Conheço-a há cerca de vinte anos. Embora não
pareça, anda agora pelo hall de
entrada dos oitenta. É uma mulher calejada pela vida. O seu avental e o mexer
com ligeireza indica que continua a laborar como sempre desde que se lembra de
existir. Juntamente com o catolicismo fez também do trabalho a sua religião.
Uma, a da igreja, leva-lhe a alma um dia para um bom recato, outra, a faina,
garante-lhe a sobrevivência e a permanência para, até lá, poder continuar a
ajudar a filha e os netos, porque os velhos, chegados a uma certa etapa da
vida, passam com pouco. Precisam só de respirar. Querem apenas que os deixem
viver.
Há dias transpôs a porta e atirou: “queria pedir-lhe um favor. Diga-me, sabe se
há empresas que se encarregam de trocar as nossas coisas?”. Como?!?
Interroguei sem perceber a lógica do negócio. Com convicção explicou melhor. “Quero saber se há serviços que vão a nossa
casa e mudam os objectos que lá temos por outros. Sabe por que lhe pergunto? Há
dias fui à Guarda, à minha aldeia, e quando cheguei, no mesmo dia à noite, tinha
tudo trocado. Até a mobília da sala foi substituída. Lembra-se das pernas das
cadeiras que eram torneadas? Agora deixaram lá umas direitas! Foram as minhas
roupas, as minhas louças. Tudo! Por que fizeram isto, senhor?”
Perante a minha afirmação de que
estava confundida, disse: “você diz o
mesmo que a minha filha, mas, bolas, eu não estou doida?! Eu sei o que digo.
Tocaram-me as coisas!”. Debalde a tentei convencer que o cenário por si
descrito não poderia ter acontecido. Era ilógico. Se tivessem desaparecido,
isso sim, fazia sentido, agora a haver troca por troca é impossível fazer-se
isso tudo num só dia. Com algum cuidado fui alertando que deveria falar com a filha
e consultar o médico. Estas alterações comportamentais podem acontecer aos mais
velhos. Sem grande convencimento, ela foi embora.
Numa destas ruas estreitas, Maria –vamos chamar-lhe
assim- já vai na quarta fechadura que manda instalar na mesma porta. De cima-a-baixo
do pórtico, as quatro fecharias lá estão mas, recentemente e mesmo assim, não
impediram que desaparecesse uma travessa com um bolo durante um dia inteirinho.
O mais estranho, segundo o lamento de Maria, que vive sozinha, é que no dia
seguinte apareceu dentro de um móvel. “Isto
é coisa do demónio”, exclama com ênfase e pesar para uma vizinha. Não vale
a pena tentar explicar-lhe que, pela idade, a sua cabeça gera cenários e
teorias da conspiração. O problema é fazer-lhe crer que precisa de ajuda
médica.
Teresa –vamos dar-lhe este nome- mulher muito
personalizada e muito conhecida entre nós, aqui na Baixa, está com cerca de
oitenta primaveras. Vive sozinha numa rua estreita onde o Sol beija o chão lá
mais para Maio, mês das flores e da multiplicação dos passarinhos. Nos últimos
tempos é notório um certo abandalhamento na higiene corporal e um perfume
pesado nas roupas um pouco ensebadas. Calcula-se que a sua casa está cada vez
mais a ser depósito de coisas sem valor e cujo fedor começa a invadir as
redondezas –a Síndrome de Diógenes é uma das patologias que atingem os mais
velhos. Consiste em reunir, sem critério e obsessivamente, todo o género de
objectos e coisas velhas sem valor. Tudo serve para levar para casa. Uma amiga de Teresa, apercebendo-se
do que está acontecer, já tentou por outros meios, que implicassem a persuasão, pedir apoio psicológico,
mas a especialista clínica não passou da porta. Para piorar, Teresa ainda
considerou haver invasão da sua privacidade por parte dos mais chegados. Pouco
há a fazer a não ser assistir a uma decrepitude que se adivinha célere e, um
dia destes, a uma morte sem assistência por opção. Tudo por que Teresa, que
sempre viveu independente, não tem noção da sua fragilidade mental.
A questão, que não é nova, é: por um lado, uma
Lei de Saúde Mental que prima pela decisão do próprio, quando o seu estado de
saúde mental está muito aquém de poder decidir por si mesmo seja o que for. Por
outro, assistirmos impotentes à decadência destes idosos que, como trapos sem
préstimos, se arrastam pelas ruas da calçada –infelizmente, constata-se também que há
já uma classe de novos-velhos, pessoas com pouco mais de trinta anos, que,
divididos entre o álcool e as drogas, seguem o mesmo percurso de arrastamento
pelos dias sem dia de fim à vista.
Sem culpar o sistema –porque o sistema somos
todos-, deixo o texto apenas para reflexão e uma pergunta: que sociedade estamos a construir?
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