LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA
Para além do texto "O 25 DE ABRIL VISTO DA MINHA JANELA", deixo também as crónicas "O PINTOR EM BUSCA DE SI MESMO"; e "OS VELHOS DO ESQUECIMENTO"
O 25 DE ABRIL VISTO DA MINHA JANELA
Quando se anunciou em Coimbra que tinha havido
uma revolução em Lisboa eu tinha 17 anos de idade e estava a trabalhar numa
loja de comércio da Baixa. Até aí, desde os dez, eu laborara na hotelaria.
Trocar o servir à mesa por ir atender ao balcão a vender trapos foi uma
transferência extraordinária. Não pelo ordenado, já que, em comparação com um
qualquer café, era menor. Nessa altura a vida comercial estava considerada num
plano superior. Isto é, a atividade hoteleira era muito mais intensiva, com
muito mais horas de labor e, embora já com um dia de folga semanal, trabalhava-se
domingos e feriados. Por outro lado, servir num café era muito mais
serventuário. Ali era notório o nós, os simples, e os outros, os donos do
dinheiro. Estava-se obrigado a um exagerado exercício permanente de servilismo.
Se bem que também houvesse classes distintas. Havia os simplórios como eu, que
normalmente vinham da região do Luso e zona da Bairrada, que inicialmente eram
pau para toda a colher e começavam como grumete, havia os chefes, de balcão, de
cozinha e de mesa, e depois existia toda uma classe garbosa, vestida de calça
preta, camisa branca e laço, casaco branco e nos pés um sapato preto
impecavelmente engraxado. Ser empregado de mesa era o sonho de qualquer miúdo
como eu, já que maioritariamente nesta arte se trabalhava à percentagem de 10
por cento sobre o total da caixa. Para além disso havia um costume arreigado de
dar gorjeta ao funcionário.
Num período da nossa história em que dois
terços da população portuguesa eram pobres –e estes se dividiam em remediados e
pé-descalço-, entrar para o comércio, acima de tudo, foi o poder ser mais igual
a qualquer um, já que comecei a vestir melhor, a ter, por exemplo, duas
camisas, a não precisar de lavar a roupa durante a noite para vestir no dia
seguinte, húmida e enxovalhada. Para além de estudar de noite, continuei a
trabalhar aos fins de semana a servir casamentos –conheci um senhor de idade, o
senhor Quintas, que me contratava praticamente todos os Domingos. Nunca lhe
agradeci em vida a atenção que teve comigo. E assim continuei até casar com 20
anos e ir, a seguir, para o serviço militar, para Estremoz –a título de
curiosidade, apanhava o comboio em Coimbra no Domingo à noite com 200 escudos
no bolso (1 euro). A viagem ferroviária custava 75 escudos para cada lado.
Então, para poupar, juntamente com o Jorge, a trabalhar na altura no Cruz Oculista, na Rua Adelino Veiga, e
hoje estabelecido na Rua Corpo de Deus com o mesmo ramo, vínhamos à boleia no
regresso. Ora poderia acontecer, como aconteceu tantas vezes durante as cerca
de três centenas de quilómetros, sermos transportados num Mercedes como em cima
de uma camioneta de caixa-aberta.
O tempo foi correndo e, tal como o meu amigo
Jorge, trabalhando muito, muito, estabelecemo-nos por conta própria e fomos comprando
o que nos fazia falta, o que era essencial para o bem-estar como habitação, e
podermos proporcionar aos nossos filhos tudo o que não tivemos. Sem lhes exigir
muito em troca, apenas pelo prazer de dar, oferecemos-lhes todas as ferramentas
que poderiam concretizar os seus sonhos –nesta realização revíamo-nos. Éramos
nós também quem estava ali. No dia em que a minha filha entrou para a Faculdade
de Psicologia chorei como uma criança. Passado um tempo, como morava fora da
cidade, comprei-lhe um carro para que ela pudesse estar mais à vontade nos
transportes. Tal como o Jorge, as dívidas que assumimos cumprimos sempre. Somos
herdeiros do compromisso, onde a palavra dada vale mais que toda a riqueza
universal. Nunca fomos ao banco pedir dinheiro para ir para férias.
Praticamente nunca viajámos para fora, e do mundo não conhecemos nada. O nosso
lema era trabalhar afincadamente enquanto éramos novos para quando chegássemos às
portas da velhice podermos usufruir do empenho hercúleo anteriormente
desencadeado.
Passados quarenta e um anos depois do 25 de
Abril de 1974, agora na pré-entrada de sermos sexagenários, o que está
acontecer connosco? Estamos aflitos para conseguir aguentar o que temos e
continuar a viver com dignidade. É como se agora, já sem esperança, estivéssemos
a fazer o percurso descendente, contrário a quando começamos. É como se sentíssemos
que não valeu a pena. Foi um esforço inglório. Para piorar, sinto um terrível
sentimento de impotência, de nada poder fazer. Estou contente com o balanço?
Não. Passados quarenta e um anos, é triste dizer, mas a sociedade portuguesa
está demasiadamente igual a 1974. Duas partes são pobres e uma parte é
demasiado rica. Não tenho gosto nenhum em fazer parte deste sistema viciado.
Não gosto deste Portugal.
