Meu caro João Silva, espero que
esta minha missiva o vá encontrar de boa saúde na companhia de quem mais ama.
Decidi escrever-lhe esta carta porque, enquanto associado da emérita agremiação
que V. Ex.ª tão bem dirige, mais uma vez e pela enésima, recebi uma comunicação
sua, enquanto membro da direcção da Associação Humanitária dos Bombeiros
Voluntários de Coimbra, a pedir a minha colaboração de “5 euros solidários” e
que os deposite na Caixa Geral de Depósitos.
Antes de prosseguir, gostaria de
fazer duas ressalvas. A primeira, sou um anónimo cidadão, ignorante, e que
nunca estive à frente de nenhuma instituição de solidariedade social; a
segunda, passando a imodéstia, para o bem e para o mal, considero-me um pedinte
militante. Comecei logo na infância, continuei na adolescência, prossegui na
maioridade. Enquanto já homem, cheio de ambição de poder dar o salto da pobreza
para uma vida melhor, em 1982, para obter financiamento para um negócio, olhando
“olhos nos olhos” as pessoas a quem pedia, corri os bancos todos da cidade.
Repito todos. Nenhum gerente me fez a vontade. Fui à minha aldeia de
naturalidade e para obter uns escassos 1000 euros, na altura duzentos contos,
num meu vizinho estive duas horas e num outro familiar directo estive três. Sempre
de “olhos nos olhos”, quase a perder a paciência, consegui atingir o
pretendido. Pus mãos à obra no meu plano de enriquecimento e comecei a trabalhar numa firma em que adquiri as quotas.
Mal abri portas do estabelecimento, caiu-me lá um funcionário das finanças para
penhorar todo o recheio. Como deve calcular, fiquei aterrado. “Olhos nos olhos”,
implorei ao agente que, por tudo o que lhe era mais sagrado me ajudasse: eu não
tinha dinheiro nenhum para cumprir minimamente. O homem, certamente tomado de
uma humanidade sem limites, e que ainda hoje me interrogo, disse-me: “olhe,
vamos fazer o seguinte, eu vou para a repartição e coloco o seu processo no
fundo de todos os outros. Mas tome atenção, se o chefe me chamar “à pedra”
ligo-lhe imediatamente e você vai lá para estabelecer um plano de pagamento. Não
me pode falhar!”. E assim foi. Passados cerca de três meses fui fazer o acordo
e tudo correu bem. Saliento que este agente do fisco nunca me solicitou nada
nem sequer ousou pedir o que quer que fosse. Em face do meu rogar “olhos nos
olhos”, estou certo, fez o que a sua consciência mandou para ajudar alguém que
nada tinha.
A seguir recebi outra comunicação
de dívida da então Caixa de Previdência com ameaça de penhora. A mesma coisa,
fui falar, “olhos nos olhos”, com a responsável e paguei em prestações. Depois
foi o Fundo de Turismo, igual e sempre “olhos nos olhos”. Depois destes casos
apresentados, nos anos subsequentes, tive imensos acontecimentos em que foi os “olhos
nos olhos” que me salvaram.
Como gosto de desafios, às vezes
até ridículos, em 2003, de acordo com o Diário as Beiras, para mostrar que as
pessoas não resistem a quem pede “olhos nos olhos”, disfarçado de mendigo, estive
a abolar na rua e em três horas consegui 30 euros –que foram entregues à Casa
dos Pobres. Recentemente, juntamente com dois amigos, olhando “olhos nos olhos”
os mercadores, que, como se sabe, na generalidade, estão a atravessar um
momento de grande pobreza, percorremos a Baixa a pedir ajuda para um colega comerciante
que estava em grandes dificuldades e conseguimos o milagre: mais de 3000 euros.
Não lhe quero ensinar nada, meu
caro João Silva, mas, se permite a sugestão, a enviar missivas para tudo quanto
é comunicação social o senhor nunca almejará conseguir os seus intentos. Estamos
todos saturados da correspondência virtual. Coloque os seus homens na rua,
encabeçando a comitiva, e, “olhos nos olhos”, fale com as pessoas. Garanto o
sucesso da operação desde que esteja convicto e acredite no que está a fazer.
Poderá interrogar porque procedem assim os humanos. Isto é, porque perante a
mesma motivação reagem de forma diferenciada. Com o tempo cheguei a essa
resposta. Não a vou configurar aqui porque considero ser despicienda.
Gostaria ainda de lhe dizer que
no projecto da Feira do Bota-abaixo, que lhe apresentei e o senhor deixou cair,
cuja receita seria para os bombeiros, era minha intenção explorar esta vertente
de sensibilização “olhos nos olhos”. Acredito que o acto de pedir, desde que
seja para uma fundamentada e justa causa, enriquece sem denegrir quem pede e
enobrece sem empobrecer quem dá.
Espero não me levar a mal por ter
sido franco consigo. Em vez de continuar a fazer a apologia do “Heróis do choro,
Nobre Povo, Nação Valente”, através dos “olhos nos olhos”, avance directamente
para o coração das pessoas.
TEXTOS RELACIONADOS
"Brincar com a mendicidade em jeito de alertar"
"Baixa: a crise também afecta os pedintes"
"Não dar para o peditório"
"O mendigo turco"
"A incompreensão da arte ou a insensibilidade humana"
"A "carraça"
TEXTOS RELACIONADOS
"Brincar com a mendicidade em jeito de alertar"
"Baixa: a crise também afecta os pedintes"
"Não dar para o peditório"
"O mendigo turco"
"A incompreensão da arte ou a insensibilidade humana"
"A "carraça"
1 comentário:
Amigo Luis disse tudo!
Jorge Neves
Enviar um comentário