LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA
Para além do texto "CARTA A UM PARVO QUALQUER", deixo também a crónica "DEUS NOS LIVRE DA LISÍSTRATA".
CARTA A UM PARVO QUALQUER
Viva meu
papalvo. Espero que esta carta te vá encontrar de boa saúde… física, pelo
menos, porque mental estás completamente senil, meu velho. Não te esforces em
contraditar-me. Não vale a pena. Conheço-te melhor do que tu próprio alguma vez
almejaste conhecer-te. Não mates a cabeça em tentar adivinhar quem sou. Basta
apenas parares para refletir. Tu andas mal, meu! Muito mal, mesmo. Estou
profundamente preocupado contigo –acredita, este foi verdadeiramente o motivo
por que decidi escrever-te. Bem sei que não vais ligar nenhuma, porque te
conheço bem, mas mesmo assim arrisco enviar-te esta missiva. Mesmo não sendo
presciente, adivinho o teu sofrimento, a tua dor plasmada no teu rosto
hermético que há muito não sorri de vontade. Andas muito triste, bem sei. Afivelaste
essa máscara de solidão há uns anos e, como ela se te colou à face, nunca mais
a largaste. Sei muito bem que, quando escreves, procuras focalizar os teus
pensamentos na vida dos outros. Raramente falas de ti, da amargura que te
corrói as profundezas da alma. De ti, escreves apenas banalidades, passagens
que não despertam o mínimo interesse. Fazes essa descrição simplista para
enganares quem te lê, para que pensem que te conhecem e que compartilhas as
tuas preocupações com eles, mas eu sei que não. Tu falas muito pouco da tua
amargura, dos teus sonhos frustrados, em tentares ser o que nunca conseguiste.
Não descreves essa tua luta surda, obsessiva, em direção a um horizonte
desconhecido. Pareces um boneco de corda a quem rodaram a pega e enquanto se não
acabar a força continua sempre em frente, mesmo a arrastar-se pelo solo, meu.
Queres provar o quê? A quem? Esquece essa predestinação, meu! O teu pai já
morreu há quase uma vintena de anos e já não quer saber de nada de ti… se é que
alguma vez, enquanto vivo, se preocupou contigo. Não vale a pena, é tempo
perdido, continuares a querer demonstrar-lhe que, quando ele te dizia que
“dormias muito e nunca serias nada na vida”, estava enganado. Onde quer que ele
esteja já viu certamente. Deixa de te preocupares com os outros. Preocupa-te
apenas contigo. Já estás a ver que essa tua inquietação com quem te rodeia não
te conduz a lado nenhum.
Lembras-te
quando o teu pai, esquinado, completamente bêbado, batia na tua mãe junto ao
borralho e tu, encolhido a pedir às Alminhas para não levares também, fazias
uma promessa solene para ti mesmo de que nunca irias ser assim? Jamais baterias
na tua esposa um dia quando fosses homem? Jamais te embriagarias? De que te aproveita
isso? Não seguiste tu o caminho do teu pai, como castigo divino, imita o teu
filho o avô. Valeu-te alguma coisa? O que sentiste esta noite quando o foste
recolher ao hospital completamente carregado de álcool e sem dar acordo de si?
O que sentiste quando há tempos, lá em casa, verificaste que todas aquelas
garrafas que guardavas para uma ocasião especial estavam vazias? Não faças essa
cara de surpresa, meu. Eu conheço-te bem. Sei tudo a teu respeito. Lamento por
ti, podes crer mesmo. Bem sei que tanto te esforçaste para dares aos teus
filhos uma vida que não tiveste. Lembras-te quando fizeste o exame da 4ª
classe, tiveste os teus primeiros sapatos, calça de terylene e camisa tv, e,
para que todos na aldeia vissem a tua roupa nova, foste sentar-te no patim do
adro da capela? Recordas quando chegaste à cidade com uma saca de pano onde não
teria dentro mais do que medos de falhar no novo emprego e poderes não
aguentar, no mínimo, um ano? Se acontecesse o contrário, lá na aldeia, serias
considerado um estroina e valdevinos que não parava em lado nenhum. Estás a
visualizar, meu? Consegues rememorar quando entre os 10 e os 16 anos compravas
roupa usada com as gorjetas que te davam no emprego? E as tuas vestes eram
lavadas durante a noite para vestires no dia seguinte, tantas vezes enxovalhada
e húmida? Consegues reviver o caminhares com uns sapatos, dos mais baratos que
havia –do “Campeão Português” e que custavam 80 escudos, hoje 40 cêntimos-
completamente com a sola gasta, com um buraco no meio, e que até evitavas
calcares as pedras mais salientes?
