Passavam alguns, poucos, minutos depois das 14
horas no relógio da torre sineira da igreja de São Bartolomeu quando os gritos
estridentes de duas mulheres, embrulhadas uma na outra e com menção de se
agredirem, invadiram todo o espaço da Praça do Comércio. Um homem colocou-se no
meio das duas para evitar que houvesse hematomas e enquanto outro, comerciante chinês
e marido de uma das envolvidas, agarrava a outra, mais nova e com aspecto de
toxicodependente pelos braços e dizia “chamem
a polícia! Chamem a polícia! Ela roubar roupa em minha loja!”, foi mais o
fumo que a labareda.
Chamou-se a PSP. Depois de dois
telefonemas para o 112 e passados cerca de 10 minutos, chegou um agente que
costuma patrulhar estas ruas diariamente e, juntamente com a presumível ladra e
o casal de negociantes, entrou para dentro do estabelecimento de artigos
chineses. O final da história só se saberá lá para o fim desta crónica. Se
souber! Sei lá?
UMA CENA PORTUGUESA, COM CERTEZA
Assistir a um quadro sociológico destes na rua
é como ver o filme “Anike-Bobó”, do
recém-falecido Manoel de Oliveira, em 1942. Basta só alterar a época e estamos
a retratar os costumes sociais. Ali, naquele pulsar de vida humana, está tudo.
Imaginemos uma câmara de filmar. Tudo começa com duas mulheres engalfinhadas na
via pública, em que os gritos meio histéricos de ambas são a parte mais
importante que quebra o quotidiano. Pelo esgar dos rostos, estão prontas a dar
uns sopapos uma na outra. Uma é de meia-idade, de etnia chinesa, e outra, de pouco
mais de vinte anos, portuguesa e com aspecto de “agarrada”.
A câmara desvia-se e foca a área
envolvente. Como se fosse um espectáculo, dá conta de muitas pessoas especadas
que apreciam a cena com deleite sem intervir nem procurar saber o que se passa.
Um homem vai a passar e, se calhar porque é diferente da maioria ou tem queda
para herói, coloca-se no meio das lutadoras, evitando que se agridam mutuamente,
e procura que se tratem com respeito.
Acompanhado de uma outra
comerciante portuguesa da zona, chega outro homem de fisionomia oriental. Agarrou
o braço de uma das contendoras para que não fugisse e proclamou: “chamem a polícia! Ela roubar roupa em minha
loja!” –ficamos portanto a saber que o segundo homem é comerciante chinês
com loja aberta no local e, mais que certo, já sabia que a esposa tinha
apanhado a rapariga a furtar no interior do seu espaço comercial.
O homem que interveio inicialmente
chama a PSP. A ladrona tenta soltar-se do braço do comerciante provindo do
oriente e, fazendo tudo para se soltar, recorre ao teatro, na qualidade de
vítima e tentando impressionar, faz crer que está a ser agredida. Um
sexagenário que estava a comer na esplanada em frente, por certo turista
inglês, porque, sabe-se lá, teria sido também negociante no seu país de origem
ou teria também queda para herói, em velocidade acelerada, sai do seu lugar
sentado e, com alguma intempestiva força, segura a rapariga no braço contrario
ao chinês.
UM OUTRO PLANO CINEMATOGRÁFICO
A câmara de filmar mostra agora um magote de
gente à volta dos intervenientes, como se estivessem num coliseu romano, ou num
cenário de apostas de luta livre. Ouve-se uma voz interrogar: “já chamaram a polícia? A polícia nunca mais
vem?”.
A comerciante portuguesa, que foi
chamar o colega chinês, está nervosa e vai remoendo: “não podemos admitir isto! São nossos colegas. Gosto muito deles! Então
chega esta fulana e rouba e, se preciso for, ainda “arreia” na comerciante?
Isto não pode ser!”. A presumível gatuna, agora no chão e presa pelo
representante inglês e pelo chinês, em face da argumentação da mulher
portuguesa atirou sem defesa possível: “sua
grande puta!”. E a lojista portuguesa, ficando danada e pior que uma
barata, vira-se para o lado e retorque: “já
viram isto? Já viram o que sofre um comerciante?”
Como é normal, os ânimos começam
a aquecer e, como sempre perante um incidente ou acidente, dividem-se em duas
claques, uma que apoia o comerciante e outra que vai pela larápia, somente
impressionada por ela estar no chão. Um crioulo de meia-idade e de cabelos
brancos, cabo-verdiano, começa a insurgir-se contra a maneira como o inglês
está a tratar a pilha-roupas e tenta ganhar adeptos em redor. O ambiente é de
tensão. E alguém interroga: “mas a
polícia nunca mais chega?”
