Para além da coluna "Um sistema enrolado sobre si mesmo", deixo também o meu texto "Os olhos do pensador".
UM SISTEMA ENROLADO SOBRE SI MESMO
O “Manel” é um caminheiro destes
becos e ruelas. A sua idade física deverá andar à volta dos 65 anos. Nunca lhe
perguntei, mas, pela sua disponibilidade de tempo, deve ser aposentado. Como é
um tipo que foge ao comum dos reformados, no sentido de que é esclarecido, calculo
que tivesse sido funcionário público, sei lá, talvez contínuo, por aqui, numa
qualquer escola. Fala com desenvoltura. Nota-se alguma acidez e desdém,
materializados numa falta de fé no presente e sem esperança no futuro.
Como uma projeção de mim nas
lides jornalísticas amadoras, volta e meia vem ter comigo e soletra: “ó Luís,
já viste o que está ali, na rua tal? Já passaste no beco xis? Viste o aborto
que lá está?”. E eu lá lhe agradeço a nota, embrulhada numa promessa de passar
lá assim que puder e escrever sobre o assunto.
Ontem, mais uma vez, veio
falar-me: “ó Luís, não passas lá para cima, para a Alta, para os lados da Rua
da Matemática? Sabes lá o que uma certa cambada deu em fazer lá? Então não é
que começaram a pintar os candeeiros daquela artéria de vermelho? Já coloriram
dois e, pelos vistos, vai tudo a eito. Filhos de uma mãe, que deve estar mais
que arrependida em ter gemido tanto em sofrimento para os pôr cá no mundo! Uma
pessoa passa lá à noite e não vê nada. O cenário em volta é de um repugnante
vandalismo. Aquilo é para fumarem umas passas à vontade e para ninguém ver.
Estamos nisto, Luís! Havia de ser numa outra época em que vivi, no tempo do “Botas”,
que eles iam ver o que lhes custava andarem a pintar o cenário de cores
matizadas e que só a eles convém.”
Às vezes falta-me a paciência
para aturar gente como o “Manel”. Estas pessoas, ao virem ancorar a sua
frustração no meu porto de abrigo, neste procedimento, há aqui um certo abuso
de confiança. No fundo eles não concordam com o sistema em que estamos
inseridos, reclamam por entre dentes, mas, para além de não moverem uma palha,
nunca dão a cara para mudar seja lá o que for. E então, como sabem que escrevo,
ancoram-se. E se umas vezes até são assuntos de nota, outras vezes é de “lana
caprina”. Tendo alguém que sirva de muro de lamentações é mais fácil porque
ficam em paz com a sua consciência e, ao mesmo tempo, estão sempre protegidos
pelo anonimato. São assim uma espécie de grupo de forcados que está atrás do
primeiro que arrisca enfrentar o touro. Se a coisa correr bem, mesmo agarrando
o rabo do animal, todo o grupo vai receber por inteiro a ovação geral do
público assistente. Se correr mal quem apanha a cornada é o que enfrenta a besta.
Desta vez não resisti e
interroguei: diz-me lá, por que não vais à Câmara Municipal e apresentas lá uma
reclamação? Respondeu-me: “eu já lá fui, mas disseram que não era nada com
eles. Que fizesse uma queixa na polícia. Então achas que eu vou para a polícia?
Estes gajos são doidos!?!”
É evidente que não sei se teria
sido assim. Mas uma coisa dá para ver: o sistema não está preparado para
receber a colaboração do cidadão comum. O engraçado, sem graça, é que os
detentores do poder estão sempre a apregoar a participação pública de cidadania
ativa, mas, através de barreiras psicológicas, fazem tudo para obstaculizar. A
propaganda emitida mais não é do que nuvens de fumo em dia de forte vento. Para
participar, por exemplo, uma qualquer ocorrência, uma injustiça, implica ao
civitas uma grande segurança na sua ação. Tem de ser tomado por algum
conhecimento básico do seu direito para conseguir partir a barreira de vidro
invisível e levar o seu intento até ao fim. Como a maioria não é assim,
entende-se porque temos um tão elevado índice de apatia pelo cuidar da coisa
pública e, por outro lado, um aumento exponencial de queixas anónimas.