Quiseste
facultar tudo o que não tiveste aos teus filhos. Sentias que tinhas obrigação
de lhes dares o que não tiveste. Enquanto criança, nunca o teu aniversário foi
comemorado. O Natal e a Páscoa, idem aspas. Nas datas importantes como a
comunhão solene, por exemplo, estiveste sozinho. Nunca esqueceste esse lapso
dos teus pais, meu. Pois, como se tivesses essa memória a queimar-te a mente, para
os teus filhos estiveste sempre nas datas mais importantes das suas vidas.
Algumas vezes ias a correr e chegavas já depois do espetáculo ter começado.
Levantavas os braços para eles verem que estavas lá. Eu sei, meu. Eu acompanhei
essa parte da tua história. É triste, meu, quando às vezes te acusam de não
lhes teres dado carinho. É ofensivo, meu. Tu fizeste tudo para que fossem felizes.
Aliás, tenho a certeza de que, ao longo da tua existência, a tua família esteve
sempre presente. Até te digo sem pestanejar que os interesses deles foram
sempre colocados depois dos teus. Vai ver as cassetes de vídeo, quando eles
eram pequenitos e lá se pode ver, nas brincadeiras, o ar de felicidade comum.
Como te podem acusar de não lhe teres dado afeto? Oferecer um brinquedo que
nunca se teve a um filho não é um ato de carinho? Dar uma camisola de marca que
nunca se pode ter é o quê? Deste de mais, meu. Esse é o problema. Deverias
saber que só damos valor às coisas quando não as temos. E tu deste por não
teres tido. Gozavas o sentimento de posse da mesma forma como se fosse para ti.
E eles tiveram tudo o que a classe média da altura detinha, para que não se
sentissem complexados, inferiorizados, perante os colegas na escola. E tu
trabalhavas, trabalhavas cada vez mais para que nada lhes faltasse. Como a remendar
o teu passado, deste-lhes sapatos, calças e blusões caros, de luxo. Tu que não
pudeste ir estudar para o liceu, porque os teus pais eram muito pobres,
aprender solfejo – a tua música era o assobio que sempre te acompanhou a
trabalhar e até há uns anos- deste tudo isso aos teus herdeiros. Recordas
quando a tua filha entrou na Faculdade e choraste como uma Madalena? Naquela
entrada na universidade tu sentiste como fosse o teu ingresso. Era a tua projeção
existencial que estava em causa. O preenchimento de uma lacuna. Um buraco que
tentavas tapar. O grave é que, às vezes, por mais que tentemos remediar um
problema ele será sempre irresolúvel. E quanto mais nos esforçamos para a sua
solução maior é o fosso cavado entre o ofendido e o agressor. É como tentar
alterar um destino previamente escrito nas calendas do tempo.
