quinta-feira, 2 de agosto de 2012

UM SISTEMA ENROLADO SOBRE SI MESMO

(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)

 O “Manel” é um caminheiro destes becos e ruelas. A sua idade física deve andar à volta dos 65 anos. Nunca lhe perguntei, mas, pela sua disponibilidade de tempo, deve ser aposentado. Como é um tipo que foge ao comum dos reformados, no sentido de que é esclarecido, calculo que tivesse sido funcionário público, sei lá, talvez contínuo, por aqui, numa qualquer escola. Fala com desenvoltura. Nota-se alguma acidez e desdém, materializados numa falta de fé no presente e sem esperança no futuro.
Como uma projecção de mim nas lides jornalísticas, volta e meia vem ter comigo e soletra: “ó Luís, já viste o que está ali, na rua tal? Já passaste no beco xis? Viste o aborto que lá está?”. E eu lá lhe agradeço a nota, embrulhada numa promessa de passar lá assim que puder e escrever sobre o assunto.
Ontem, mais uma vez, veio ter comigo. “Ó Luís, não passas lá para cima, para a Alta, para os lados da Rua da Matemática? Sabes lá o que uma certa cambada deu em fazer lá? Então não é que começaram a pintar os candeeiros daquela artéria de vermelho? Já pintaram dois e, pelos vistos, vai tudo a eito. Filhos de uma mãe, que deve estar mais que arrependida em ter gemido tanto, em sofrimento, para os pôr cá no mundo! Uma pessoa passa lá à noite e não vê nada. Aquilo é para fumarem umas passas à vontade e para ninguém ver. Estamos nisto, Luís! Havia de ser numa época em que vivi, no tempo do “Botas", que eles iam ver o que lhes custava andarem a pintar o cenário de cores matizadas e que só a eles convém.”
Às vezes falta-me a paciência para aturar gente como o “Manel”. Estas pessoas, ao virem ancorar a sua frustração no meu porto de abrigo, neste procedimento, há aqui um certo abuso de confiança. No fundo eles não concordam com o sistema em que estamos inseridos, reclamam por entre dentes, mas nunca dão a cara para mudar seja lá o que for. E então, como sabem que escrevo, ancoram-se. E se umas vezes até são assuntos de nota, outras vezes é de “lana caprina”. Tendo alguém que sirva de muro de lamentações é mais fácil porque ficam em paz com a sua consciência e, ao mesmo tempo, estão sempre protegidos pelo anonimato. São assim uma espécie de grupo de forcados que está atrás do primeiro que arrisca enfrentar o touro. Se a coisa correr bem, mesmo agarrando o rabo do animal, todo o grupo vai receber por inteiro a ovação do público assistente. Se correr mal quem apanha a cornada é o que enfrenta a besta.
Desta vez não resisti e interroguei: diz-me lá, por que não vais à Câmara Municipal e apresentas lá uma reclamação? Respondeu-me: “eu já lá fui, mas disseram que não era nada com eles. Que fizesse uma queixa na polícia. Então achas que eu vou para a polícia? Estes gajos são doidos!?!”
É evidente que não sei se teria sido assim. Mas uma coisa dá para ver: o sistema não está preparado para receber a colaboração do cidadão comum. O engraçado, sem graça, é que os detentores do poder estão sempre a apregoar a participação pública de cidadania activa. Mas isso não é mais do que nuvens de fumo em dia de forte vento. Para participar, por exemplo, uma qualquer ocorrência, uma injustiça, implica ao civitas uma grande segurança na sua acção. Tem de ser tomado por algum conhecimento básico do seu direito para conseguir partir a barreira de vidro invisível e levar o seu intento até ao fim. Como, na maioria, não é assim, entende-se porque temos um tão elevado índice de queixas anónimas. Qualquer autarquia deveria ter um gabinete direcionado ao munícipe –claro que se um funcionário da edilidade local me estiver a ler mentalmente diz logo: a Câmara Municipal de Coimbra tem um. Acontece que não falo de um gabinete igual aos outros. Este pequeno balcão deveria estar fora do conjunto. Deveria, por exemplo, estar à entrada, no átrio, com um funcionário preparado para lidar com gente simples. Não é que não entenda que o outro pessoal da casa não esteja, o que digo é que terá de ser de outro modo, mais prático e menos burocrático. O problema é que basta fazer a experiência no atendimento ao munícipe para verificar a impessoalidade do espaço –que é enorme e até assusta. Depois o trato dado por um funcionário que tem de saber milhentas coisas e apanha de tudo e leva pancada de todos –e este facto dá-lhe a necessidade de se escudar, criando máscaras de defesa materializadas numa certa distância e frivolidade. Para a pessoa comum o simples acto de retirar uma senha e estar largos minutos à espera já é um obstáculo quase intransponível. Quem quer colaborar com as autoridades, defendendo valores da coisa pública, quer ser ouvido rapidamente e com atenção porque acha que está a prestar um serviço, logo não pode ser tratado de igual modo a um qualquer indivíduo que vai cuidar de um projecto para uma casa. Aquele cidadão que dá a cara e participa activamente na vida da cidade não pode, nem deve, ser olhado da mesma forma. Ele é diferente. É um indivíduo preocupado com o que se passa à sua volta e, sendo assim, é preciso agarrá-lo com ambas as mãos. Mas, é óbvio, não é assim. Em contrário, dá a parecer que o próprio sistema, em processo desmotivador, se protege nestes emaranhados protocolares para evitar a denúncia. Até se entende por que é assim, mas não devia. Talvez valha a pena pensar nisto.

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