(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)
Ti Fernando mora e nasceu em 1923, numa aldeia próxima de Miranda do Corvo, no concelho de Coimbra. As casas acachapavam-se ao longo de uma rua que, no Inverno, se enchia de lama, por força dos rodados dos carros de bois. Das suas toscas chaminés saía um fiozinho de fumo em direcção ao céu, como sentinelas alertas, sempre omnipresentes nesta terra perdida nos confins do nunca, rodeada de pinheiros e sobreiros. Nalgum destes casebres humildes, provavelmente, estaria a ser cozida a broa, pela "ti" Maria. Depois de batida, pela força de braços e levedada, de um dia para o outro, seria então encaminhada para o forno a lenha, já aquecido, à força de toros de madeira, com a temperatura ideal reconhecida na abóbada pelos tijolos-burros, que sendo avermelhados, e que o crepitar do fogo tornara de uma alvura esbranquiçada. Durante uma ou mais semanas, conjuntamente com umas cebolas cruas, com sal, e aquela sopa de couves e feijão, com um cheirinho de toucinho do porco, da última matança, que restava no fundo da salgadeira, seria a trave-mestra das muitas refeições possíveis que se seguiriam naquela casa empobrecida. No largo, onde anualmente se comemorava o São Sebastião, erguia-se a capela, com o seu ar magestático e erecto, como a desafiar a lei da gravidade, com a sua torre sineira e que, sobretudo, por alturas da comemoração anual do mártir, os miúdos, numa furibunda concertação, martirizavam o pobre sino. “DLIM, DLOM…DLIM, DLOM” e que se não fosse o ralhete do senhor cura, nem a homilia em honra do santo martirizado, deixariam ouvir.
A meio da rua era a taberna e, simultaneamente, mercearia, onde se bebia o vinho das cepas, colhido das encostas barrentas, sobranceiras à aldeia, sobretudo ao domingo, a acompanhar uma boa suecada. Era ali que se comprava a quarta de arroz de tempos a tempos. Naturalmente que a batata, saída de colheita própria, era a rainha de todas as paupérrimas casas daquela povoação rústica, quase no sopé da serra da Lousã. Numa quelha mais afastada o lugarejo tinha uma fonte de chafurdo. As mulheres mergulhavam os cântaros de barro vermelho na fresca água empoçada. Ao lado, por obra e graça do senhor Malaquias, o homem mais rico da terra e que dava trabalho braçal a quase toda a aldeia, erguia-se o lavadouro comunitário, onde, além de se purificarem as roupas empestadas de terra, também se lavava a "roupa-suja", como quem diz, se fazia a depuração dos "contos-ditos-e-mexericos".
"Ti" Fernando lembra-se que os seus pais, agricultores, eram muito pobres e, como a maioria, viviam do sustento retirado do amanho da terra. Enquanto andou na escola primária, em Miranda, que distava uns bons cinco ou seis quilómetros da aldeola, e que errantemente este caminho era percorrido duas vezes ao dia, quer fizesse sol ou chuva, o puto Nandito, como era carinhosamente tratado pela mãe, cedo começou a desejar “dar o salto” para a cidade. Sobretudo no Inverno, com frio de rachar, com a água a entrar e a sair das suas chancas de rasto de madeira. Quando chegava a casa, antes de fazer os deveres escolares à luz do candeeiro a petróleo, tinha, diariamente, de apanhar dois molhos de erva. Brincar…nem pensar! Nem havia tempo, nem brinquedos. Os seus eram feitos, por si próprio, da carrasca do pinheiro: os barquitos, copiados do livro da 2ª classe e os carros de bois.
Ainda que o passar do tempo, na aldeia, parecesse lento, como se os poucos relógios existentes estivessem tocados por uma modorra incomodativa, a verdade é que, finalmente, o dia do exame da 4ª classe chegou para o Nandito. E, para seu feliz contentamento, chegaram, também, pela primeira vez umas calças de vinco terilene, uma camisa branca e uns sapatos de atacadores, coisa nunca vista aos olhos do rapaz. Estava tão feliz que no dia do exame, depois de o ter concluído com êxito, foi sentar-se, durante toda a tarde, no banco do largo da capela. De perna traçada, era vê-lo, com ar circunstancial, a mostrar a quem passava, os seus belos sapatos novos, em vez das suas conhecidas e odiadas alpercatas onde a chuva entrava e saía em completa liberdade de circulação.
