Hoje, de manhã, quem passou na
Praça 8 de Maio pode aperceber-se de um vozeirão intempestivo: “oooooooooooooooooooooooooooooo”!
Era o Geraldo a trautear uma das muitas árias do seu extenso repertório.
Já falei várias vezes deste “figurão”
caminheiro destes becos e ruelas que atravessa a Baixa de Coimbra. É mais um de
muitas figuras típicas que percorrem esta zona antiga. Uns com a sanidade
diminuída, outros perfeitamente inseridos, como se diz, “normalizados”, mas,
por uma razão ou outra, quem sabe por rotinas adquiridas ao longo da sua
existência, acabam por se tornarem notados. Talvez, no fundo, a balouçar num
limbo, numa linha de fronteira entre o que consideramos o dito ajuizado e o
menos, como se nós, todos, não tivéssemos a mesma fragilidade e um pouco de
tudo isto no nosso desempenho diário. Por um lado, é a rebeldia projectada numa liberdade, por vezes conquistada a ferros. E será talvez por o reconhecermos que,
quando eles faltam porque morreram, sentimos que aquele espaço habitualmente
ocupado por eles ficou vazio e a cidade ficou mais só. Já escrevi várias
crónicas sobre este fenómeno social. Cada um deles –e de nós- tem sua
característica própria. É curioso também verificar que individualmente tem sua
potencialidade. Este, o Geraldo, canta; este, o “Carlitos popó”, tem
preocupações sociais, no sentido de que procura ajudar; este, o Celso, gosta de
expor a sua performance estilística; este, o António, é um respeitador de
serviço; este, anónimo, preenche o seu tempo livre a alimentar os animais;
este, o Mendes, agora, mentalmente, está muito melhor e já se torna menos
notado; esta, a senhora Adelaide, é uma “workaholik”, uma trabalhadora
compulsiva, que, apesar da provecta idade, não se consegue libertar do trabalho -assim como a senhora Mercês e a senhora Elevira;
este, o Francisco, convenceu-se de que consegue prever sismos; este, o Cortez,
é músico; e tantos outros de que me estou a lembrar e ainda não falei deles. Se
atentarmos, para estas muitas pessoas, a rua é o seu palco. É aqui que
projectam os seus sonhos, as suas frustrações e medos num desempenho diário e
em que o grosso, o transeunte, é o seu espectador.
É muito interessante verificar a forma
pacífica como a cidade acolhe toda esta panóplia de personalidades tão díspares.
Se enquanto vivos não os ama, tolera-os, mas também não os repele. Há uma
aceitação tácita do seu imaginário território. Estou convencido que de certo
modo estes “cromos” preenchem um espaço da nossa memória. Ou seja, nas últimas
décadas as urbes foram perdendo o seu vínculo de personalidade, sobretudo numa
certa vertente marcante e que as distinguia das demais. Hoje verificamos que há
uma certa mimética entre todas, um certo ir atrás das outras. Quem vê uma vê
todas, sem que haja nada que as distinga das demais. As polis foram perdendo os
cheiros, tão característicos das suas tascas e emanado das vendedeiras de
artigos regionais de rua; a cor, que era mostrada nos reclames em néon e nos
toldos das lojas de comércio; os barulhos, um certo troar, que era a sempre
presente onda de fundo saída dos muitos circulantes das artérias e também o
paradigma de certos costumes em desaparecimento. Talvez estas pessoas sejam o
último reduto visual de um passado que, a meu ver infelizmente, está enterrado para
sempre na nossa memória colectiva.
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