(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)
Ele está à minha frente. Bom aspecto, cabelo bem penteado para trás, calça de ganga, limpa e t-shirt vermelha, com a mensagem quase irónica: O FUTURO COMEÇA HOJE. Não fosse o extremo esforço que ele faz para se manter na vertical, como eucalipto esguio em dia de forte ventania, e dir-se-ia um homem de trinta e três anos igual a tantos de muitos que qualquer de nós conhece.
Mas o Hélder não é igual à maioria. Infelizmente para ele. Conheço muito bem o seu mal-amanhado percurso de vida. Desde criança. O pai, falecido há cerca de dezoito anos, era arrumador de carros ali para os lados da Sé velha, em Coimbra. Conheci muito bem o senhor António. Homem de cerca de quarenta anos, cordato, de confiança e profundamente respeitador. Nessa altura, em que ainda não se falava em parquímetros ou parcómetros, o senhor António era o depositário das chaves dos muitos carros deixados estacionados no Largo da Sé. Ele se encarregava de arrumar, ou desarrumar, se tal fosse necessário. Toda a gente gostava dele. Um dia disse-me: “durante uns tempos -curtos, espero- vou faltar aqui. Vou ser operado ao apêndice no Hospital dos Covões”.
Foi operado, fui vê-lo a sua casa, pareceu-me muito bem. Conversámos e disse-me que estaria só uns dias de convalescença e rapidamente voltaria à Sé Velha. Saí de junto dele com a certeza de que iria ser mesmo assim. Mas o senhor António não voltou. Passados dois dias, como flecha rasante e célere em direcção ao alvo, a notícia correu rápida e caiu na minha cara: "o senhor António morreu!". Morreu…como?! Interroguei na altura. Seria possível morrer de uma operação ao apêndice? Mas, por essa causa ou outra, ele finou-se mesmo.
O senhor António era muito poupado. Os seus únicos vícios conhecidos era o cigarrito e o café. Ele ganhava muito bem a arrumar carros. Era muito mais do que o arrumador que conhecemos hoje. Este homem afeiçoado e respeitado, tinha licença para arrumar carros e usava boné que legitimava o seu "metier". Era portanto um profissional reconhecido e uma pessoa muito querida por todos. Estava separado da esposa, que me dizia, em segredo, "não ser grande espingarda, como quem diz, nem para matar presta".
Quando o fui visitar a sua casa, para minha surpresa, estava acompanhado da mulher. Ela cuidava dele. Aceitara-a com todos os seus defeitos, pois não estava em condições de negar tão providencial ajuda, disse-me deitado na sua cama, quando ela se ausentara para ir à cozinha.
Passados dois dias o senhor António morreu. O que aconteceu? Ninguém saberá jamais. Ainda fui ao hospital falar com o médico que o tinha operado e perguntei-lhe se era plausível ele ter morrido de complicações pós-operatórias a uma intervenção tão simples. Respondeu-me o operador que para morrer…bastaria estar vivo. E nessa dúvida me fiquei. Dividido em vários cenários. Não foi autopsiado. Lembro-me de na altura me sentir fortemente inclinado a ir à Judiciária e denunciar as suspeitas que sentia e pedir a autópsia. Mas e se eu estivesse enganado? Eu nem sequer era familiar. Era simplesmente um amigo que gostava muito dele. Acabei por me ficar nas dúvidas que ainda hoje me acompanham e morrerão comigo.
O Hélder , então adolescente, sofreu forte com a perda do pai que idolatrava e começou a entrar pelo cano e foi deslizando, deslizando, sem nunca mais parar. Começou a namorar o haxixe, passou à branquinha heroína e acabou como amante confesso da cocaína. Do pequeno gamanço de pouca monta passa ao grande e assalta, em 2000, um Stand de automóveis. Foi preso e apanhou dois anos.
Da mãe, sabe que depois da morte do pai já lhe passaram pelo regaço vários homens. E pouco sabe mais. Há muitos anos que não se vêem. “Ela pensa que eu sou um bandido…senhor Luís, e você sabe que eu sou boa pessoa…sinto tanto a falta dela” –diz-me de pranto a correr pela cara avermelhada, fruto de um álcool delirante, talvez anestesiante para uma alma carecente de amor.
O Hélder visita-me quase todos os dias. Ele lá saberá porquê. Dorme num prédio abandonado ali para o Penedo da Saudade, juntamente com mais outras cinco almas perdidas como a dele, que vagueiam errantes pela cidade terrena que é a nossa.
Todos os dias, como religioso pagão, sobe a Celas e vai à Associação “Sol Nascente”, onde vai tomar os retrovirais necessários para se manter de pé. A sua amante, a cocaína, ferrou-lhe uma dentada para o resto da sua vida, num dia de chuva e pouca luz, quando apanhou a primeira seringa que encontrou mais à mão.
Diariamente, almoça na Cozinha Económica, por cerca de um Euro. “Ainda bem que existem estas Instituições, a não ser assim o que seria de mim? Mas eu sinto-me muito triste, sinto-me lixo…um dia destes (passa o indicador no pescoço, como se fosse uma faca)…o que é que faço aqui?...”-a frase foi entrecortada, à força de tanto lutar contra a lei da gravidade, em manter-se de pé, acabou por estatelar-se e arrastar consigo alguns objectos…
(Escrevi este texto em 2007. Hoje, dia 30 de Maio de 2011, passei novamente por esta história e relembrei o Hélder, que deixei de ver há mais de dois anos. Provavelmente morreu numa qualquer casa abandonada vítima de overdose. Deixo o texto como uma pequena homenagem a alguém, ao Hélder, que, pela vida, se arrastou como ninguém)
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