Estou certo de que a maioria de
vocês, leitores, não se deve lembrar deste personagem fascinante de que vos vou
falar novamente: Almerindo Abrolhos. Abrolhos, simplesmente, para os mais
íntimos.
Há cinco anos este fantástico
exemplar de homem passeava-se pelas ruas da Baixa de Coimbra e tinha a sede do
escritório montada na esplanada do café Santa Cruz. Na altura, quem o via, de
sapatos abicados de verniz, comprados nas sapatarias Romeu, calça branca, bem
vincada, camiseta Lacoste e com um pullover sobre as costas e com as mangas
atadas sobre o peito, não imaginava os montes e vales de sabedoria deste mestre
popular, doutorando das artes de bem falar e bem representar. A sua imagem era
um ícone vivo. O bigodinho à Errol Flynn, a sombrear uns lábios bem desenhados
e sobrepostos por um nariz aquilino, introspecto e provocador, era parte de um
rosto bem desenhado por um grande artista do pincel e das tintas misturadas em
mil cores matizadas de sedução. Dois olhos vivos, pequeninos, eram os faróis de
uma testa alta e inteligente e coberta com um cabelo negro, naturalmente de
ficção, todo projectado para a nuca com carradas de brilhantina. Num raio de
cinco metros em redor a fragrância a “La Parairie”, adquirida na perfumaria
Pétala, e que não está ao meu alcance, era intensa e mais parecia uma rede de
sedução estendida intencionalmente e onde todas mulheres boas deste mundo –pitas
e cotas, que o Abrolhos, lá nisso, nunca discriminou ninguém-, atraídas pelo
melaço, iam cair.
O tempo foi passando e, embora a
mesa no átrio do café lá permanecesse em memória e sempre que eu a ocupava me
recordasse o Almerindo, deixei de o ver por aqui. O nosso cérebro é muito
engraçado, se alguém desaparecer do nosso deslumbramento visual durante muito
tempo a mente fecha progressivamente a gaveta da memória.
Nunca procurei saber o que estaria por detrás
da nuvem que obliterou o Abrolhos. Durante uns meses coloquei a hipótese de ter
sido levado por uma viúva rica, cheia de pastel, assim do género da Duquesa de
Alba, que se casou em Espanha aos 85 anos com um plebeu muito mais novo, o
Afonso Diez –afinal não é este o sonho de qualquer homem? Depois supus que teria
ido dar aulas para uma universidade do Reino Unido, assim do tipo de Oxford, ou,
sei lá, se calhar, assessorar a rainha –e fazer-se à corte, obviamente- para as
grandes questões do mundo.
Ontem, à hora do jantar, sem que
nada o fizesse prever, como visão de óptica, dou com um sujeito que me parecia
conhecer levemente de qualquer lado. Palavra de honra, estive à vontade dez
minutos à procura de respostas cá no meu computador pessoal, como quem diz, no
meu cérebro, lógico. Até que de repente bati duas vezes com a mão aberta na
minha fronte: não pode ser! Aquele gajo é o Almerindo Abrolhos, carago! Não,
não pode ser!, disse cá para os meus botões, este sujeito só nos tiques se
parece com o outro. Tem um ar abandalhado no vestir… até parece um mendigo,
porra! E fui meter conversa com o indivíduo.
-Boa noite! –Disse eu, assim com
um certo ar acanhado e formal.
-b’noite… qu’é que se passa, meu?
Há “zar”? –Pergunta o fulano.
-(Não há dúvida, é o Abrolhos,
aquela voz era inconfundível)… Desculpe, o senhor não é o Almerindo Abrolhos?
-Como?... Como? Almerindo… quê? Que
confiança é essa? Andámos os dois na costura? Foi? Doutor Almerindo Abrolhos,
se faz favor! Homessa!...
-(Confesso que fiquei um bocado
atrapalhado, é que o gajo falou alto, à bruta, e todo o pessoal da esplanada,
largando as conversas de ocasião, centralizaram em nós os seus olhares sempre
sequiosos de algo que abanasse as suas vidas rotineiras, cinzentas e
pasmagóricas. Mas também não me dei por achado. Isso é que era bom! Puxei da
minha argumentação para situações de estado de necessidade, de crise, e,
gritando mais alto ainda, aí vai.)… Ó Abrolhos, já não te lembras de mim, pá? O
teu amigo, o Luís Fernandes… meu? –E abri os braços a imitar o Cristo Rei, da
Capital.
-Quê? És o Luís, aquele badameco
que até escrevia num blogue? És tu, meu? Fogo!, estás mesmo acabadote de todo.
Estás pior que o rosto do cavaco… como quem diz… estás todo escavacado, meu! Dá
cá um abraço!
E lá nos fundimos num aperto de
consideração e amizade, agora restaurada, creio, em longas conversas de fim de
verão que se irão seguir. Vamos aguardar.
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