Veio ter comigo há dias. Transpôs a porta,
meteu a mão no bolso e puxou de uma carteira recente. Pretendia vendê-la,
defendeu. Era o único bem que possuía e o único meio de fazer algum dinheiro. É
um homem mediano, de meia-idade, cabeça calva, onde os cabelos que já a
cobriram por inteiro decidiram emigrar, olhos vivos e perscrutadores. Exprime-se
num português mal-amanhado e a fazer
ressaltar a pronúncia de leste. A carteira não tem qualquer valor, repliquei
para seu desalento. Em última cartada, em desabafo, o homem atirou: “Não ter uma única moeda no bolso. Estar muito aflito para pagar quarto e não
quer estender a mão à caridade. Não ser capaz. Sempre trabalhar na vida. Nunca estar
numa situação assim! Ser pintor e escultor. Ser ucraniano! O Marco enviar cá e dizer que você tinha
escrito a história dele e também escrevia a minha” –contei a narrativa do
músico polaco Marek Kepacs n’O Despertar, da edição de 20 de Março, e no seu
fremente desejo de ter um acordeão para poder dar sentido e cor à sua vida.
Dei-lhe uma folha branca e um lápis e pedi-lhe
para me mostrar o seu talento. Passado um bocado, e sob o meu olhar, tinha um Cristo,
com ar sofrido, bem desenhado e com traço inconfundível de criador. Não tinha
dúvida, à minha frente estava um artista, sem margem para dúvida. Se lhe
arranjasse uma cana para pescar, como
quem diz, tintas, pincéis e papel de aguarela será que estaria na disposição de
ir para a rua pintar e tentar arranjar um meio de sobrevivência? Interroguei. “Claro! Claro! Só precisar mesmo de tintas e
pincéis para trabalhar. Todo meu “respeto” para o senhor que tenha um grande “coraçau”.
Neste meio tempo apareceram dois meus amigos e ouvindo a conversa e perante o
desenho um disse logo que lhe oferecia um cavalete. O outro que lhe comprava as
tintas e os pincéis. No dia seguinte o Sergiu Stefanov –conhecido por Sérgio-
já estava a pintar no Largo da Freiria e pronto a tentar a sua sorte na rua.
Ainda teve tempo para me mostrar uma espectacular escultura de um busto feito
com jornais e farinha –e sempre a repetir: “eu
não enganar. Eu ser artista! Acreditar em mim!”
Mas afinal quem é o Sergiu Stefanov? É ele que se vai apresentar. “Tenho 49 anos de idade, nasci em 1965. Sou romeno. Disse que era
ucraniano para não me tomar por pedinte. Infelizmente sinto que o meu povo está
muito mal visto por cá. Estudei na Roménia até ao 10º ano. Fui funcionário da
Romtelecom durante cerca de uma década e até 1999. Deixou de haver trabalho e o
dinheiro começou a escassear. No regime comunista de Nicolae Ceausescu vivi
sempre bem, até à sua queda em Dezembro de 1989. Foi uma mudança violenta que
resultou em mais de mil mortes. Desde cedo estive sempre ligado à escultura e
pintura. Fiz três exposições em Botosani. Já em democracia, com a economia a
dar voltas na barriga de miséria, desde pedreiro a pintor de interiores, a estucador,
a artesão, a restaurador de móveis, até passando pela electromecânica, fiz de
tudo e não chegou. Atirei-me à Europa e fiz dela a porta da minha esperança.
Passei por Itália, Bulgária, França, Holanda. Nestes países fazia de tudo o que
aparecia, desde a construção civil até apanhar fruta, e aproveitava o que
calhava para sobreviver. Em 2013 vim para Portugal. Por cá, trabalhei numa quinta,
na construção civil. Recusei sempre a estender a mão na rua. Tenho dignidade.
Continuo a procurar trabalho. Estou inscrito no IEFP, Instituto de Emprego e
Formação Profissional. Já tirei vários cursos profissionais, incluindo de
português, mas não tem aparecido nada para eu mostrar o que sei fazer. Nunca
recebi nada do Estado português até agora –embora já tivesse tratado da
documentação para futuramente poder receber o RSI, Rendimento Social de
Inserção. Até há pouco, com os trabalhos precários que tenho arranjado, fui conseguindo
saldar a renda do quarto. Pago 135,00 euros. Mas agora é que toquei no fundo.
Não sei o que fazer nem a que porta posso bater. Não quero ir para debaixo da
ponte. Para as refeições, diariamente, vou à Cozinha Económica. Foi então que o Marek Kepacs me
indicou o senhor. Pode fazer alguma coisa por mim? Pode ajudar-me?”
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