sexta-feira, 31 de agosto de 2012

EDITORIAL: O FUNERAL, O FOLCLORE E A INDIFERENÇA



 Esta semana encerraram o Salão Brazil e a livraria 115. Para a Baixa, estes dois estabelecimentos, um na hotelaria e outro na área dos livros, eram dois importantes afluentes que ajudavam a movimentar este rio comercial e urbano. Se formos frios na objectividade, poderemos até dizer que morreram estes, ficam mais e outros virão. É verdade. O problema é que estas casas ao encerrarem levam consigo muitas dezenas de anos de convivência e companheirismo. Uma cidade pode ser uma metrópole, um cosmos, um corpo uno administrativo, um arquipélago, mas na sua divisão organizacional é constituída por becos, ruas, avenidas e praças. Depois, estas podem ser fragmentadas em pequenas ilhas que formam os seus bairros e, estes, anda poderão ser divisíveis em pequenos núcleos de pessoas ou agremiações. É esta coabitação social que constitui o âmago, a alma do lugar onde vivemos.
Quando desaparece um estabelecimento antigo, cuja publicidade foi feita de boca-em-boca, sentimos que na sua viagem sem regresso levam consigo um pouco de nós. Durante décadas foram a nossa família; conhecemos os seus proprietários, os seus empregados; muitas das suas histórias que passaram atrás do balcão; tantas vezes partilhámos as suas alegrias ou tristezas. Não será esta semana que mais iremos notar a sua ausência. Será de aqui a uns tempos quando precisarmos de algo que só eles tinham, porque cada estabelecimento é singular. Será nessa altura, quando a carência nos toca, que vamos ficar à toa ao batermos com o nariz na porta forrada a jornais e, às vezes, acompanhados com um edital em jeito de epitáfio, em arrazoado de insolvência, “aqui jaz”.

MAS, O QUE É ISTO? NEM UMA VELINHA?

 O que impressiona é a forma ligeira, de apatia geral, como se assiste à passagem do féretro destas grandes casas carregadas de história comercial. Em analogia parece que estamos a assistir ao filme Titanic, em que enquanto o grande barco se afunda, no salão de baile a orquestra continua a tocar e os muitos passageiros continuam a dançar grandes valsas, estendidas em passos estudados, sem noção de que o seu fim está próximo. Por sua vez o comandante, numa frieza calculista, faz de conta que tudo está bem e que o grande transatlântico navega à bolina.
Lembrei-me desta metáfora, exactamente, porque também esta semana o presidente da Câmara Municipal de Coimbra, Barbosa de Melo, vinha retratado no Diário as Beiras a inaugurar a “Primark”, o novo espaço gigante de 1800 metros quadrados e instalado no Fórum Coimbra. Para ajudar a este meu pensamento vem também a Universidade de Coimbra, em parceria com a APBC, Agência para a Promoção da Baixa de Coimbra, e a Associação Ruas, a propor que na semana de 17 a 24 de Setembro as lojas abertas adiram a um concurso de montras, cujo prémio é de 1000 euros para o vencedor, e as muitas encerradas, nos seus vidros, sejam decoradas com painéis “que cerca de 200 crianças estão a pintar” –in Diário as Beiras de hoje e com o sugestivo título: “Uma semana para devolver autoestima às ruas da Baixa através das montras”.

A MENINA DANÇA?