Não vale a pena continuares a recriminar-te, meu. Agora é tarde. E toma
atenção: o que não pode ser solucionado resolvido está. Bem sei que gostavas de
ver os teus filhos encaminhados na vida, mas o que podes fazer? O que podias,
no que estava ao teu alcance, fizeste. Agora é com eles. Tal como na natureza,
com os passarinhos, apenas somos responsáveis pelos filhos até conseguirem
voar. A partir do momento em que o podem fazer o seu futuro passa para as suas
mãos, na sua vontade. Compreendo-te bem, meu. Gostavas que os teus herdeiros dessem
valor às coisas como tu dás. Mas como, meu? Se não sofreram o que tu sofreste
para as conseguir? Foi tudo fácil para eles. Estás farto de saber que o
sofrimento apura a alma, eleva o espírito. Se aceitas que é assim, porque
continuas a teimar? És burro, meu? Eu entendo. Acredita que entendo. Custa ver
um projeto de vida ir por água abaixo, ao sabor da corrente. É um sofrimento
que se arrasta há muitos anos. É uma areia na engrenagem que vai causando mossa
nas relações entre ti e a tua mulher. Estou a ver a coisa, meu. As mães, com o
seu obsidente sentimento de amor pelos filhos, tentando tapar as suas falhas
graves, acabam por destruir os elos que sustêm a própria família. É natural, eu
sei, meu. Mas é um bocado estúpido, não é? Nenhum primogénito merece a
separação dos pais, sobretudo quando lhe foi dado todas as oportunidades para
se reinserir na sociedade. Todos, individualmente, através do trabalho, devemos
contribuir para a riqueza e o desenvolvimento da prole e, por inerência, do
país. Não há máximos –isso já depende da ambição de cada um e até onde quer
chegar-, mas há mínimos exigíveis para sermos cidadãos transversalmente com os
mesmos direitos e obrigações. Não pode haver “pão para malucos”. Só pode ter
direito a broa na mesa quem se esforça e contribui para a ter. O bem-estar
conquista-se, não cai do céu.
Comecei
com esta retórica, meu, desculpa, bem sei que comungas da mesma opinião.
Infelizmente não tenho soluções para o teu caso. Resta-me apelar à tua santa paciência.
O tempo resolve tudo… E se não resolver, repito, solucionado está. Desculpa,
também, ter-te chamado parvo. Não és. Bem sei que não és. Um grande abraço,
meu.
DEUS NOS LIVRE DA LISÍSTRATA
Na última sexta-feira quando o relógio da
torre da Igreja de São Bartolomeu marcou mais ou menos 21h30 o pequeno largo da
Rua de Sargento Mor estava repleto de mulheres. Se não me engano, só um homem
estava lá –no caso, era eu porque fui contratado para reportar o evento para o
grande público nacional e internacional e, por isso mesmo, peço desculpa ao meu
género mas, como se deve entender pela falta de trabalho, não podia dizer que
não. Juro pela minha avozinha que estava, e estou, completamente solidário com
a classe masculina. Bem sei que você não está a perceber nada da minha prosa,
mas faça o favor de ir com calma que já explico tudo. Como sabe a ansiedade é
terrível para o ato. Desmancha tudo em três tempos e um homem, perante a
mulher, fica estarrecido e mais dócil que um cordeirinho perante a mamã.
Vou então partir para o que me motivou a
escrever esta crónica. O caso é este: dois jovens, o Dinis e a Mónica,
finalistas do Curso de Teatro, lembraram-se de levar à cena a peça “Lisístrata”, de Aristófanes – O
argumento gira em torno de um grupo de mulheres que, para impedir que os seus
companheiros vão para a guerra, se agrupa e, usando o melhor instrumento que
uma mulher tem para os pressionar –refiro a inteligência- fazem greve ao sexo. Então
contactaram sete mulheres, de tomates, salvo sejam, oriundas da Rua de Sargento
Mor, a Hermínia, do Cantinho da Anita,
a Helena, da Loja Lena, a Marta, do Talho Sargento Mor, a Graça, do Restaurante Orpheu, a Anabela, da Retrosaria Ziguezague, a Ana, da sapataria “Low Cost”, e a Maria
Patrocínio, do restaurante 007, todas
mulheres de negócio na reputada artéria. E se isto alastra? Ai senhor! O que
vai ser de nós, homens? *
* Por questões de espaço no jornal, fui obrigado a amputar o texto original, que escrevi no própria dia. Como não quero que lhe falte nada, leitor, vou plasmá-lo aqui novamente.
