terça-feira, 7 de abril de 2015

UM FURTO NA PRAÇA VELHA





Passavam alguns, poucos, minutos depois das 14 horas no relógio da torre sineira da igreja de São Bartolomeu quando os gritos estridentes de duas mulheres, embrulhadas uma na outra e com menção de se agredirem, invadiram todo o espaço da Praça do Comércio. Um homem colocou-se no meio das duas para evitar que houvesse hematomas e enquanto outro, comerciante chinês e marido de uma das envolvidas, agarrava a outra, mais nova e com aspecto de toxicodependente pelos braços e dizia “chamem a polícia! Chamem a polícia! Ela roubar roupa em minha loja!”, foi mais o fumo que a labareda.
Chamou-se a PSP. Depois de dois telefonemas para o 112 e passados cerca de 10 minutos, chegou um agente que costuma patrulhar estas ruas diariamente e, juntamente com a presumível ladra e o casal de negociantes, entrou para dentro do estabelecimento de artigos chineses. O final da história só se saberá lá para o fim desta crónica. Se souber! Sei lá?

UMA CENA PORTUGUESA, COM CERTEZA

Assistir a um quadro sociológico destes na rua é como ver o filme “Anike-Bobó”, do recém-falecido Manoel de Oliveira, em 1942. Basta só alterar a época e estamos a retratar os costumes sociais. Ali, naquele pulsar de vida humana, está tudo. Imaginemos uma câmara de filmar. Tudo começa com duas mulheres engalfinhadas na via pública, em que os gritos meio histéricos de ambas são a parte mais importante que quebra o quotidiano. Pelo esgar dos rostos, estão prontas a dar uns sopapos uma na outra. Uma é de meia-idade, de etnia chinesa, e outra, de pouco mais de vinte anos, portuguesa e com aspecto de “agarrada”.
A câmara desvia-se e foca a área envolvente. Como se fosse um espectáculo, dá conta de muitas pessoas especadas que apreciam a cena com deleite sem intervir nem procurar saber o que se passa. Um homem vai a passar e, se calhar porque é diferente da maioria ou tem queda para herói, coloca-se no meio das lutadoras, evitando que se agridam mutuamente, e procura que se tratem com respeito.
Acompanhado de uma outra comerciante portuguesa da zona, chega outro homem de fisionomia oriental. Agarrou o braço de uma das contendoras para que não fugisse e proclamou: “chamem a polícia! Ela roubar roupa em minha loja!” –ficamos portanto a saber que o segundo homem é comerciante chinês com loja aberta no local e, mais que certo, já sabia que a esposa tinha apanhado a rapariga a furtar no interior do seu espaço comercial.
O homem que interveio inicialmente chama a PSP. A ladrona tenta soltar-se do braço do comerciante provindo do oriente e, fazendo tudo para se soltar, recorre ao teatro, na qualidade de vítima e tentando impressionar, faz crer que está a ser agredida. Um sexagenário que estava a comer na esplanada em frente, por certo turista inglês, porque, sabe-se lá, teria sido também negociante no seu país de origem ou teria também queda para herói, em velocidade acelerada, sai do seu lugar sentado e, com alguma intempestiva força, segura a rapariga no braço contrario ao chinês.

UM OUTRO PLANO CINEMATOGRÁFICO

A câmara de filmar mostra agora um magote de gente à volta dos intervenientes, como se estivessem num coliseu romano, ou num cenário de apostas de luta livre. Ouve-se uma voz interrogar: “já chamaram a polícia? A polícia nunca mais vem?”.
A comerciante portuguesa, que foi chamar o colega chinês, está nervosa e vai remoendo: “não podemos admitir isto! São nossos colegas. Gosto muito deles! Então chega esta fulana e rouba e, se preciso for, ainda “arreia” na comerciante? Isto não pode ser!”. A presumível gatuna, agora no chão e presa pelo representante inglês e pelo chinês, em face da argumentação da mulher portuguesa atirou sem defesa possível: “sua grande puta!”. E a lojista portuguesa, ficando danada e pior que uma barata, vira-se para o lado e retorque: “já viram isto? Já viram o que sofre um comerciante?”
Como é normal, os ânimos começam a aquecer e, como sempre perante um incidente ou acidente, dividem-se em duas claques, uma que apoia o comerciante e outra que vai pela larápia, somente impressionada por ela estar no chão. Um crioulo de meia-idade e de cabelos brancos, cabo-verdiano, começa a insurgir-se contra a maneira como o inglês está a tratar a pilha-roupas e tenta ganhar adeptos em redor. O ambiente é de tensão. E alguém interroga: “mas a polícia nunca mais chega?”
Entretanto, dando passos para trás e para a frente, nitidamente irritada e ansiosa por um final feliz em que os bons vencem os maus, a comerciante portuguesa, quer ajudar a todo o custo os chineses e volta a referir a sua entrega ao labor: “coitados! Eles trabalham muito! Não merecem ser tratados de qualquer maneira!”.