Claro que no dia seguinte voltou a ser o Nando das das chancas e dos suores transpirados a "chulé". Depressa se viu companheiro do João Malaqueco a cortarem árvores, a apanharem azeitona, a vindimarem, a malharem, na eira, o milho, o trigo, a aveia, e tudo o que calhasse, com a sua força braçal, arremetendo os malhos contra as espigas, como se tratasse de uma luta de vida ou de morte. Na aldeia havia uma única telefonia, na taberna do senhor “Insquim” Marmota. Por ela, Fernando foi acompanhando a evolução política do país. Foi sabendo dos combates entre os aliados, na 2ª Guerra Mundial e o não envolvimento de Portugal neste grande conflito à escala global. "Ti" Fernando ainda hoje se lembra da queda de Berlim, em 1945 e como foi noticiado o suicídio de Hitler e da sua amante Eva Braun. Por esta altura, andava Fernando, conjuntamente com o Malaqueco, companheiro de muitos anos, a cortarem sobreiros que eram utilizados nas camionetas (na altura caminhetas) de caixa-aberta e nos autocarros, como combustível, o gasogénio. Como havia escassez de gasóleo, devido à guerra, estes carros de grande porte utilizavam a combustão de madeiras duras, como era o caso do sobreiro. "Ti" Fernando recorda que chegou a estar um dia inteiro, mais o Malaqueco, a cortar um sobreiro com uma serra comprida de lenhador.
Até que por volta de 1948, aquando da criação do Estado de Israel, Fernando, então com 25 anos, farto de ter tantas fagáceas abraçadas como as mocetoilas das redondezas, estatelou-se ao comprido, perdido de amores por aquela que ainda hoje é a sua companheira. Ao ouvir a notícia na telefonia, sobre a emancipação dos judeus, Fernando disse para si também que estava na altura de criar o seu próprio estado, a sua autodeterminação, a criação do seu espaço autonómico. E a cortar sobreiros, a ganhar vinte e cinco tostões ao dia, nunca mais lá chegava, pensava.
Como tinha um primo a trabalhar no velho Hospital da Universidade localizado no actual Largo Dom Diniz, Fernando, que não era de modas, pôs-se ao caminho, de Miranda até Coimbra, a penates. Falou com o primo Anacleto na necessidade urgente de arranjar um trabalho que lhe permitisse ganhar mais e assim poder casar. Nem de propósito, o Anacleto tinha conhecimento duma vaga na cozinha do hospital. Então aconselhou o primo, numa data próxima, a trazer uma lembrança e, juntos, iriam falar com o director do Hospital. Fernando assim fez. Matou e depenou uma galinha, um litro de azeite, uns tantos quilos de batatas, um garrafão de vinho e, com estes espécimes comestíveis, partiu, mais uma vez a pé, em direcção a Coimbra. Já no Hospital, juntamente com o Anacleto, foram então falar com o senhor director. Este, que se licenciara a trabalhar como barbeiro, era um homem esperto. Há custa de tantas escanhoadelas na cara dos doutores da cidade, enquanto estudante de Direito, fora cimentando por dentro uma ambição desmedida e dizia para si próprio: ”um dia vocês hão-de vir fazer-me a barba a mim” -como quem diz, hão-de vir comer à minha mão.
Chegara então a director do Hospital da Universidade, na época, um cargo tão importante, na urbe, como ser Reitor do Pátio das Escolas, ou presidente da autarquia conimbricense.
Chegado então a Coimbra, o Fernando, carregado que nem um burro, juntamente com o primo Anacleto, foi ao gabinete do director. Antes de começarem a dizer o que quer que fosse já o dirigente hospitalar estava a agarrar no cesto das lembranças. Quando o Anacleto lhe fez o pedido o garboso funcionário público atirou: “se você fosse mulher…se você fosse mulher, entrava já amanhã! Mas continue a vir cá, e assim que houver possibilidades pode contar com a minha inteira disponibilidade”. Durante um ano o Fernando, quase com reumático no braço direito, pelas longas caminhadas a pé até Coimbra e pesadas lembranças gastronómicas, sem resultados à vista –a resposta era sempre a mesma: “se você fosse mulher…”- fez uma promessa a si mesmo: prendas a este oportunista nunca mais.
Pega então num caneta e papel e na sua prosa simples escreveu a Salazar a contar-lhe a sua amargurada vida, que queria casar e ter muitos filhos. Para sua surpresa, duas semanas depois tinha a resposta do Presidente do Conselho e rezava assim: “Ex.mº Senhor Fernando, infelizmente, de momento, não tenho falta de ninguém no meu gabinete. No entanto, se V. Exª souber de alguma vaga num serviço público poderá ter a certeza de que esse provimento ser-lhe-á concedido”.
Como sabia da vaga na cozinha do hospital, com essa carta na mão, agora sem nenhum cesto acessório, foi falar com o director. Este, mirando Fernando de alto a baixo, como se estivesse à procura de algum coelho esfolado saído do seu chapéu, retorquiu que lamentava, mas a vaga na cozinha era só para…cozinheiros encartados. Ora Fernando não era cozinheiro, era lenhador, referiu o director ufano.
Se o “diligente” funcionário público pensava ter feito desistir o lenhador enganou-se. Chegado a Miranda, tratou de escrever uma nova carta ao ditador de Santa Comba, a dar-lhe conhecimento de que, através de um amigo, tivera conhecimento de que haveria nos Hospitais da Universidade uma vaga na cozinha. Na semana seguinte estava a trabalhar no centro nevrálgico gastronómico do velho Hospital.
(História verídica, contada pelo autor, Fernando)
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