(Foto de Leonardo Braga Pinheiro)
Na rua da cidade o homem caminha
lentamente por entre a multidão. Como proa de navio invisível a rasgar as ondas,
ele vai rompendo por entre os transeuntes que, embrenhados nos tormentos das
suas vidas, cada um olhando para si mesmo, parecem não dar por outros. Mas ele
observa cada rosto, cada traço, cada olhar, cada cabelo, e até a forma de
vestir e de calçar de cada um que consigo cruza e esboça um perfil mental do
retratado. Ele não sabe por que faz isto, muito menos se serve para alguma
coisa. Sabe apenas que, ao analisar os outros, é como se estivesse a ver-se a
si mesmo, numa catarse mal-amanhada. Dá por si a pensar que somos todos tão
estranhamente quase iguais, apenas com leves diferenças de pormenor, que no
conjunto geral praticamente não se distinguem. O curioso, pensa o caminhante
para si mesmo, é que todos, homens e mulheres, numa roda obsessiva, à procura
do inexistente, buscam essa diversidade, isto é, o diferente… que não existe em
lado algum. O que uns têm a mais num lado comportamental, numa ambivalência
inexplicável, terão em carência em outro qualquer sentimento. O engraçado, também,
é o facto de cada um, sendo feito da mesma argila existencial, à sua maneira,
se considerar superior e melhor do que o outro.
Enquanto vai mergulhado nestes
pensamentos, de repente, na rua larga, passa por si aquele tipo que ocupa um
cargo importante na Câmara Municipal. Marcha erecto, apontando o céu, com o olhar
fixo no horizonte, como se o seu raio de visão perscrutasse muito longe, no
global, sem se deter nas minudências, nas pessoas, coisas pequenas e sem valor humanitário; como se os indivíduos que se cruzam consigo fossem meras sombras
de um cenário teatral chinês. Calcula-se que este comportamento altivo mais não
é do que uma máscara de defesa e assente apenas nos alicerces frágeis do interesse estatutário. O nosso caminhante meditativo, observador, dá por si a pensar,
como a dissecar esta figura, o que seria este rei, neste tabuleiro de xadrez social,
se lhe retirassem o tapete da ilusória importância?
Agora o analista especulador está
a passar por aquela dama de meia-idade, divorciada recentemente e que, por sua
iniciativa, pôs um ponto final numa relação de muitas décadas. Quando lhe
perguntam o porquê dessa atitude, responde que estava farta de aturar o
ex-marido. Já não o aguentava. Está boa, o raio da “cota”! Já nem parece a
mesma! Ainda apetitosa, bem apertadinha, como maçã golden bem polida e
preparada criteriosamente para agradar ao consumidor, como boneca voluptuosa em
passo concertado, caminha pela calçada. Acabou de sair do cabeleireiro. As suas
longas madeixas alouradas, caindo-lhe pelos ombros, ainda largam aquele odor
perfumado que se confunde com café torrado. As suas unhas estão bem pintadas e
parecem uma tela repintada de cores berrantes em sótão de pintor sem nome. É de
supor que tudo o que fora pêlo no interior do seu corpo, na sua pele já um
pouco tocada pelo tempo, aparado pelas mãos experientes da esteticista, como
jardineiro em busca da erva daninha, terá desaparecido. Provavelmente, hoje,
como é sábado, irá a mais um encontro conseguido num site dedicado,
entre centenas de outros, aos descasados desta vida e solitários deste mundo. Como
um número sorteado numa tômbola de lotaria lá irá calhar e cair nos braços de
algum carente de amor, mentiroso e mais sozinho do que ela própria. Num
qualquer quarto bafiento de um motel de estrada, poeirenta e em segunda mão, se
rebolarão, com sofreguidão, em torno de momentos de prazer. Como comprimido analgésico,
tomado para a dor de cabeça, ambos, naquele entreter fatalista e sem destino,
se enganarão durante umas horas. No dia seguinte, como sol que renasce na
aurora, na busca pelo homem perfeito, tudo recomeçará de novo. Os seus olhos
entristecidos parecem denotar algum cansaço, quem sabe, talvez a sua alma esteja
ardente de saudades do seu ex-companheiro e artesão dos filhos queridos? Se
calhar já deu para ver, já se teria apercebido, que não há homens perfeitos. Todos
são incompletos, finitos, mas a pensarem o contrário. Quando, revendo retalhos
da memória, se lembra de certos momentos passados a dois, uma lágrima rebelde,
teima em borrar a pintura há pouco retocada no salão. Se pudesse voltar atrás! Mas
o tempo está para o humano como a água para o rio. Quer o tempo quer água nunca mais voltarão a ser os mesmos, apesar de o humano e o rio continuarem,
aparentemente, a serem iguais.
O mentalista pensador continua a
pisar as pedras duras do chão maltratado sem um único queixume. Agora está a passar
por um comerciante que está à porta da sua loja. O lojista, em conversa com um
seu certamente cliente, com um ar simpático, parece rir. Quantas mágoas
afogarão cada risco daquele aparente traço de felicidade? Quantas reviravoltas
dadas na cama em noite mal passajada? Quantos sonhos enterrados em campa rasa
de isolamento povoarão a sua mente? Mas este homem empobrecido, continuando a aparentar
uma forma de estar que já há muito perdeu e derrotado pelo sistema em secretária
de luxo, finge com quantos dentes tem na boca. Quando está só, apelando ao seu
santo protector, culpa-se e pede perdão em contas de rosário que jamais serão
entendidas ou terão fim. Resta-lhe o fingimento numa época de perdidos e
achados e de usar e deitar fora.
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