sexta-feira, 24 de agosto de 2012

O RETORNO DO ABROLHOS



 Estou certo de que a maioria de vocês, leitores, não se deve lembrar deste personagem fascinante de que vos vou falar novamente: Almerindo Abrolhos. Abrolhos, simplesmente, para os mais íntimos.
Há cinco anos este fantástico exemplar de homem passeava-se pelas ruas da Baixa de Coimbra e tinha a sede do escritório montada na esplanada do café Santa Cruz. Na altura, quem o via, de sapatos abicados de verniz, comprados nas sapatarias Romeu, calça branca, bem vincada, camiseta Lacoste e com um pullover sobre as costas e com as mangas atadas sobre o peito, não imaginava os montes e vales de sabedoria deste mestre popular, doutorando das artes de bem falar e bem representar. A sua imagem era um ícone vivo. O bigodinho à Errol Flynn, a sombrear uns lábios bem desenhados e sobrepostos por um nariz aquilino, introspecto e provocador, era parte de um rosto bem desenhado por um grande artista do pincel e das tintas misturadas em mil cores matizadas de sedução. Dois olhos vivos, pequeninos, eram os faróis de uma testa alta e inteligente e coberta com um cabelo negro, naturalmente de ficção, todo projectado para a nuca com carradas de brilhantina. Num raio de cinco metros em redor a fragrância a “La Parairie”, adquirida na perfumaria Pétala, e que não está ao meu alcance, era intensa e mais parecia uma rede de sedução estendida intencionalmente e onde todas mulheres boas deste mundo –pitas e cotas, que o Abrolhos, lá nisso, nunca discriminou ninguém-, atraídas pelo melaço, iam cair.
O tempo foi passando e, embora a mesa no átrio do café lá permanecesse em memória e sempre que eu a ocupava me recordasse o Almerindo, deixei de o ver por aqui. O nosso cérebro é muito engraçado, se alguém desaparecer do nosso deslumbramento visual durante muito tempo a mente fecha progressivamente a gaveta da memória.
 Nunca procurei saber o que estaria por detrás da nuvem que obliterou o Abrolhos. Durante uns meses coloquei a hipótese de ter sido levado por uma viúva rica, cheia de pastel, assim do género da Duquesa de Alba, que se casou em Espanha aos 85 anos com um plebeu muito mais novo, o Afonso Diez –afinal não é este o sonho de qualquer homem? Depois supus que teria ido dar aulas para uma universidade do Reino Unido, assim do tipo de Oxford, ou, sei lá, se calhar, assessorar a rainha –e fazer-se à corte, obviamente- para as grandes questões do mundo.
Ontem, à hora do jantar, sem que nada o fizesse prever, como visão de óptica, dou com um sujeito que me parecia conhecer levemente de qualquer lado. Palavra de honra, estive à vontade dez minutos à procura de respostas cá no meu computador pessoal, como quem diz, no meu cérebro, lógico. Até que de repente bati duas vezes com a mão aberta na minha fronte: não pode ser! Aquele gajo é o Almerindo Abrolhos, carago! Não, não pode ser!, disse cá para os meus botões, este sujeito só nos tiques se parece com o outro. Tem um ar abandalhado no vestir… até parece um mendigo, porra! E fui meter conversa com o indivíduo.
-Boa noite! –Disse eu, assim com um certo ar acanhado e formal.
-b’noite… qu’é que se passa, meu? Há “zar”? –Pergunta o fulano.
-(Não há dúvida, é o Abrolhos, aquela voz era inconfundível)… Desculpe, o senhor não é o Almerindo Abrolhos?
-Como?... Como? Almerindo… quê? Que confiança é essa? Andámos os dois na costura? Foi? Doutor Almerindo Abrolhos, se faz favor! Homessa!...
-(Confesso que fiquei um bocado atrapalhado, é que o gajo falou alto, à bruta, e todo o pessoal da esplanada, largando as conversas de ocasião, centralizaram em nós os seus olhares sempre sequiosos de algo que abanasse as suas vidas rotineiras, cinzentas e pasmagóricas. Mas também não me dei por achado. Isso é que era bom! Puxei da minha argumentação para situações de estado de necessidade, de crise, e, gritando mais alto ainda, aí vai.)… Ó Abrolhos, já não te lembras de mim, pá? O teu amigo, o Luís Fernandes… meu? –E abri os braços a imitar o Cristo Rei, da Capital.
-Quê? És o Luís, aquele badameco que até escrevia num blogue? És tu, meu? Fogo!, estás mesmo acabadote de todo. Estás pior que o rosto do cavaco… como quem diz… estás todo escavacado, meu! Dá cá um abraço!
E lá nos fundimos num aperto de consideração e amizade, agora restaurada, creio, em longas conversas de fim de verão que se irão seguir. Vamos aguardar.


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