quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

SORTE GRANDE? SORTE TENHO EU EM ESTAR VIVO






  Encontro-o sempre à hora do almoço sentado num qualquer banco de madeira entre a Praça 8 de Maio e o Largo da Portagem. Acho graça porque várias vezes está a conferir o boletim do totoloto. Mentalmente interrogo-me o que faria um velhinho com uma fortuna. De tal modo que até, mesmo sem falar com ele, compus este poema.
Como os meus dotes de presciência já não são o que eram –a idade não perdoa-, não consegui adivinhar tudo. Mas, vá lá, acertei em qualquer coisa, o que quer dizer que ainda posso fazer carreira com ajuda de uma bola de cristal.
Chama-se Manuel Costa e nasceu –vejam bem que inveja que me faz, ai de mim se quando chegar à sua idade não estarei assim como ele- em 1919. Tem 90 anos de idade. Se vissem o seu discernimento mental ficavam de boca à banda como eu fiquei. Tem uma doçura no trato que só encontramos nos nossos avós.
Trabalhou sempre em alfaiataria, uma profissão em vias de desaparecimento. A sua vida de labuta foi feita na Rua Martins de Carvalho (antiga Rua das Figueirinhas) ao lado do seu irmão, o José da Costa -que morreu vai para muitos anos. Um grande alfaiate na cidade, diz com calor na voz embargada.
Vive, e viveu sempre, na Baixa, “ali na rua de cima, está ver qual é?” –interroga-me. Sempre ao lado da sua companheira, a Dona Aurora, uns anitos mais nova –“sabe como é, um homem precisa de uma mulher sempre mais nova. É assim ou não é?” –pergunta-me de olhar brilhante, no meio de um sorriso matreiro. Sou muito feliz, palavra de honra que sou. Tenho uma consorte que não me pode tratar melhor. E mais: tenho um filho que é um exemplo para outros. Trabalha na câmara. É muito meu amigo. Olhe que nos fartamos de passear com ele. Leva-nos para todo o lado. Ainda há pouco estivemos no Algarve. Vamos lá sempre passar o Natal. Conheço aquela zona toda…Vila Real de Santo António, Ayamonte, do outro lado do Guadiana…você conhece? No verão, vamos sempre para a praia de Pedrógão. Já lá foi? É bonita, não é?
Gosto muito de viver na Baixa. Hoje está muito diferente de outros tempos. As lojas estão permanentemente vazias. Tenho saudade dessa época em que não se podia romper por aqui com gente.
Você disse que acha graça eu estar sempre a conferir o Totoloto e questionou-me se eu ganhasse a taluda o que fazia? Olhe, para mim, é um entretém. Eu quero lá saber dos prémios! Eu sou muito feliz –e abre o rosto iluminado. Vivo feliz. Quantos da minha idade tem a sorte de se deslocar sozinhos? Embora me custe um pouco, as pernas já me pesam muito. Já viu a minha sorte em ter um filho como eu tenho…que é tão meu amigo? A maioria das pessoas da minha idade, ou até mais novos, está “encaixotada” em lares, longe da sua casinha. Eu não. Todos os dias pego nas minhas coisas, sabe?, naqueles objectos que me acompanharam pela vida fora. São essas memórias que nos dão vida. Coitado de quem não pode permanecer no seu lar. Morre depressa!
Obrigado por falar comigo. Não falo com muita gente, sabe? A maioria que anda por aí, se se chegam a mim, é para me enganar, mas eu não estou a dormir, percebe? –ao mesmo tempo que leva o indicador à pálpebra. Mas consigo foi diferente, vê-se logo que você não faz mal. A nossa experiência de vida ensina-nos a conhecer as pessoas logo ao primeiro olhar.
Ai, então você escreve lá para um blogue? Isso é o quê? Uma espécie de jornal, não é? Está bem! Escreva, é bom as pessoas saberem que todos temos uma história. Obrigado. Gostei mesmo muito de ter falado consigo” –estendendo-me a mão, ao mesmo tempo que abre o rosto num sorriso contido, mas de afeição.

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