Quando se anunciou em Coimbra que tinha havido
uma revolução em Lisboa eu tinha 17 anos de idade e estava a trabalhar numa
loja de comércio da Baixa. Até aí, desde os dez, eu laborara na hotelaria.
Trocar o servir à mesa por ir atender ao balcão a vender trapos foi uma transferência
extraordinária. Não pelo ordenado, já que, em comparação com um qualquer café,
era menor. Nessa altura a vida comercial estava considerada num plano superior.
Isto é, a actividade hoteleira era muito mais intensiva, com muito mais horas
de labor e, embora já com um dia de folga semanal, trabalhava-se domingos e
feriados. Por outro lado, servir num café era muito mais serventuário. Ali era
notório o nós, os simples, e os outros, os donos do dinheiro. Estava-se
obrigado a um exagerado exercício permanente de servilismo. Se bem que também houvesse classes distintas. Havia os simplórios como eu, que normalmente vinham
da região do Luso e zona da Bairrada, que inicialmente eram pau para toda a colher e
começavam como grumete, havia os chefes, de balcão, de cozinha e de mesa, e
depois existia toda uma classe garbosa, vestida de calça preta, camisa branca e
laço, casaco branco e nos pés um sapato preto impecavelmente engraxado. Ser
empregado de mesa era o sonho de qualquer miúdo como eu, já que maioritariamente
nesta arte se trabalhava à percentagem de 10 por cento sobre o total da caixa. Para
além disso havia um costume arreigado de dar gorjeta ao "criado" de mesa.
Num período da nossa história em que dois
terços da população portuguesa eram pobres –e estes se dividiam em remediados e
pé-descalço-, entrar para o comércio, acima de tudo, foi o poder ser mais igual
a qualquer um, já que comecei a vestir melhor, a ter, por exemplo, duas camisas,
a não precisar de lavar a roupa durante a noite para vestir no dia seguinte, húmida e enxovalhada. Para além de estudar de noite, continuei a trabalhar aos fins de
semana a servir casamentos –conheci um senhor de idade, o senhor Quintas, que
me contratava praticamente todos os Domingos. Nunca lhe agradeci em vida a
atenção que teve comigo. E assim continuei até casar com 20 anos e ir, a seguir, para o serviço militar, para Estremoz –a título de curiosidade, apanhava o comboio
em Coimbra no Domingo à noite com 200 escudos no bolso (1 euro). A viagem
ferroviária custava 75 escudos para cada lado. Então, para poupar, juntamente
com o Jorge, a trabalhar na altura no Cruz Oculista, na Rua Adelino Veiga, e
hoje estabelecido na Rua Corpo de Deus com o mesmo ramo, vínhamos à boleia no
regresso. Ora poderia acontecer, como aconteceu tantas vezes durante as cerca de três
centenas de quilómetros, sermos transportados num Mercedes como em cima de uma
camioneta de caixa-aberta.
O tempo foi correndo e, tal como o meu amigo Jorge,
trabalhando muito, muito, estabelecemo-nos por conta própria e fomos comprando
o que nos fazia falta, o que era essencial para o bem-estar como habitação, e
podermos proporcionar aos nossos filhos tudo o que não tivemos. Sem lhes exigir
muito em troca, apenas pelo prazer de dar, oferecemos-lhes todas as ferramentas
que poderiam concretizar os seus sonhos –nesta realização revíamo-nos. Éramos
nós também quem estava ali. No dia em que a minha filha entrou para a Faculdade
de Psicologia chorei como uma criança. Passado um tempo, como morava fora da
cidade, comprei-lhe um carro para que ela pudesse estar mais à vontade nos
transportes. Tal como o Jorge, as dívidas que assumimos cumprimos sempre. Somos
herdeiros do compromisso, onde a palavra dada vale mais que toda a riqueza
universal. Nunca fomos ao banco pedir dinheiro para ir para férias.
Praticamente nunca viajámos para fora, e do mundo não conhecemos nada. O nosso
lema era trabalhar afincadamente enquanto éramos novos para quando chegássemos às
portas da velhice podermos usufruir do empenho hercúleo anteriormente
desencadeado.
Passados quarenta e um anos depois do 25 de
Abril de 1974, agora na pré-entrada de sermos sexagenários, o que está
acontecer connosco? Estamos aflitos para conseguir aguentar o que temos e continuar
a viver com dignidade. É como se agora, já sem esperança, estivéssemos a fazer
o percurso descendente, contrário a quando começamos. É como se sentíssemos que
não valeu a pena. Foi um esforço inglório. Para piorar, sinto um terrível
sentimento de impotência, de nada poder fazer. Estou contente com o balanço?
Não. Passados quarenta e um anos, é triste dizer, mas a sociedade portuguesa
está demasiadamente igual a 1974. Duas partes são pobres e uma parte é demasiado rica. Não
tenho gosto nenhum em fazer parte deste sistema viciado. Não gosto deste
Portugal.
TEXTOS RELACIONADOS
"Um poema solto"
"A Trupe"
"Eu liberal me confesso"
"Divagando por becos e ruelas"
"O que faz uma pessoa ser importante..."
"Um dia sem carro..."
"Hoje é o dia 25 de Abril"
"Um Jardim MacCartista"
"Reféns do progresso"
"Revolução? O que é uma revolução?"
"A criada"
"Hoje é o dia 25 de Abril"
"O brotar da sexualidade"
"A hipocrisia dos candidatos"
"Um conto... Até que ponto?"
TEXTOS RELACIONADOS
"Um poema solto"
"A Trupe"
"Eu liberal me confesso"
"Divagando por becos e ruelas"
"O que faz uma pessoa ser importante..."
"Um dia sem carro..."
"Hoje é o dia 25 de Abril"
"Um Jardim MacCartista"
"Reféns do progresso"
"Revolução? O que é uma revolução?"
"A criada"
"Hoje é o dia 25 de Abril"
"O brotar da sexualidade"
"A hipocrisia dos candidatos"
"Um conto... Até que ponto?"
Sem comentários:
Enviar um comentário