quarta-feira, 12 de maio de 2010

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (35): UMA MULHER PRECIOSA

(IMAGEM DA WEB)







 Recuando no tempo, à década de 1960, parece-me estar a vê-la, a caminhar na rua principal de Barrô. Passo seguro, ondulante, envolta numa timidez que lhe conferia uma aura de mistério e graça inexplicável. Aquele rosto bem modelado de mulher trintona, de olhos expressivos e emoldurado, sempre, de cabelo curto bem arranjado em “permanente”. Corpo de boneca, parecia um manequim. Tinha uma sensualidade imanente. Era como se tivesse um espírito de luz, que, sobressaindo daquele pequeno corpo, lhe concedia um ar fino e de respeito sublinhado pela natureza.
Era a Preciosa, como todos a tratavam na altura. Nenhum suplemento titular fazia acompanhar o nome principal. Estranho isto acontecer numa aldeia. Nesta época todas as pessoas tinham um apêndice em função do estatuto social que ocupavam no lugarejo. Se era solteira, fosse nova ou idosa, seria sempre “menina”. Se fosse casada, e de importância redobrada no lugar, seria sempre a “senhora”. Que funcionava como título de cortesia e respeito, logo seguido do nome principal. Se não tinha grande importância social seria sempre acompanhada de uma alcunha. Era assim que se conhecia a “cascoa”, a “velhaca”, a “tasqueira”, etc.
 Acontece que esta mulher, que aqui vou contar a sua história, era somente tratada pelo nome de Preciosa. Que segredo envolveria esta beleza?
 Foi graças a esta mulher que eu, juntamente com outras crianças pobres do concelho da Mealhada, durante vários anos, tive possibilidades de ter 15 dias de praia e de, pela primeira vez, ver o mar. Hoje em dia, em que, pela facilidade de acesso e meios de locomoção, as distâncias encurtaram, parece quase impossível uma criança de cinco anos nunca ter ido ver o oceano. Mas, nessa altura, em que a pobreza falava mais alto que qualquer vontade, poucos infantes se poderiam dar a esse luxo. Foi tão importante, para mim, essa viagem até à Figueira da Foz, que, passados quase meio século, ainda guardo na memória cada bocadinho do caminho. Lembro de o percurso ter sido feito em transporte numa camioneta de caixa-aberta. Cerca de uma vintena de miúdos, numa grande algazarra, ao som de “o mar enrola na areia”, trauteado por todos, chegámos então à praia. Recordo, então, ter chegado àquela casa antiga em Buarcos, perto do Largo Beira-mar.
Percorrendo o tempo ao contrário, revejo-me, à hora do lanche, sentado na areia fina, com o mar azul em fundo, numa grande roda, conjuntamente com duas a três dezenas de crianças. No centro, acompanhadas de duas enormes cafeteiras de esmalte, cheias de café com leite a fumegar e prontas a despejar nas canecas já na posse de cada um de nós, estão três ou quatro mulheres –uma delas é a Preciosa. Num cesto de verga, ao lado, estão cerca de trinta sandes de queijo de barra e cortadas às fatias de grandes pães de centeio. O leite é em pó e de sabor indescritivelmente bom e adocicado.
 Mas quem era a Preciosa? E qual a razão de os habitantes da povoação a chamarem simplesmente pelo nome próprio, num misto de ostracismo e respeito?
 A Preciosa Pereira Morais nasceu em 1924, em Barrô, entre as cercanias de barro cinzento que viria a dar o nome ao pequeno burgo. Era herdeira de gente muito humilde, e muito cedo, pela necessidade, começou a servir nas casas de lavradores mais abastados. Fazia um pouco de tudo. Ora sachava milho, ora arrancava batatas, ou fazia limpeza e cozinhava para os patrões. Como era muito bonita, depressa começou a ser cortejada pelos moços contratados pelos grandes agricultores. Apaixonou-se perdidamente por um que lhe viria a fazer dois filhos. Mas quisera o destino que este rapaz que lhe coubera em sorte não correspondesse e preenchesse os anseios desta rapariga sonhadora. E num tempo em que todas as mulheres que parissem tinham de casar, esta catraia preferiu manter-se solteira e sozinha com dois rebentos a seu cargo. Um escândalo para a época. Mas ela era forte e nunca se importou com o “diz-que-disse” e o “cortar na casaca”.