A GLOBALIZAÇÃO A TODA A FORÇA

Já vimos que estávamos no meio de um caldo de culturas e se aparecessem outros nacionais estrangeiristas nem surpreendia. É então que aparece um brasileiro do mesmo escalão etário da mulher do alheio e, nitidamente por se conhecerem, começa a interceder a seu favor e a dizer que tinha visto o que aconteceu. A comerciante portuguesa e amiga dos chineses não deixa passar e profere para o brasileiro: “meu, se viste tens de testemunhar!”. Mas o natural da terra de Cabral não gostou do convite e, dando passos para trás e para frente, alterou-se e ora dizia que testemunhava ora que não. Entretanto fez um telefonema e disse: “venham ter comigo à Praça do Comércio que há aqui problemas!”.
No meio da assistência, agora já maior, alguém enfatiza: “e a polícia, que nunca mais vem? Se tivesse que haver mortes, havia mesmo!”
Vindos do lado de São Bartolomeu surgiram reforços para o brasileiro. Três homens, um de etnia cigana, e duas mulheres. O caldo de culturas estava a encher mas ainda não tinha entornado. O cigano, ainda novo e de ar adolescente, como que a querer mostrar o seu imaginário poder tentou interceder pela rapariga mas, como ninguém ligou e o clima era desfavorável, sem grande dificuldade teria apreendido que o melhor era não se meter em alhadas e, levando consigo o brasileiro, deu de “frosques” e a comerciante portuguesa, em vã glória e descoraçoada, ficou sem testemunha.

EUREKA! CHEGOU A POLÍCIA!

É então que do grupo de mirones sai um grito: “já lá vem a polícia!”. E, como em busca do Salvador, todos olham para o lado da igreja de São Bartolomeu à espera de ver surgir uma carrinha carregada de agentes, com viseiras e tudo. Mas daquele lado, daquela santa madre igreja não vinha nada. Naturalmente se aquela não respondia, pela alternativa possível, viraram-se para o canto contrário, para outra e pregaram os olhos no templo de São Tiago. Fosse por milagre divino ou não, do lado dos caminhantes de São Tiago, a passo cadenciado e como romeiro, lá vinha o nosso conhecido polícia Gomes, calmamente e sem pressas que, de facto, nem era nada de grave. Afinal, embora pareça sempre uma eternidade para quem espera, entre o primeiro telefonema e a chegada do cívico, só tinham passado cerca de 10 minutos. E não foi por esse tempo de espera que se desencadeou um conflito diplomático entre Portugal e a China.

MAS AFINAL COMO É QUE ACABA ISTO?

Como final para esta ilusória película cinematográfica, embora não fosse filmado, podemos especular. Em nome dos direitos, liberdades e garantias constitucionais, a rapariga amiga do alheio vai na paz dos anjos e nada lhe acontece –já que o operador chinês perante a iminência de liquidar cerca de 100 euros para formalizar a queixa particular e ter de contratar um advogado não estava para aí virado. Até por que as coisas já não são o que foram.
A comerciante portuguesa adivinha-se a remoer que a vida de chinês está lixada e igual à de português.
O público presente, a ir-se frustrado com um final tão comezinho mas sempre solidário com a zona histórica, pressente-se a dizer: “não diga que fui eu que disse, mas esta Baixa está cada vez mais entregue ao deus dará!”
Mesmo, mesmo a terminar o filme vê-se a rapariga burlona a entrar na esquadra da PSP e a apresentar queixa por ofensa à integridade simples. A vida de chinês está cada vez mais igual à do português. Lá nisso a comerciante portuguesa tem razão.
E quanto a si, leitor, não gostou do filme? Por ser longo? Não se queixe. Não pagou para ler a história, pois não? Com todo o respeito pelo falecido, se fosse do Manoel Oliveira levava com três horas.


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