DEUS NOS LIVRE DA LISÍSTRATA
Mais logo quando o relógio da torre da Igreja
de São Bartolomeu marcar mais ou menos 21h30 o pequeno largo da Rua de Sargento
Mor vai estar repleto de mulheres. Se não me enganar, só um homem vai estar lá –no
caso, eu porque fui contratado para reportar o evento para o grande público
nacional e internacional e, por isso mesmo, peço desculpa ao meu género mas,
como se deve entender pela falta de trabalho, não podia dizer que não. Juro
pela minha avozinha que estou completamente solidário com a classe
masculina. Aliás, até vou mais longe, isto é uma afronta reacionária à classe
trabalhadora. Fogo! É uma falta de respeito para quem tanto trabalha. Porque
uma coisa é estar de perna-aberta e dizer “anda
cá meu amorzinho, salta para cima de mim!”, outra, é um homem diligente,
para além de ter de parecer um grande garanhão, ter de ser, mostrar que está à
altura e que tem mesmo de desempenhar o seu papel como deve ser. Porque, vamos
lá, um sujeito quando está na função não pode representar. Ou é ou não é! Bem
sei que você não está a perceber nada da minha prosa, mas faça o favor de ir
com calma que já explico tudo. Como sabe a ansiedade é terrível para o ato.
Desmancha tudo em três tempos e um homem, perante a mulher, fica estarrecido e
mais dócil que um cordeirinho perante a mamã.
Vou então partir para o que me motivou a
escrever esta crónica –que, como plasmei em cima, estou indignadíssimo, mas
passemos à frente. O caso é este: dois jovens, o Dinis e a Mónica, finalistas
do Curso de Teatro, lembraram-se de levar à cena a peça “Lisístrata”, de Aristófanes –calma que já conto o que é isto! Então
contactaram sete mulheres, de tomates, salvo sejam, oriundas da Rua de
Sargento-mor, a Hermínia, do Cantinho da Anita, a Helena, da loja Lena, a
Marta, do Talho Sargento-mor, a Graça, do Restaurante Orpheu, a Anabela, da
Retrosaria Ziguezague, a Ana, da sapataria “Low Cost”, e a Maria Patrocínio, do
restaurante 007, todas mulheres de negócio na reputada artéria. Então os “miúdos” –porque levar uma peça destas à
cena só pode mesmo ser obra de rapaziada nova-, cheios de força e sem
calcularem a revolução que pode dar -para o prejuízo, é claro- ao pessoal
másculo, toca de as orientar para a representação. Como escrevi em cima, será
mais logo, se não chover –mas cá para nós, Deus queira que chova a potes!
Então em que consiste a peça de teatro? Pois!
Aqui é que a coisa bate! O argumento gira em torno de um grupo de mulheres que,
para impedir que os seus companheiros vão para a guerra, se agrupa e, usando o
melhor instrumento que uma mulher tem para os pressionar –refiro a inteligência,
pensava que era o quê?-, fazem greve ao sexo. Ora aqui é que bate no rebate!
Imaginemos que isto alastra? Como é que eu e outros cá como o “je” ficamos? Não é por nada mas embora
custe a admitir, de uma forma não declarada, já somos dominados pelo género
feminino. As mulheres, para o género masculino, são a ditadura do proletariado.
São a opressão e a instrumentalização através da delicadeza. Contrariando o
filósofo Hobbes, que escreveu que o homem é lobo do homem, a mulher é a loba do
pobre homem. Claro que a guerra está aberta e, por este andar, vai haver muitas
mais baixas –deve ser por isto que os homens estão a dizimar as mulheres, não
deve? Por que as guerras têm sempre na génese a perda e a conquista de poder. É
ou não é? E não estou a escrever que concordo com a extrema violência, de
maneira nenhuma. Eu sou do tempo em que numa mulher não se batia nem com uma
flor –é óbvio que isto era a mitologia do tempo, o que se apregoava na rua.
Dentro de casa era cada arraial de pancadaria que até metia medo e no dia
seguinte aparecia a senhora toda pisadinha. Tinha caído na escada num acidente
inglório, invocava a própria.
Voltando à peça de teatro “Lisístrata”, apresentada pelas garbosas
mulheres da Rua Sargento Mor, se isto se espalha, se outras mulheres lhe tomam
o exemplo, será como derramar gasolina sobre uma fogueira. Pode ser muito pior
para nós, homens, que a peste bubónica no início do século XX. Mesmo tendo de
aturá-las e sermos seus (in)fiéis servidores, sem elas, a nossa vida é bem mais
complicada. Apesar de serem uma dor de alma, sem elas, não sobrevivemos. Não
alterem este estado de coisas. Pode ser? Apesar da minha novena prometida à
Rainha Santa não choveu e a representação foi muito ovacionada. Deus queira que
não repitam!
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