Neste dia de Ano Novo, ao entrar no Luso, a primeira coisa que me chamou a atenção foi o lindo presépio que se apresentava no alto da Venda-nova. E, por estranho que pareça, sendo belo, não tanto pela sua beleza, mas, em introspecção, a questionar-me como é que tal obra de arte, numa zona quase sem circulação pedonal, ali se mantinha incólume. E não foi por acaso esta auto-observação, é que em Coimbra, uma alegoria idêntica, a vinte metros de uma esquadra de polícia, depois de várias vezes vandalizado, incluindo o furto do menino, claudicando perante o crime, acabou a dormir dentro dos Paços do Concelho –em dedução e por analogia, poderemos ser levados a pensar que a grande cidade, contrariamente à pequena vila, se transformou em atracção polivalente de vandalismo.
Apesar de ser um dia de pouco movimento –e em que, como é hábito, praticamente todos os negócios estão encerrados-, o centro, junto à Fonte de São João, estava razoavelmente animado. O facto da pastelaria “Flor de Luso” e o restaurante vizinho estarem abertos concorriam para a animação.
Dei uma volta, e depois de, mais uma vez, parar novamente junto ao presépio, virei em direcção à estação de caminho-de-ferro. Sempre que posso, paro aqui.
Sinto-me profundamente atraído por esta zona de mistério. Como se rebobinasse um filme e viajasse no tempo, vejo ao lado a “torre dos refrigerantes” e imensos trabalhadores a entrarem para a fábrica da laranjada Buçaco. Mais abaixo, na serração, como fogueiro, a alimentar a grande caldeira, está o meu tio Albertino. Entro na estação ferroviária de Luso. Completamente cheio, a transpirar pelas portas, acabou de estacar um grande comboio vindo da Beira Alta. Entraram e saíram alguns passageiros. No meio de uma fumarada branca, um grito estridente fez-se ao vento, e que quase nos estoirava os tímpanos: “Águuuaaa… deeee… Luuuusssso!”. Era a senhora Rosalina, de cabelo atado no toutiço e avental branco, que com várias “pichorras”, umas encantadoras bilhas de barro vermelho, na mão, as oferecia aos viajantes a troco de vinte e cinco tostões. “Águuuuaa… deee… Luuusssso!”
Hoje, primeiro dia do Ano Novo de 2012, a estação está deserta. Nenhuma alma viva naquele cenário edílico se avista ao longe ou junto ao edifício –recentemente remodelado sem grande cuidado pelo peso ancestral do tempo. Lá se avistam as placas indicativas de localidade em plástico. Olho os carris de ferro sobre as travessas de madeira e, se elas falassem, imagino quantas crónicas de viagens contariam. Continuo a avançar em direcção à ponte de ferro, construída em 1958, pela empresa alemã Krupp, e que substituiu a de 1882 saída da casa Eiffel. Em pleno tabuleiro, sou invadido pelo grasnar dos patos e pelo balir dos cordeiros, que, no fundo do vale, são o único som que quebra as trovas do silêncio. Quase sem querer, faço a comparação entre o ferro enferrujado sob os meus pés e a “moderna” aldeia de Várzeas que os meus olhos alcançam em abraços de enleio. Nasci ali. Era então uma aldeola de casebres pobres e com ruas de terra-batida. Verifico que hoje, com a sua recente ponte sobre a Ribeira e com as suas imensas casas novas, é uma aldeia moderna muito diferente da que conheci há mais de meio século. Perante os meus olhos está um país a dois tempos, dividido entre história e desenvolvimento, mas atacado pela mesma síndrome: desertificação. Curiosamente, esta falta de pessoas, como vírus de pandemia, matará os dois. Sem gente o desenvolvimento regredirá e a história abortará a memória. Sem humanos o desenvolvimento renega a história –sendo esta a mãe de todos os tempos.
Com o coração apertado deixo para trás estes pensamentos que me fazem chorar e faço-me à estrada, em direcção à Lameira de São Pedro. Passo ao lado da capela, da Quinta do Figueiredo, construída em 1901, e que está completamente em ruína. Mentalmente interrogo-me porque é que este nosso Estado, mega-construtor de estradas e barragens, não cuida da nossa memória, emprestando dinheiro aos particulares, como é este caso específico. Paro em frente à antiga taberna da Catraia. Espreito pelas desconjuntadas janelas e vejo, lá dentro, um amontoado de lenha em decomposição. Sigo viagem pela estrada e estaciono em frente à antiga Escola Primária da Lameira. “A minha escola”, segundo parece, por falta de crianças, encerrou. Certamente Francisco Grandella -o grande comerciante lisboeta, dos grandes armazéns com o mesmo nome, que graças a um amor clandestino, de Barrô, por alturas de 1920, viria a construir este edifício de ensino-, deve estar a dar voltas e voltas na tumba.
Transponho a cerca. Envolvo as suas colunas neo-clássicas num olhar de ternura, subo a rampa e vou em direcção à cantina mandada construir por Alexandre de Almeida, em 1961, e que uma placa atesta, pregada na parede, meia apagada e sem brio nem glória. Por momentos senti o amargo sabor do óleo de fígado de bacalhau a ser ingerido por mim em 1963 e anos subsequentes. Está tudo abandonado. Junto à porta, onde há pouco funcionou uma creche, creio, um boneco multicolor, em desmazelo de abandono, parece interrogar-se, num sofrimento profundo, que mal teria feito às crianças para ser largado pelos adultos?! O que teria acontecido para estes terem deixado de sonhar?
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