LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA
Para além do texto "Sinais ameaçadores", deixo também "O paraíso é aqui" e "Rostos nossos (Des)conhecidos -O Lobo"
SINAIS AMEAÇADORES
O homem sozinho, aparentemente
perdido no meio da multidão, caminha pela rua larga. Não leva nada consigo, no
entanto, para os poucos que dão por ele e atentam no seu rosto granítico,
esculpido a cinzel, fechado, como impenetrável é a pedra dura do penhasco,
parece carregar todas as dores e sofrimentos do mundo.
O que se passará com este
viandante das calçadas, percorridas por milhentos pés que nem reparam no chão
que pisam, interroga um por outro transeunte mais atento e, que certamente
livre de preocupações, ainda tem tempo para olhar a face de quem com ele se
cruza. Em segundos, e logo que um novo pensamento não atropela o anterior, como
num jogo de imagens virtuais que vão surgindo em catadupa, uma a seguir à
outra, as teses mais variadas vão gerando interpelações.
Por sua vez imagina-se o romeiro,
em dúvida metódica, igualmente a perguntar-se da razão de, coletivamente, os
rostos por quem passa levarem consigo uma máscara de solidão. E o mais grave é
este sentimento de tristeza, como nuvem tóxica, perpassar para todos e até ele
próprio, que normalmente é bem-humorado, como se fosse apanhado numa rede, também
se sentir cada vez mais ensimesmado?
Numa época de muitas questões e
poucas soluções, mas onde quer as primeiras quer as segundas são formuladas e,
imediatamente sem respostas de contento, se esvaem no vazio dos dias como fumo
em dia de vento, mesmo em metáfora, valerá a pena cogitarmos.
O que aconteceu, na última
década, para perdermos a alegria que tanto nos caracterizava enquanto população
de afetos, simpática no trato, onde o júbilo marcava presença constante e
passarmos de um estado geral de felicidade para uma situação de apatia
generalizada? O que significará este tempo negro que nos envolve em massa de
imbricamento? Será simplesmente a crise económica, com a sua onda destruidora
de esperança, que estará por detrás da queda dos sonhos e a concorrer para uma
pandemia social de depressão e a pôr a baixo todo um ânimo necessário para nos
soerguermos sobretudo numa altura em que mais precisamos?
Comecemos por analisar a
felicidade. Este sentimento de contentamento, a par com o mito da juventude, ao
longo da história da humanidade, tem constituído o Santo Graal da eterna
procura. Sabe-se que esta sensação de bem-estar, para além de poder ser
induzida através de estupefaciente, naturalmente é efémera em curtos lapsos de
tempo. Para além disso, é muito influenciada pelo meio envolvente. Por
conseguinte, estes estados de alma podem perfeitamente ser estimulados pelas
políticas governamentais de uma nação. Em silogismo, neste presente que estamos
a conviver, se o estado geral anímico dos cidadãos é a letargia, quer dizer que
os dirigentes da última década têm governado direccionalmente para a
infelicidade dos seus eleitores. Esquecemo-nos amiúde vezes que estes
executivos tecnocráticos se transformaram em máquinas frias de insensibilidade
tecnológica. Um abcesso destruidor da própria aura de encantamento que envolve
o espírito positivo da democracia. Ao visar apenas objetivos financeiros globais,
retirando todo o serviço público de redistribuição equitativa, esquecendo as
necessidades básicas de conforto físico e espiritual, e contribuindo na delapidação
esperançada da pessoa humana, enquanto ser de sentimentos correlacionados em
mimética, estão também a destruir as cidades, vilas e aldeias no melhor das
suas vivências.
Por outro lado, verificamos
também que a felicidade “per capita”, nos últimos dois séculos, foi sempre
olhada individualmente pelo poder instalado sobre o prisma neoliberal. Isto é,
como se o Estado, no seu pendor idiossincrático, de respeito pela forma de ser,
não tivesse nada a ver, ou não se devesse imiscuir, com o que se passa dentro
de cada um dos seus súbditos. Ou seja, a felicidade foi sempre apreciada sobre o
distante prisma social, quase metafísico, e nunca pelo lado económico. Acontece
que cidadãos apáticos, indiferentes ao que se passa à sua volta, são esqueletos
de vivos-mortos que, na sua indolência de abandono, para além de se tornarem
muito mais propensos à doença e ao suicídio, não criam nem geram riqueza. Que
tempo é este?
O PARAÍSO É AQUI
“Em finais do ano passado a minha
casa foi assaltada. Ali era o meu trabalho, o coração, o pulsar do rendimento
da minha família. Foi um rude golpe que sofri. O Governo do meu país, a
Venezuela, não garantia a minha segurança e a dos meus. Apesar de ter começado
bem, com ideias para o desenvolvimento do povo, há cerca de 14 anos, Chavez,
com o passar do tempo, foi se tornando igual aos governos que o antecederam. Ou
dito de outra forma, transformou o viver de todos os venezuelanos em algo
inexplicavelmente vazio de tudo, de fé, de esperança, do simples acreditar no
homem enquanto agente da mudança para uma vida melhor.
A lei no meu país só existe para
alguns; a corrupção grassa como cogumelos em terra protegida no inverno;
ninguém respeita ninguém; a propriedade privada não é salvaguardada; qualquer
edifício, grande ou pequeno, a qualquer momento, pode ser confiscado a mando
das autoridades com a bandeira do interesse público; a vida não vale nada;
mata-se para roubar um telemóvel, um relógio, um fio de ouro.