Entretanto, dando passos para
trás e para a frente, nitidamente irritada e ansiosa por um final feliz em que
os bons vencem os maus, a comerciante portuguesa, quer ajudar a todo o custo os
chineses e volta a referir a sua entrega ao labor: “coitados! Eles trabalham muito! Não merecem ser tratados de qualquer
maneira!”.
A GLOBALIZAÇÃO A TODA A FORÇA
Já vimos que estávamos no meio de um caldo de
culturas e se aparecessem outros nacionais estrangeiristas nem surpreendia. É então que aparece
um brasileiro do mesmo escalão etário da mulher do alheio e, nitidamente por
se conhecerem, começa a interceder a seu favor e a dizer que tinha visto o que
aconteceu. A comerciante portuguesa e amiga dos chineses não deixa passar e profere
para o brasileiro: “meu, se viste tens de
testemunhar!”. Mas o natural da terra de Cabral não gostou do convite e,
dando passos para trás e para frente, alterou-se e ora dizia que testemunhava
ora que não. Entretanto fez um telefonema e disse: “venham ter comigo à Praça do Comércio que há aqui problemas!”.
No meio da assistência, agora já
maior, alguém enfatiza: “e a polícia, que
nunca mais vem? Se tivesse que haver mortes, havia mesmo!”
Vindos do lado de São Bartolomeu
surgiram reforços para o brasileiro. Três homens, um de etnia cigana, e duas
mulheres. O caldo de culturas estava a encher mas ainda não tinha entornado. O
cigano, ainda novo e de ar adolescente, como que a querer mostrar o seu imaginário
poder tentou interceder pela rapariga mas, como ninguém ligou e o clima era
desfavorável, sem grande dificuldade teria apreendido que o melhor era não se
meter em alhadas e, levando consigo o brasileiro, deu de “frosques” e a comerciante portuguesa, em vã glória e descoraçoada,
ficou sem testemunha.
EUREKA! CHEGOU A POLÍCIA!
É então que do grupo de mirones sai um grito: “já lá vem a polícia!”. E, como em busca
do Salvador, todos olham para o lado da igreja de São Bartolomeu à espera de
ver surgir uma carrinha carregada de agentes, com viseiras e tudo. Mas daquele
lado, daquela santa madre igreja não vinha nada. Naturalmente se aquela não
respondia, pela alternativa possível, viraram-se para o canto contrário, para outra
e pregaram os olhos no templo de São Tiago. Fosse por milagre divino ou não, do
lado dos caminhantes de São Tiago, a passo cadenciado e como romeiro, lá vinha
o nosso conhecido polícia Gomes, calmamente e sem pressas que, de facto, nem
era nada de grave. Afinal, embora pareça sempre uma eternidade para quem
espera, entre o primeiro telefonema e a chegada do cívico, só tinham passado
cerca de 10 minutos. E não foi por esse tempo de espera que se desencadeou um
conflito diplomático entre Portugal e a China.
MAS AFINAL COMO É QUE ACABA ISTO?
Como final para esta ilusória película cinematográfica,
embora não fosse filmado, podemos especular. Em nome dos direitos, liberdades e
garantias constitucionais, a rapariga amiga do alheio vai na paz dos anjos e
nada lhe acontece –já que o operador chinês perante a iminência de liquidar
cerca de 100 euros para formalizar a queixa particular e ter de contratar um
advogado não estava para aí virado. Até por que as coisas já não são o que foram.
A comerciante portuguesa
adivinha-se a remoer que a vida de chinês está lixada e igual à de português.
O público presente, a ir-se frustrado
com um final tão comezinho mas sempre solidário com a zona histórica, pressente-se
a dizer: “não diga que fui eu que disse,
mas esta Baixa está cada vez mais entregue ao deus dará!”
Mesmo, mesmo a terminar o filme
vê-se a rapariga burlona a entrar na esquadra da PSP e a apresentar queixa por
ofensa à integridade simples. A vida de chinês está cada vez mais igual à do
português. Lá nisso a comerciante portuguesa tem razão.
E quanto a si, leitor, não gostou do filme? Por
ser longo? Não se queixe. Não pagou para ler a história, pois não? Com todo o
respeito pelo falecido, se fosse do Manoel Oliveira levava com três horas.
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