 Com o tempo, devido ao esforço dobrado da terra, impróprio para o corpo feminino, começou a sofrer da coluna e a ter muitas dores nos ossos. Um dia, já quase com quarenta anos, em que se sentiu pior, foi ao hospital da Mealhada a uma consulta. Foi atendida pelo doutor Artur Navega, então, por esta altura de 1960, Subdelegado de Saúde do distrito de Aveiro. Este médico gozava de uma grande reputação no concelho. Era muito generoso para com os pobres.
 Quando Preciosa o viu pela primeira vez no hospital foi amor à primeira vista. Mas havia um grande problema: o clínico era casado. Mas amor não escolhe estados, é um sentimento indomável que a racionalidade não explica. Estava dado o primeiro passo para a grande paixão da vida desta habitante da aldeia entre a Mealhada e o Luso. Ali começou uma relação que só a terra há-de comer e o tempo fará esquecer.
 Como a Preciosa precisava de praia para curar as suas dores mas não tinha possibilidades financeiras, naquele velho hospital, e nas sucessivas consultas, nasceu a ideia de, a expensas do seguidor de Esculápio, ela ir para banhos juntamente com as crianças pobres do concelho.
 A partir dali, na aldeia e nas terras em seu redor, Preciosa passou a ser a ponte entre a pobreza e o poder decisório, marcado pelo velho médico apelidado de “pai dos pobres”. Continuamente, era o adolescente que precisava de ir trabalhar para a hotelaria, mas como não tinha o “Cartão de Sanidade”, essencial para exercer na labuta. Era a criança que precisava de cuidados médicos mas os progenitores não tinham dinheiro. A todas essas aflições esta mulher dava conta ao clínico, que, para além de satisfazer os seus anseios, as consultava gratuitamente e ainda oferecia os medicamentos.
 A casa de Preciosa, em Barrô, naquela época, era o porto de abrigo dos necessitados. Um dia, uma mulher do lugar foi bater-lhe à porta muito preocupada. A filha, pouco mais que adolescente, andava a engordar muito. Para além disso, tinha dado em vomitar. Será que a Preciosa não poderia falar com o senhor doutor, lá na Mealhada, a ver se este lhe receitaria alguma coisa para o enjoo? Claro que a mulher de boa-vontade, mesmo sem ser médica, diagnosticou imediatamente a doença, mas não disse nada para não criar preocupações. E lá foram as três mulheres para o hospital. Quando a velha mãe foi posta perante a evidência de uma gravidez, ia-lhe dando o “fanico”, mas emendou logo: “Ó senhor Doutor, eu juro que a minha filha nunca teve nada com ninguém! Isto só pode ser desígnio divino. Acredite senhor Doutor!”. Respondeu o velho e experiente médico, “não há problema, senhora, eu acredito, é um milagre da vida. Case a sua filha com urgência e tudo se resolve!”.
 O Doutor Artur Navega nunca dizia que não a ninguém. Era uma pessoa boa e com uma sensibilidade à flor da pele. O segundo amor do clínico ia com ele para todo o lado, ao Porto, a Lisboa. Como ele gostava muito de pescar, levava-a sempre com ele para a Figueira. Gostava de a ensinar a lançar o fio no mar.
 Preciosa sempre o tratou por “senhor Doutor”. Ele pedira-lhe, numa bela altura, que jamais o tratasse por tu.
 Um dia, estava na aldeia, em Barrô, e teve uma visita de surpresa. Era alguém mandado pela Dona Aurora, esposa do velho médico, com uma mensagem: o senhor doutor Artur Navega estava a morrer no hospital. Quereria ela ir despedir-se dele nos últimos momentos de vida?
 Preciosa não foi. Mas naquele gesto sublime de carácter, de uma esposa atraiçoada, entendeu a imensa generosidade daquele acto impossível de descrever. Foi uma grande lição que recebeu com sofrimento. Nunca mais se esqueceu. Mas a consciência não a acusa de nada. Coração apaixonado não escolhe o seu amor.

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