 Vamos por partes e analisar cada uma destas iniciativas, a do presidente da edilidade coimbrã e a Universidade. Comecemos pelo chefe do executivo camarário e regente dos destinos da cidade. Enquanto político partidário, representante de todos os eleitores e, num equitativo equilíbrio imaginário de interesses, empenhado em tudo o que se passa no seu município, será que Barbosa de Melo fez bem em ir inaugurar esta nova grande superfície comercial? Antes de dar a resposta, convém dizer que esta área está inserida num condomínio particular e já há muitos anos licenciada e em actividade –quero dizer, portanto, que o executivo não poderia obstar a sua abertura. Convém acrescentar que, segundo o Diário de Coimbra (DC), vai empregar 125 pessoas –não se trata de uma nova criação de emprego, no sentido de que esta marca veio ocupar o espaço da “Rádio Popular”. Assenta também dizer que, ainda segundo o DC, esta nova marca irlandesa vende um pouco de tudo, desde roupas a bijutaria, a poucos euros.
E agora, depois destas ressalvas, à pergunta formulada, se eu tivesse que responder, diria que Barbosa de Melo não fez bem em estar presente na inauguração. Quanto muito, para não parecer mal, delegava num chefe de gabinete, ou outro qualquer vereador. E porquê? A meu ver, passa a mensagem de que continua a apoiar o grande capital, representado no grande comércio. E aqui poderemos fazer outra pergunta: “mas e na Baixa, não vai às inaugurações?”. Vai sim. Esteve há dias a inaugurar o “McDonald’s”, junto à Rodoviária –o que não constitui um bom exemplo, porque correu por aqui que a cadeia norte-americana fez tudo demasiado rápido. Se fosse um simples operador não teria sido assim, mas adiante.
Continuando, não poderemos esquecer que a abertura da “Primark” vai contribuir para o encerramento de mais uns tantos pequenos comércios na cidade, e era aqui, a meu ver, que o presidente da autarquia se deveria distanciar e sem se implicar directamente. Se tivesse usado um pouco de mais argúcia política, fazendo diferente dos seus antecessores, agradava a todos e não carrega com o ónus.

O QUE É PRECISO É INTELECTUALIZAR

 Quanto a facto da Universidade de Coimbra se estar a envolver em várias áreas formativas do comércio, como por exemplo “merchandising” e vitrinismo, vejamos, não quero parecer uma ave de mau agoiro e estar sempre no contra. O que entendo é que estas medidas, são avulsas; são analgésicos para um doente que está em estado terminal. A Universidade fica muito bem na fotografia –tal como Barbosa de Melo-, mas não resolve as questões de fundo do comércio de rua. Porque, façamos uma pergunta: o comércio tradicional não vende por não saber expor os seus produtos? Não vende porque não sabe atender os seus clientes? Serão estas as questões que minam a actividade da compra e venda costumada? Não, não são estas dificuldades. Qualquer comerciante pode responder a este assunto sem pestanejar. Há várias premissas que concorrem para o mesmo objecto. Posso elaborar algumas. Algumas delas e substantivas: o comércio de rua está a desaparecer rapidamente porque está perante uma concorrência selvagem das grandes superfícies, que, nas suas práticas, visam apenas prejudicar o lojista; a mudança de paradigmas nos costumes –compras online e no grande comércio e desvalorização acentuada da coisa, enquanto símbolo memorial e de poder económico; sobreprodução mundial, que concorre para o embaratecimentogeral dos bens; a queda acentuada da procura interna, sublinhada pelo decréscimo do rendimento das famílias e pelo aumento do desemprego; aumento desmesurado da carga fiscal na pequena empresa.

E QUAIS SÃO AS ACESSÓRIAS?

 Depois há os adjectivos, a grande área, pela sua grandeza, presumivelmente, terá crédito bancário, o que lhe permite aceder a produtos mais baratos, e o pequeno operador não; a desertificação dos centros urbanos e deslocalização do citadino para a periferia; uma acentuada descida nas vendas que conduz a margens negativas de comercialização; o empobrecimento visível da maioria dos mercadores, com falências a surgir em grande escala, arrastando toda a família, e provocando uma apatia generalizada; rendas exageradas, usurárias, que são prática corrente no sector e está a conduzir o arrendamento comercial em “rapidinhas” de três meses, “em deixa ver o que é que isto dá?”; uma política de desvalorização, consumada nas últimas duas décadas, que retirou dignidade ao comerciante e, mais grave, ao não ser acautelado um necessário trespasse, condenou-se esta profissão a terminar na geração em curso. Tudo indica que, se nada for feito com urgência, os jovens não abraçarão a compra e venda como vida profissional.
Quem quiser ajudar a salvar o comércio terá de olhar para estas premissas. Tudo o que se faça fora disto é floreado, que, embora pareçam muito bem, não vêm acrescentar nada de novo.

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