à conclusão que o livre-arbítrio, a
vontade livre de escolha, pode estar diminuído: “cerca de 160 mil portugueses devem sofrer de demência, que afecta
sobretudo pessoas a partir dos 60 anos” -declarações de Álvaro de Carvalho,
coordenador do Programa Nacional de Saúde Mental, em Maio de 2013- e “Cinco das dez principais causas de
incapacidade a longo prazo e de dependência psicossocial são doenças neuro
psiquiátricas: depressão unipolar, problemas ligados ao álcool, esquizofrenia,
distúrbios bipolares e demência, sendo as perturbações depressivas a primeira
nos países desenvolvidos” –dados extraídos do Programa Nacional para a
Saúde Mental, 2013.
Ora, está de ver que, mais que certo, este
homem estará doente. Já levo alguma experiência destes assuntos –já foram
vários os casos iguais a este que denunciei e esbarram sempre na mesma provocatória
interrogação: “o senhor é psiquiatra?”.
Até parece que se sentem incomodados por haver alguém que se incomoda e pede a
sua intervenção. Por parte das entidades competentes, há uma certa apatia, um
deixar correr, como se esperassem que o visado, sem-abrigo, morra e resolva a
situação do próprio e os técnicos encarregues de velar pela sua vida possam
dormir descansados. Pode até parecer arrogância da minha parte, mas já escrevi
e me envolvi muito em acontecimentos como este e sei qual é o procedimento
habitual. Para eles, o maluco sou eu. Se o homem quer estar na rua é uma
escolha dele, ponto final e parágrafo, invocam os representantes destas
entidades que, saliento, recebem dinheiro do Estado para velar por estas
pessoas disfuncionais. É lógico que, bem sabemos, mesmo num sistema perfeito
nunca se acabará totalmente com amostras de pobreza como esta. No entanto, tenho
para mim que se aposta menos na prevenção e terapia e mais nos “cuidados continuados”, como quem diz, na
distribuição de comida e roupas. Acredito que possa estar a ser injusto mas as
instituições ligadas à pobreza social deveriam em primeiro lugar intervir para
quem é sinalizado a dormir na rua, tentando a recuperação, e só depois passar ao acompanhamento.
Depois deste desabafo generalista, e não se
pense que não dou valor a quem se ocupa da pobreza, vou voltar ao caso em
análise. Podemos formular a pergunta: mas alguma entidade já tomou conhecimento
de que o Joaquim Cadaxo, de 57 anos de idade, que até recebe uma reforma acima
dos valores mínimos e lhe permite arrendar um quarto para se alojar –como teve até
há pouco- está a dormir na entrada de um prédio como um cão vagabundo? Já sim. No
dia 1 de Abril fui pessoalmente à Cáritas, no Terreiro da Erva, e dei conta
deste triste quadro humano a uma técnica. A seguir escrevi um texto poético
sobre o Cadaxo e postei-o na Internet, no site da Cáritas. Até agora, segundo
declarações do Joaquim, ninguém se importou em falar com ele e tentar dar um
rumo à sua vida. Se o Cadaxo fosse um animal abandonado, tenho a certeza, já teriam sido
accionados todos os meios de socorro. Embirro completamente com este
procedimento desigual e hipócrita, sobretudo nesta cidade Património Mundial,
em que a autarquia paga mensalmente 600 euros a uma associação para cuidar de
gatos vadios. Deve ser obsessão minha. Também não será de admirar, a minha
saúde mental, mais que certo, já viu melhores dias.
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