sexta-feira, 10 de agosto de 2012

O REGRESSO DO CANTANTE


 Hoje, de manhã, quem passou na Praça 8 de Maio pode aperceber-se de um vozeirão intempestivo: “oooooooooooooooooooooooooooooo”! Era o Geraldo a trautear uma das muitas árias do seu extenso repertório.
Já falei várias vezes deste “figurão” caminheiro destes becos e ruelas que atravessa a Baixa de Coimbra. É mais um de muitas figuras típicas que percorrem esta zona antiga. Uns com a sanidade diminuída, outros perfeitamente inseridos, como se diz, “normalizados”, mas, por uma razão ou outra, quem sabe por rotinas adquiridas ao longo da sua existência, acabam por se tornarem notados. Talvez, no fundo, a balouçar num limbo, numa linha de fronteira entre o que consideramos o dito ajuizado e o menos, como se nós, todos, não tivéssemos a mesma fragilidade e um pouco de tudo isto no nosso desempenho diário. Por um lado, é a rebeldia projectada numa liberdade, por vezes conquistada a ferros. E será talvez por o reconhecermos que, quando eles faltam porque morreram, sentimos que aquele espaço habitualmente ocupado por eles ficou vazio e a cidade ficou mais só. Já escrevi várias crónicas sobre este fenómeno social. Cada um deles –e de nós- tem sua característica própria. É curioso também verificar que individualmente tem sua potencialidade. Este, o Geraldo, canta; este, o “Carlitos popó”, tem preocupações sociais, no sentido de que procura ajudar; este, o Celso, gosta de expor a sua performance estilística; este, o António, é um respeitador de serviço; este, anónimo, preenche o seu tempo livre a alimentar os animais; este, o Mendes, agora, mentalmente, está muito melhor e já se torna menos notado; esta, a senhora Adelaide, é uma “workaholik”, uma trabalhadora compulsiva, que, apesar da provecta idade, não se consegue libertar do trabalho -assim como a senhora Mercês e a senhora Elevira; este, o Francisco, convenceu-se de que consegue prever sismos; este, o Cortez, é músico; e tantos outros de que me estou a lembrar e ainda não falei deles. Se atentarmos, para estas muitas pessoas, a rua é o seu palco. É aqui que projectam os seus sonhos, as suas frustrações e medos num desempenho diário e em que o grosso, o transeunte, é o seu espectador.
É muito interessante verificar a forma pacífica como a cidade acolhe toda esta panóplia de personalidades tão díspares. Se enquanto vivos não os ama, tolera-os, mas também não os repele. Há uma aceitação tácita do seu imaginário território. Estou convencido que de certo modo estes “cromos” preenchem um espaço da nossa memória. Ou seja, nas últimas décadas as urbes foram perdendo o seu vínculo de personalidade, sobretudo numa certa vertente marcante e que as distinguia das demais. Hoje verificamos que há uma certa mimética entre todas, um certo ir atrás das outras. Quem vê uma vê todas, sem que haja nada que as distinga das demais. As polis foram perdendo os cheiros, tão característicos das suas tascas e emanado das vendedeiras de artigos regionais de rua; a cor, que era mostrada nos reclames em néon e nos toldos das lojas de comércio; os barulhos, um certo troar, que era a sempre presente onda de fundo saída dos muitos circulantes das artérias e também o paradigma de certos costumes em desaparecimento. Talvez estas pessoas sejam o último reduto visual de um passado que, a meu ver infelizmente, está enterrado para sempre na nossa memória colectiva.


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