Depois de o meu negócio ter sido roubado
nunca mais dormi tranquilo. Senti-me inseguro na minha terra. Apesar dos meus
trinta e poucos anos, tinha levado uma facada na minha alma. Via os meus sonhos
esvaírem-se como farrapos de nevoeiro em manhã de sol resplandecente. Sentia
faltar-me as forças. Era lá o meu lar e ali fui agredido. Era lá que tinha tudo,
naquelas paredes edificadas pela minha família estavam as nossas
reminiscências. Aquele prédio era o centro de centrifugação, o ninho de toda a
minha prole, da minha mãe, da minha mulher, dos meus dois filhos ainda infantes.
Uma noite, em que o despertar
teimava em me manter acordado e o sono, mais uma vez, me abandonara, dei por
mim a dirigir-me ao computador e, no motor de busca, escrever: “as melhores
praias do mundo”. E a primeira que saiu foi “Algarve”. “Algarve”? O que seria
isso de “Algarve”? Eu nunca ouvira falar em tal. Nessa noite não preguei olho a
pesquisar tudo o que dizia respeito a “Portugalo”. Através da Web, corri tudo
do Minho ao Algarve, do norte ao sul, de lés-a-lés. Como pesquisador de ouro
atrás da sua pepita, comecei a ver casas para venda. Acabei preso numa
habitação próximo de Coimbra. No dia seguinte estava a expor os meus planos à
minha mulher. Se ela estivesse de acordo, abandonaríamos a nossa terra e
partiríamos em busca da terra prometida, à procura de um mundo melhor. Esta
abraçou completamente a minha ideia. A Venezuela não era mais uma pátria profícua,
nem para nós, nem para os nossos filhos.
A seguir contactei dois bancos
portugueses e tratei de obter crédito para comprar a moradia. Infelizmente,
porque demorei algum tempo, acabei por a perder, ganhei outra, em sentido
oposto, mas também muito próximo da cidade dos estudantes. Eu e a minha família
estamos cá há quase 6 meses. Isto é muito bom! Estamos muito felizes! Você tem
noção de que o paraíso é aqui? As gentes de “Portugalo” são muito simples e
respeitadoras. Que bem que nos sentimos cá! Aqui há segurança. Adoro estar
aqui. É aqui que queremos ficar. É aqui que quero que os meus filhos cresçam e
se façam pessoas de bem, cidadãos interessados em lutar pelo que acreditam
–sabe que um dos problemas do meu berço natalício é a incapacidade do povo em
se revelar contra a tirania do Governo. Aceitam tudo de braços caídos sem
revolta. Lutem todos com coesão, ergam-se em bloco contra as decisões
arbitrárias. Com o tempo todo o governo abusa do seu mandato e, se o povo não
se levantar em peso contra o arbítrio, escraviza-o e age como ditador eleito.
Foi o aconteceu com Chavez.
Estou a tentar vender o que tenho
lá na Venezuela para depois trazer a minha mãe para junto de nós. Esta terra é
abençoada por Deus, meu amigo!”
(Relato, na primeira pessoa,
obtido de um cidadão imigrante venezuelano e agora a viver entre nós.)
ROSTOS NOSSOS (DES)CONHECIDOS
"O LOBO"
O Lobo
é um simpático, humilde e introspecto artista plástico que, com muito calor
humano de todos nós, calcorreia estes becos e ruelas da Baixa e nos faz
companhia diariamente. Há pouco tempo deu-lhe para decorar com pinturas suas
umas janelas de um prédio abandonado no início das Escadas de Quebra-Costas e
junto ao Arco de Almedina. A verdade é que, segundo se consta lá na zona,
parece que o local se transformou em “ex libris” para turista ver e recordar
através de fotografia.
Até
há pouco tempo era costume encontrar o Lobo a pintar e expor nas Ruas Ferreira
Borges e Visconde da Luz. Segundo conta, há poucos dias, cerca das 21h00, ficou
espantado e indignado com a atuação de dois agentes da PSP. “Eu estava a pintar
e tinha alguns trabalhos expostos na
parede. Vieram dois polícias e interpelaram-me dizendo que eu não podia estar
ali. Interroguei se estava a incomodar alguém –até porque se fosse mais cedo,
até poderia entender, sei lá, que fossem os comerciantes que não gostassem de
me ver ali. Um deles disse para eu sair dali depressa e antes que me pedisse a
identificação. Bolas!, senti-me humilhado, entende senhor Luís? Você
conhece-me. Sabe muito bem que sou educado e não atrapalho a vida de ninguém.
Enxotaram-me como se eu fosse um cão, ou um qualquer criminoso, entende? Ora,
você sabe, eu sou um artista modesto mas com obra feita. Tenho vários livros de
poesia publicados. Já fiz várias exposições de pintura. Sabe o que é? Acho que
estes profissionais de segurança medem todos por igual e sem levar em conta o
desempenho e o valor cultural de cada um. Como tenho este aspeto simples… só
pode ter sido por isso, senhor Luís. Não vou voltar mais a expor na rua!”
Há
cerca de um mês o Lobo expôs na galeria “Arte à parte”, na Rua Fernandes Tomás,
e vendeu tudo, como tão bem conta o Paulo Abrantes, no seu blogue “Denúncia
Coimbrã”.
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