Esta semana encerraram o Salão
Brazil e a livraria 115. Para a Baixa, estes dois estabelecimentos, um na
hotelaria e outro na área dos livros, eram dois importantes afluentes que
ajudavam a movimentar este rio comercial e urbano. Se formos frios na
objectividade, poderemos até dizer que morreram estes, ficam mais e outros
virão. É verdade. O problema é que estas casas ao encerrarem levam consigo
muitas dezenas de anos de convivência e companheirismo. Uma cidade pode ser uma
metrópole, um cosmos, um corpo uno administrativo, um arquipélago, mas na sua divisão
organizacional é constituída por becos, ruas, avenidas e praças. Depois, estas
podem ser fragmentadas em pequenas ilhas que formam os seus bairros e, estes,
anda poderão ser divisíveis em pequenos núcleos de pessoas ou agremiações. É
esta coabitação social que constitui o âmago, a alma do lugar onde vivemos.
Quando desaparece um
estabelecimento antigo, cuja publicidade foi feita de boca-em-boca, sentimos
que na sua viagem sem regresso levam consigo um pouco de nós. Durante décadas foram
a nossa família; conhecemos os seus proprietários, os seus empregados; muitas
das suas histórias que passaram atrás do balcão; tantas vezes partilhámos as
suas alegrias ou tristezas. Não será esta semana que mais iremos notar a sua
ausência. Será de aqui a uns tempos quando precisarmos de algo que só eles
tinham, porque cada estabelecimento é singular. Será nessa altura, quando a
carência nos toca, que vamos ficar à toa ao batermos com o nariz na porta
forrada a jornais e, às vezes, acompanhados com um edital em jeito de epitáfio,
em arrazoado de insolvência, “aqui jaz”.
MAS, O QUE É ISTO? NEM UMA
VELINHA?
O que impressiona é a forma
ligeira, de apatia geral, como se assiste à passagem do féretro destas grandes
casas carregadas de história comercial. Em analogia parece que estamos a
assistir ao filme Titanic, em que enquanto o grande barco se afunda, no salão
de baile a orquestra continua a tocar e os muitos passageiros continuam a
dançar grandes valsas, estendidas em passos estudados, sem noção de que o seu
fim está próximo. Por sua vez o comandante, numa frieza calculista, faz de
conta que tudo está bem e que o grande transatlântico navega à bolina.
Lembrei-me desta metáfora,
exactamente, porque também esta semana o presidente da Câmara Municipal de
Coimbra, Barbosa de Melo, vinha retratado no Diário as Beiras a inaugurar a “Primark”,
o novo espaço gigante de 1800 metros quadrados e instalado no Fórum Coimbra.
Para ajudar a este meu pensamento vem também a Universidade de Coimbra, em
parceria com a APBC, Agência para a Promoção da Baixa de Coimbra, e a
Associação Ruas, a propor que na semana de 17 a 24 de Setembro as lojas abertas
adiram a um concurso de montras, cujo prémio é de 1000 euros para o vencedor, e
as muitas encerradas, nos seus vidros, sejam decoradas com painéis “que cerca
de 200 crianças estão a pintar” –in Diário as Beiras de hoje e com o sugestivo
título: “Uma semana para devolver autoestima às ruas da Baixa através das
montras”.
A MENINA DANÇA?
Vamos por partes e analisar cada
uma destas iniciativas, a do presidente da edilidade coimbrã e a Universidade.
Comecemos pelo chefe do executivo camarário e regente dos destinos da cidade.
Enquanto político partidário, representante de todos os eleitores e, num equitativo
equilíbrio imaginário de interesses, empenhado em tudo o que se passa no seu
município, será que Barbosa de Melo fez bem em ir inaugurar esta nova grande
superfície comercial? Antes de dar a resposta, convém dizer que esta área está
inserida num condomínio particular e já há muitos anos licenciada e em
actividade –quero dizer, portanto, que o executivo não poderia obstar a sua abertura.
Convém acrescentar que, segundo o Diário de Coimbra (DC), vai empregar 125
pessoas –não se trata de uma nova criação de emprego, no sentido de que esta
marca veio ocupar o espaço da “Rádio Popular”. Assenta também dizer que, ainda
segundo o DC, esta nova marca irlandesa vende um pouco de tudo, desde roupas a
bijutaria, a poucos euros.