Qualquer autarquia deveria ter um
gabinete vocacionado e direcionado ao munícipe colaborante –claro que se um
funcionário da edilidade local me estiver a ler, mentalmente, pensará: “a
Câmara Municipal de Coimbra tem um”. Acontece que não falo de um gabinete igual
aos outros. Este pequeno balcão deveria estar fora do conjunto. Deveria, por
exemplo, estar à entrada, no átrio, com um funcionário preparado para lidar com
gente simples. Não é que não saiba que o outro pessoal da casa não esteja, o
que digo é que terá de ser de outro modo, mais prático e menos burocrático. O
problema é que basta fazer a experiência no atendimento ao munícipe para
verificar a impessoalidade do espaço –que é enorme e até assusta. Depois o trato
dado por um funcionário que tem de saber milhentas coisas e apanha de tudo e
leva pancada de todos –e este facto dá-lhe a necessidade de se escudar, criando
máscaras de defesa materializadas numa certa distância e frivolidade. Para a
pessoa comum o simples ato de retirar uma senha e estar largos minutos à espera
já é um obstáculo quase intransponível. Quem quer colaborar com as autoridades,
defendendo valores da coisa pública, quer ser ouvido rapidamente e com atenção
porque acha que está a prestar um serviço, logo não pode ser tratado de igual
modo a um qualquer indivíduo que vai cuidar de um projeto para uma casa. Aquele
cidadão que dá a cara e participa ativamente na vida da cidade não pode, nem
deve, ser olhado da mesma forma. Ele é diferente. É um indivíduo preocupado com
o que se passa à sua volta e, sendo assim, é preciso agarrá-lo com ambas as
mãos. Mas, é óbvio, não é assim. Em contrário, dá a parecer que o próprio
sistema, em processo desmotivador, se escuda nestes emaranhados protocolares
para evitar a denúncia. Até se entende por que é assim, mas não devia. Talvez
valha a pena pensar nisto.
(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)
OS OLHOS DO PENSADOR
Na rua da cidade o homem caminha
lentamente por entre a multidão. Como proa de navio invisível a rasgar as
ondas, ele vai rompendo por entre os transeuntes que, embrenhados nos tormentos
das suas vidas, cada um olhando para si mesmo, parecem não dar por outros. Mas
ele observa cada rosto, cada traço, cada olhar, cada cabelo, e até a forma de
vestir e de calçar de cada um que consigo cruza e esboça um perfil mental do
retratado. Ele não sabe por que faz isto, muito menos se serve para alguma
coisa. Sabe apenas que, ao analisar os outros, é como se estivesse a ver-se a
si mesmo, numa catarse mal-amanhada. Dá por si a pensar que somos todos tão
estranhamente quase iguais, apenas com leves diferenças de pormenor, que no
conjunto geral praticamente não se distinguem. O curioso, pensa o caminhante
para si mesmo, é que todos, homens e mulheres, numa roda obsessiva, à procura
do inexistente, buscam essa diversidade, isto é, o diferente… que não existe em
lado algum. O que uns têm a mais num lado comportamental, numa ambivalência
inexplicável, terão em carência em outro qualquer sentimento. O engraçado,
também, é o facto de cada um, sendo feito da mesma argila existencial, à sua
maneira, se considerar superior e melhor do que o outro.
Enquanto vai mergulhado nestes
pensamentos, de repente, na rua larga, passa por si aquele tipo que ocupa um
cargo importante na Câmara Municipal. Marcha ereto, apontando o céu, com o
olhar fixo no horizonte, como se o seu raio de visão perscrutasse muito longe,
no global, sem se deter nas minudências, nas pessoas, coisas pequenas e sem
valor humanitário; como se os indivíduos que se cruzam consigo fossem meras
sombras de um cenário teatral chinês. Calcula-se que este comportamento altivo
mais não é do que uma máscara de defesa e assente apenas nos alicerces frágeis
do interesse estatutário. O nosso caminhante meditativo, observador, dá por si
a pensar, como a dissecar esta figura, o que seria este rei, neste tabuleiro de
xadrez social, se lhe retirassem o tapete da ilusória importância?
