BAIXA DE COIMBRA: SALVEM O ASPIRANTE

 As cidades são macro-cosmos da representação identitária da sociedade. Aqui é possível encontrar toda uma plêiade de pessoas com os mais diversificados estratos e talentos. Quantas vezes passamos por um mendigo que, na sua andrajosa indigência, encerra mil páginas de uma vida, cujo romanceado descambar do autor daria um bom livro? Quantos artistas de talentos vários, aninhados em qualquer canto, de cara avermelhada, cabelo ensebado e de almas perdidas nos confins da intolerância, são por nós ostracizados e olhamos para eles com um olhar, ora piedoso, ora meio recalcado por terem vindo invadir “o nosso espaço”. Aquele espaço que consideramos dever ser, legitimamente por direito, unicamente daqueles que, como nós, “vestem o uniforme”, ou seja, o formatizado, de barba aparada, limpo e de boa aparência. Além disso, não gostamos daqueles que, provocatoriamente, vivem auto-marginalizados, anarcas por escolha própria, preferindo a rua com um determinismo ininteligível à luz do nosso entendimento –e chegado aqui não posso deixar de recordar, há quinze anos atrás, um conhecimento que travei com um indigente, anarca, assumido por autoconvencimento, que dormia em bancos de jardim da cidade, o grande poeta Sebastião d’Alva, distinguido com bolsa de mérito cultural pelo Ministério da Cultura e de larga obra publicada, que pode ser consultada na Enciclopédia Luso-Brasileira. Moçambicano de coração, revolucionário utópico de reconhecido mérito por convicção, veio a morrer atropelado, no Porto, há cerca de cinco anos.
E servi-me desta introdução para falar de um personagem que é já um ex-libris da "baixinha". Não é a primeira vez que o faço, já o referi mais do que uma vez. Falo, obviamente, do “aspirante”, personagem típica, com anomalia psíquica, que vagueia pelos becos e ruelas deste centro histórico. A sua indumentária é inconfundível; cheio de “pearcings” nas orelhas, montes de esferográficas no bolso superior da camisa e nos dedos, meio atrofiados, cheios de anéis. O seu andar é meio periclitante, de pernas alargadas, quase parecendo que se vai estatelar a todo o momento. Apesar dos seus 34 anos, parece ter pouco mais de 20. Durante todos os dias, numa errância predestinada, entra nos estabelecimentos e, num titubear carente, com trejeitos de menino, fazendo beicinho exclama: “dá-me xinquenta…mi dás?...Café…café!...Tu és Deus..tu és tio-avô!”
Durante a manhã “o aspirante” é (quanto a mim) uma graça de pessoa…carente de afecto. Não faz mal a ninguém. Já durante a tarde, por culpa de gente mais louca do que ele, assim não é. Como muitos donos de tascas –tasqueiros no mais vil da palavra- lhe vendem vinho, o “aspirante”, há uns dias para cá, está a tornar-se cada vez mais violento quer física, quer verbal, quer ostensivamente displicente, mostrando os órgãos genitais a quem passa. Ora este comportamento deve ser estritamente culpabilizante para ele? Claro que não! Mas sim para aqueles tasqueiros que, a troco de uns míseros cêntimos, “se vendem”, pondo em risco toda uma imagem de uma parte da cidade. É claro que tentar chegar à consciência destas criaturas é o mesmo que tentar falar com Deus.
E agora a parte mais grave e ainda relativa ao “aspirante”: Este homem, inimputável, tem um dos dedos da mão inchado como um pepino. Este inchaço é alegadamente provocado por um anel em chapa que, de tanto apertado, lhe está a provocar a inirrigação, isto é, a livre circulação sanguínea ao dedo e que a curto prazo, fatalmente, irá provocar-lhe gangrena no dedo e, se não for medicado a tempo, inevitavelmente, o braço.
Certamente, muitos leitores interrogar-se-ão o porquê deste apelo ser feito por aqui. Eu explico: é que liguei para o 112 e estes serviços de urgência nada podem fazer porque só poderão transportar ao hospital qualquer pessoa de livre e própria vontade. Mas acontece que falamos de um indivíduo interdito psíquico, irresponsável nos seus actos. Fui à 2ª Esquadra, e saliente-se a boa vontade e compreensão dos agentes para o caso em apreço, mas a verdade é que fiquei com a sensação de que só o Ministério Público poderá fazer alguma coisa. Aqui fica o apelo. Não podemos esquecer que falamos de um Ser humano, com a sua inalienável dignidade e cuja urgência de intervenção não se compadecerá com trâmites burocráticos, próprios de uma sociedade que só aceita entre os seus, aqueles capazes de reivindicar os seus direitos e despreza os incapazes errantes por estas ruas, para eles, umas vezes de amargura, outras de escolha opcional.