E agora, depois destas ressalvas,
à pergunta formulada, se eu tivesse que responder, diria que Barbosa de Melo
não fez bem em estar presente na inauguração. Quanto muito, para não parecer
mal, delegava num chefe de gabinete, ou outro qualquer vereador. E porquê? A
meu ver, passa a mensagem de que continua a apoiar o grande capital, representado
no grande comércio. E aqui poderemos fazer outra pergunta: “mas e na Baixa, não
vai às inaugurações?”. Vai sim. Esteve há dias a inaugurar o “McDonald’s”,
junto à Rodoviária –o que não constitui um bom exemplo, porque correu por aqui
que a cadeia norte-americana fez tudo demasiado rápido. Se fosse um simples
operador não teria sido assim, mas adiante.
Continuando, não poderemos
esquecer que a abertura da “Primark” vai contribuir para o encerramento de mais
uns tantos pequenos comércios na cidade, e era aqui, a meu ver, que o
presidente da autarquia se deveria distanciar e sem se implicar directamente.
Se tivesse usado um pouco de mais argúcia política, fazendo diferente dos seus
antecessores, agradava a todos e não carrega com o ónus.
O QUE É PRECISO É INTELECTUALIZAR
Quanto a facto da Universidade de
Coimbra se estar a envolver em várias áreas formativas do comércio, como por
exemplo “merchandising” e vitrinismo, vejamos, não quero parecer uma ave de mau
agoiro e estar sempre no contra. O que entendo é que estas medidas, são
avulsas; são analgésicos para um doente que está em estado terminal. A
Universidade fica muito bem na fotografia –tal como Barbosa de Melo-, mas não
resolve as questões de fundo do comércio de rua. Porque, façamos uma pergunta:
o comércio tradicional não vende por não saber expor os seus produtos? Não
vende porque não sabe atender os seus clientes? Serão estas as questões que
minam a actividade da compra e venda costumada? Não, não são estas dificuldades.
Qualquer comerciante pode responder a este assunto sem pestanejar. Há várias
premissas que concorrem para o mesmo objecto. Posso elaborar algumas. Algumas
delas e substantivas: o comércio de rua está a desaparecer rapidamente porque
está perante uma concorrência selvagem das grandes superfícies, que, nas suas
práticas, visam apenas prejudicar o lojista; a mudança de paradigmas nos
costumes –compras online e no grande comércio e desvalorização acentuada da
coisa, enquanto símbolo memorial e de poder económico; sobreprodução mundial, que concorre para o embaratecimentogeral dos bens; a queda acentuada da
procura interna, sublinhada pelo decréscimo do rendimento das famílias e pelo
aumento do desemprego; aumento desmesurado da carga fiscal na pequena empresa.
E QUAIS SÃO AS ACESSÓRIAS?
Depois há os adjectivos, a grande
área, pela sua grandeza, presumivelmente, terá crédito bancário, o que lhe
permite aceder a produtos mais baratos, e o pequeno operador não; a
desertificação dos centros urbanos e deslocalização do citadino para a periferia;
uma acentuada descida nas vendas que conduz a margens negativas de
comercialização; o empobrecimento visível da maioria dos mercadores, com
falências a surgir em grande escala, arrastando toda a família, e provocando
uma apatia generalizada; rendas exageradas, usurárias, que são prática corrente
no sector e está a conduzir o arrendamento comercial em “rapidinhas” de três
meses, “em deixa ver o que é que isto dá?”; uma política de desvalorização,
consumada nas últimas duas décadas, que retirou dignidade ao comerciante e,
mais grave, ao não ser acautelado um necessário trespasse, condenou-se esta
profissão a terminar na geração em curso. Tudo indica que, se nada for feito
com urgência, os jovens não abraçarão a compra e venda como vida profissional.
Quem quiser ajudar a salvar o
comércio terá de olhar para estas premissas. Tudo o que se faça fora disto é
floreado, que, embora pareçam muito bem, não vêm acrescentar nada de novo.
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