sábado, 13 de fevereiro de 2010
O FURA-MUNDOS
Já há umas semanas que me cruzo com ele, aqui, nas ruas estreitas do Centro Histórico. Acho curioso, porque faça frio, chuva, ou assim-assim, ele anda sempre de calções recortados pelo meio da perna. Tal como a sua vida, na sua história, as outrora calças, transformaram-se em realidades adaptáveis ao tempo. Como dizia Lavoisier, nada desaparece, tudo se transforma.
Hoje, à hora do almoço, convidei-o para beber uma cerveja no Nicola. É o senhor Mendes –e mais não diz, que há coisas que tem de ficar no segredo dos deuses. Conte-me a sua história, senhor Mendes, rogo-lhe. Gosto de escrever, tenho um blogue e acho que o senhor é uma pessoa carismática –e não há dúvida que é mesmo. Pela indumentária, é assim uma mistura de transalpino, com sangue de leste, pelos olhos claros. Ao mesmo tempo –veja a foto- tem algo de místico, assim a parecer um sacerdote ortodoxo. Tem algo como uma imanência que brota do seu interior. É de facto um personagem diferente na paisagem urbana.
Vá lá, senhor Mendes, conte lá como é que veio parar a Coimbra. Insisto.
“Está bem. Lá vai, então” –anui ao meu pedido. “Sou de Lisboa. Tenho 68 anos. Trabalhei no Hospital Egas Moniz como auxiliar de acção médica de 1ª classe, cerca de 10 ou 11 anos. Foi um amigo que me arranjou para lá. Reformei-me com 46 anos. Já lá vão 22 anos. Aposentei-me cedo por questões nervosas. Estive internado no Telhal –Centro de Saúde S. João de Deus.
Gosto muito de Coimbra –sabe?-, é tudo gente boa. Até os polícias me cumprimentam. Sinto-me muito bem aqui…sou muito admirado. Estou a viver ali naquela pensão…está ver qual é? Pensão, não…Residencial…que aquilo é um luxo. Tratam-me muito bem. É muito bom. Estou na cidade há dois meses e pouco.
Andei a estudar na Universidade. Sou biólogo. Sou doutor, entende? Acabei o curso, deveria ter…deixe ver… para aí uns 23 anos. Andava desnorteado.
Fui tenente dos Comandos em África…em Moçambique. Sou escultor. Mas só trabalho em obras grandes. Coisas pequenas, nada.
Já corri o Mundo quase todo. Estive 4 anos nos Estados Unidos, dois anos e meio no Canadá. Estive no Vietname, do Sul, porque no vermelho do norte não me deixaram entrar. Sabe que tenho uma namorada vietnamita? Ah, pois! E se é um espanto! Às vezes telefona-me. É bela, é linda. É de um homem ficar passado. Nestas coisas de mulheres, tem de ser como eu quero. Se não for, é para os porcos, não é para mim –e larga um sorriso de orelha-a-orelha. Eu tenho de escolher o melhor para mim, não é assim? A maioria tem crocodilos deteriorados na cabeça –que é que pensa? Não sabem nada! Agora, aqui em Coimbra tenho várias namoradas. Até uma chinesa. Ah, pois não! Brincamos ou quê?
Já estive em França, em Paris, mas não gostei. As francesas são muito lamechas. Depois de quentes fazem tudo. Não dão luta. Eu gosto de mulheres que dêem luta. Já corri a Europa toda. As melhores mulheres na cama são as americanas. Ai se me apanhassem lá! Agarravam-me…estava tramado. Eu sou um cidadão do mundo. Sou um fura-mundos. Apesar da idade que tenho, as mulheres gostam muito de mim. Ainda sou um gajo teso –e mostra o punho para exemplificar. Quando vão comigo, vão um pouco cépticas, mas depois, no fim da coisa, está a ver?, dizem-me: “quem diria, quem diria!”.
O meu pai era muito rico. Era Visconde. Tinha terras no Alentejo e, para aí, uns 40/50 cavalos “mustang” –conhece esta raça de equídeos? É a melhor raça do mundo. Os índios navajo, aqueles do chefe Jerónimo, ouviu falar?, só cavalgavam nesta raça.
O meu pai teve 7 farmácias na capital. O meu paizinho gostava muito de mim. Apesar de eu ser sempre um doidivanas, sempre senti da sua parte um grande amor. Um dia, já não me lembro em que data, cheguei ao pé dele e disse: papá, há em tal parte, assim, assim, um automóvel que gostava de comprar –era um Skoda, se a memória não me falha. Ele agarrou-me no braço e levou-me lá. Comprou-me o carro e deu-me dinheiro para a gasolina para um mês. O dinheiro para o meu pai era um rio a correr.
Tenho mais irmãos. Tive uma irmã, a Júlia, que faleceu. Era uma querida. Nunca mais vou encontrar uma pessoa assim. Quando morrer, acredito que vou me encontrar com ela. Tenho a certeza. Você não tem fé em Deus, pois não? Ai não? Bom, assim é mais difícil conversar consigo. Mas vou dizer-lhe uma coisa: eu sei lá se não sou Jesus? Às vezes até tenho quase a certeza. Aliás…eu sou mesmo Jesus. Qualquer dia começo a fazer milagres. Já falta pouco. Eu sinto que vai acontecer. Mas não quero adiantar mais. Você não compreende estas coisas. Você não tem fé.
Todos os dias vou à missa, três ou quatro vezes por dia. Sinto-me bem lá. Sinto uma calma e uma paz interior que não consigo explicar.
Pelo olhar, vejo como são as pessoas. Às vezes, lá na missa, vejo cada filho da mãe que me apetece chegar ao pé dele, abaná-lo, e dizer ó seu hipócrita, desapareça daqui para fora. Deus distinguiu-me a mim, pessoalmente. Ele só distingue um…fui eu. Eu não acredito em Santos. Eu creio mesmo em Deus. Ele é que é o Salvador. Entende? Não entende nada…você não tem fé!
Queria pedir-lhe um favor: empresta-me dois euros? Obrigado, obrigado mesmo. Vá com Deus meu irmão!” –e dá-me um caloroso abraço.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
1 comentário:
Tantos seres carismáticos que nos avistamos por Coimbra e o Furo-Mundos será um bom desses exemplos... Obrigado pela história que este blog partilhou.
Enviar um comentário