terça-feira, 21 de abril de 2015

O 25 DE ABRIL VISTO DA MINHA JANELA





Quando se anunciou em Coimbra que tinha havido uma revolução em Lisboa eu tinha 17 anos de idade e estava a trabalhar numa loja de comércio da Baixa. Até aí, desde os dez, eu laborara na hotelaria. Trocar o servir à mesa por ir atender ao balcão a vender trapos foi uma transferência extraordinária. Não pelo ordenado, já que, em comparação com um qualquer café, era menor. Nessa altura a vida comercial estava considerada num plano superior. Isto é, a actividade hoteleira era muito mais intensiva, com muito mais horas de labor e, embora já com um dia de folga semanal, trabalhava-se domingos e feriados. Por outro lado, servir num café era muito mais serventuário. Ali era notório o nós, os simples, e os outros, os donos do dinheiro. Estava-se obrigado a um exagerado exercício permanente de servilismo. Se bem que também houvesse classes distintas. Havia os simplórios como eu, que normalmente vinham da região do Luso e zona da Bairrada, que inicialmente eram pau para toda a colher e começavam como grumete, havia os chefes, de balcão, de cozinha e de mesa, e depois existia toda uma classe garbosa, vestida de calça preta, camisa branca e laço, casaco branco e nos pés um sapato preto impecavelmente engraxado. Ser empregado de mesa era o sonho de qualquer miúdo como eu, já que maioritariamente nesta arte se trabalhava à percentagem de 10 por cento sobre o total da caixa. Para além disso havia um costume arreigado de dar gorjeta ao "criado" de mesa.
Num período da nossa história em que dois terços da população portuguesa eram pobres –e estes se dividiam em remediados e pé-descalço-, entrar para o comércio, acima de tudo, foi o poder ser mais igual a qualquer um, já que comecei a vestir melhor, a ter, por exemplo, duas camisas, a não precisar de lavar a roupa durante a noite para vestir no dia seguinte, húmida e enxovalhada. Para além de estudar de noite, continuei a trabalhar aos fins de semana a servir casamentos –conheci um senhor de idade, o senhor Quintas, que me contratava praticamente todos os Domingos. Nunca lhe agradeci em vida a atenção que teve comigo. E assim continuei até casar com 20 anos e ir, a seguir, para o serviço militar, para Estremoz –a título de curiosidade, apanhava o comboio em Coimbra no Domingo à noite com 200 escudos no bolso (1 euro). A viagem ferroviária custava 75 escudos para cada lado. Então, para poupar, juntamente com o Jorge, a trabalhar na altura no Cruz Oculista, na Rua Adelino Veiga, e hoje estabelecido na Rua Corpo de Deus com o mesmo ramo, vínhamos à boleia no regresso. Ora poderia acontecer, como aconteceu tantas vezes durante as cerca de três centenas de quilómetros, sermos transportados num Mercedes como em cima de uma camioneta de caixa-aberta.
O tempo foi correndo e, tal como o meu amigo Jorge, trabalhando muito, muito, estabelecemo-nos por conta própria e fomos comprando o que nos fazia falta, o que era essencial para o bem-estar como habitação, e podermos proporcionar aos nossos filhos tudo o que não tivemos. Sem lhes exigir muito em troca, apenas pelo prazer de dar, oferecemos-lhes todas as ferramentas que poderiam concretizar os seus sonhos –nesta realização revíamo-nos. Éramos nós também quem estava ali. No dia em que a minha filha entrou para a Faculdade de Psicologia chorei como uma criança. Passado um tempo, como morava fora da cidade, comprei-lhe um carro para que ela pudesse estar mais à vontade nos transportes. Tal como o Jorge, as dívidas que assumimos cumprimos sempre. Somos herdeiros do compromisso, onde a palavra dada vale mais que toda a riqueza universal. Nunca fomos ao banco pedir dinheiro para ir para férias. Praticamente nunca viajámos para fora, e do mundo não conhecemos nada. O nosso lema era trabalhar afincadamente enquanto éramos novos para quando chegássemos às portas da velhice podermos usufruir do empenho hercúleo anteriormente desencadeado.
Passados quarenta e um anos depois do 25 de Abril de 1974, agora na pré-entrada de sermos sexagenários, o que está acontecer connosco? Estamos aflitos para conseguir aguentar o que temos e continuar a viver com dignidade. É como se agora, já sem esperança, estivéssemos a fazer o percurso descendente, contrário a quando começamos. É como se sentíssemos que não valeu a pena. Foi um esforço inglório. Para piorar, sinto um terrível sentimento de impotência, de nada poder fazer. Estou contente com o balanço? Não. Passados quarenta e um anos, é triste dizer, mas a sociedade portuguesa está demasiadamente igual a 1974. Duas partes são pobres e uma parte é demasiado rica. Não tenho gosto nenhum em fazer parte deste sistema viciado. Não gosto deste Portugal.


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