Agora o analista especulador está
a passar por aquela dama de meia-idade, divorciada recentemente e que, por sua
iniciativa, pôs um ponto final numa relação de muitas décadas. Quando lhe
perguntam o porquê dessa atitude, responde que estava farta de aturar o
ex-marido. Já não o aguentava. Está boa, o raio da “cota”! Já nem parece a
mesma! Ainda apetitosa, bem apertadinha, como maçã golden bem polida e
preparada criteriosamente para agradar ao consumidor. Como boneca voluptuosa,
erótica, em passo concertado, caminha pela calçada despertando olhares de
cobiça masculinos. Acabou de sair do cabeleireiro. As suas longas madeixas
alouradas em ficção, caindo-lhe pelos ombros, ainda largam aquele odor
perfumado que se confunde com café torrado. Leva as unhas bem pintadas, mais
parecem uma tela colorida com cores berrantes em sótão de pintor sem nome. É de
supor, também, que tudo o que fora pêlo, no interior do seu corpo e na sua pele
já um pouco tocada pelos anos, aparado criteriosamente pelas mãos experientes
da esteticista, como jardineiro em busca da erva daninha, terá desaparecido. Provavelmente,
como é fim-de-semana, irá a mais um encontro conseguido num site de encontros,
entre centenas de outros, dedicado aos descasados desta vida e solitários deste
mundo. Como um número sorteado numa tômbola de lotaria, lá irá calhar e cair
nos braços de algum carente de amor, mentiroso e mais sozinho do que ela
própria. Num qualquer quarto bafiento de um motel de estrada, poeirenta e em
segunda mão, se rebolarão, com sofreguidão, em torno de momentos de prazer.
Como comprimido analgésico, tomado para aliviar a dor, ambos, naquele entreter vazio,
fatalista e sem destino, se enganarão durante umas horas. No dia seguinte, como
sol que renasce na aurora, na busca pelo homem perfeito, tudo recomeçará de
novo. Os seus olhos entristecidos parecem denotar algum cansaço, quem sabe,
talvez a sua alma esteja ardente de saudade do seu ex-companheiro e artesão dos
filhos queridos? Se calhar já deu para ver, já se teria apercebido, que não há
homens perfeitos. Todos são incompletos, inacabados, finitos, mas,
curiosamente, a pensarem o contrário. Quando, revendo retalhos da memória, se
lembra de certos momentos passados a dois, uma lágrima rebelde, teima em borrar
a pintura há pouco retocada no salão. Se pudesse voltar atrás! Mas o tempo está
para o humano, como a água para o rio. Quer o tempo quer água, nunca mais
voltarão a ser os mesmos, apesar de o humano e o rio continuarem, aparentemente,
a serem iguais.
O mentalista pensador continua a
pisar as pedras duras do chão maltratado sem um único queixume. Agora está a
passar por um comerciante que está à porta da sua loja. O lojista, em conversa
com um seu certamente cliente, com um ar simpático, parece rir. Quantas mágoas
afogarão cada risco daquele aparente traço de felicidade? Quantas reviravoltas
dadas na cama em noite mal passajada? Quantos sonhos enterrados em campa rasa
de isolamento povoarão a sua mente? Mas este homem empobrecido, continuando a
aparentar uma forma de estar que já há muito perdeu e derrotado pelo sistema em
secretária de luxo, finge com quantos dentes tem na boca. Quando está só,
apelando ao seu santo protetor, culpa-se e pede perdão em contas de rosário que
jamais serão entendidas ou terão fim. Resta-lhe a dissimulação nesta época de muitos
perdidos e poucos achados e do desperdício de usar e deitar fora.
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