O PINTOR EM BUSCA DE SI MESMO
Foi em 2009, quando andou pela cidade, que o
conheci. Fez várias exposições no desaparecido Salão Brazil. Como andorinha em
busca de outra terra mais quente, desapareceu e nunca mais se ouviu falar do
Pedro Freitas. Entrou há dias porta dentro a cumprimentar-me. Pelo aspeto
andrajoso e mal cuidado, de barba hirsuta, cabelos longos e mãos inchadas, não
o reconheci imediatamente nem sequer imaginei que há minha frente estava o
grande pintor Pedro Freitas, filho do escultor Silva Freitas, com várias obras
espalhadas pelo país e estrangeiro. Segundo me contou, nos últimos seis anos,
esteve radicado na Figueira da Foz. Como barco atracado que precisa de se fazer
ao mar, levantou ferro e veio procurar novos horizontes na cidade dos estudantes.
Se um dia destes o encontrar a pintar na rua, não
se deixe levar pelo ar desalentado e de perdição que imana da sua imagem. Acredite,
pelo seu talento e currículo, vale a pena adquirir-lhe uma pintura.
OS VELHOS DO ESQUECIMENTO
Conheço-a há cerca de vinte anos. Embora não
pareça, anda agora pelo hall de
entrada dos oitenta. É uma mulher calejada pela vida. O seu avental e o mexer
com ligeireza indica que continua a laborar como sempre desde que se lembra de
existir. Juntamente com o catolicismo fez também do trabalho a sua religião.
Uma, a da igreja, leva-lhe a alma um dia para um bom recato, outra, a faina,
garante-lhe a sobrevivência e a permanência para, até lá, poder continuar a ajudar
a filha e os netos, porque os velhos, chegados a uma certa etapa da vida,
passam com pouco. Precisam só de respirar. Querem apenas que os deixem viver.
Há dias transpôs a porta e atirou: “queria pedir-lhe um favor. Diga-me, sabe se
há empresas que se encarregam de trocar as nossas coisas?”. Como?!?
Interroguei sem perceber a lógica do negócio. Com convicção explicou melhor. “Quero saber se há serviços que vão a nossa
casa e mudam os objetos que lá temos por outros. Sabe por que lhe pergunto? Há
dias fui à Guarda, à minha aldeia, e quando cheguei, no mesmo dia à noite, tinha
tudo trocado. Até a mobília da sala foi substituída. Lembra-se das pernas das
cadeiras que eram torneadas? Agora deixaram lá umas direitas! Foram as minhas
roupas, as minhas louças. Tudo! Por que fizeram isto, senhor?”
Perante a minha afirmação de que
estava confundida, disse: “você diz o
mesmo que a minha filha, mas, bolas, eu não estou doida?! Eu sei o que digo.
Tocaram-me as coisas!”. Debalde a tentei convencer que o cenário por si
descrito não poderia ter acontecido. Era ilógico. Se tivessem desaparecido,
isso sim, fazia sentido, agora a haver troca por troca é impossível fazer-se
isso tudo num só dia. Com algum cuidado fui alertando que deveria falar com a
filha e consultar o médico. Estas alterações comportamentais podem acontecer
aos mais velhos. Sem grande convencimento, ela foi embora.
Numa destas ruas estreitas, Maria –vamos
chamar-lhe assim- já vai na quarta fechadura que manda instalar na mesma porta.
De cima-a-baixo do pórtico, as quatro fecharias lá estão mas, recentemente e
mesmo assim, não impediram que desaparecesse uma travessa com um bolo durante
um dia inteirinho. O mais estranho, segundo o lamento de Maria, que vive
sozinha, é que no dia seguinte apareceu dentro de um móvel. “Isto é coisa do demónio”, exclama com ênfase
e pesar para uma vizinha. Não vale a pena tentar explicar-lhe que, pela idade,
a sua cabeça gera cenários e teorias da conspiração. O problema é fazer-lhe
crer que precisa de ajuda médica.
Teresa –vamos dar-lhe este nome- mulher muito
personalizada e muito conhecida entre nós, aqui na Baixa, está com cerca de
oitenta primaveras. Vive sozinha numa rua estreita onde o Sol beija o chão lá
mais para Maio, mês das flores e da multiplicação dos passarinhos. Nos últimos
tempos é notório um certo abandalhamento na higiene corporal e um perfume
pesado nas roupas um pouco ensebadas. Calcula-se que a sua casa está cada vez
mais a ser depósito de coisas sem valor e cujo fedor começa a invadir as
redondezas –a Síndrome de Diógenes é uma das patologias que atingem os mais
velhos. Consiste em reunir, sem critério e obsessivamente, todo o género de
objetos e coisas velhas sem valor. Tudo serve para levar para casa. Uma amiga
de Teresa, apercebendo-se do que está acontecer, já tentou por outros meios, que
implicassem a persuasão, pedir apoio psicológico, mas a especialista clínica
não passou da porta. Para piorar, Teresa ainda considerou haver invasão da sua
privacidade por parte dos mais chegados. Pouco há a fazer a não ser assistir a
uma decrepitude que se adivinha célere e, um dia destes, a uma morte sem
assistência por opção. Tudo por que Teresa, que sempre viveu independente, não
tem noção da sua fragilidade mental.
A questão, que não é nova, é: por um lado, uma
Lei de Saúde Mental que prima pela decisão do próprio, quando o seu estado de
saúde mental está muito aquém de poder decidir por si mesmo seja o que for. Por
outro, assistirmos impotentes à decadência destes idosos que, como trapos sem
préstimos, se arrastam pelas ruas da calçada –infelizmente, constata-se também que
há já uma classe de novos-velhos, pessoas com pouco mais de trinta anos, que,
divididos entre o álcool e as drogas, seguem o mesmo percurso de arrastamento
pelos dias sem dia de fim à vista.
Sem culpar o sistema –porque o sistema somos
todos-, deixo o texto apenas para reflexão e uma pergunta: que sociedade
estamos a construir?
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