sábado, 23 de janeiro de 2010

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (34): O ÚLTIMO DESEJO NÃO RESPEITADO





 No ano em que nasceu o Diário de Coimbra, em 1930, fundado por Adriano Lucas, no lugar de Várzeas, nas cercanias de Luso, nascia também José Fernandes, o segundo filho dos meus avós Crispim e Madalena.
Naquela família paupérrima o puto despontava pela esperteza. Foi com grande facilidade que calcorreou os quatro anos da escola primária. Era o necessário naquele tempo. O que era mesmo preciso era saber ler, qualidade que não estava ao alcance de todos. Assim que acabou a quarta classe, com 10 anos, rumou até Anadia, como serviçal numa grande quinta, como guardador de rebanhos.
Há pouco, tinha começado a 2ª Guerra Mundial. Embora Salazar tivesse mantido o país neutro, a verdade é que os ventos vindos de leste eram de extrema pobreza e miséria. Cada cabeça, numa família, era uma peça fundamental, a força motriz, que teria de contribuir com trabalho para a salvação da prole.
É na grande casa agrícola de Anadia que vem a conhecer a esposa Natividade e, entre troca de alianças e promessas de fidelidade, se tornam casal e contraem matrimónio para a vida. Porque ganhavam pouco e o trabalho era intenso, transferiram-se para Lograssol para uma grande casa agrícola. Ele como “criado”, ela como serviçal. Mas o “” sonhava com outro labor. Daquele, em que transpirava de sol-a-sol, estava saturado. Era duro e o dinheiro não se via. Foi então que, com vinte e poucos anos, lhe arranjaram para a cozinha do Grande Hotel das Termas da Curia, de Alexandre de Almeida. Logo de seguida meteu uma “cunha” à administração e colocou lá a esposa no serviço de quartos.
Os anos foram passando, e o chefe da cozinha do Hotel, de “jaleca Branca”, via com gosto que o “moço de cozinha”, de jaleca cinzenta aos quadrados miúdos, vindo de Várzeas, terra de bons chefes cozinheiros, tinha dedo para as artes pantagruélicas. Foi promovido a cozinheiro do pessoal. Foi então que, por razões que a razão desconhece, a Natividade foi despedida. Naturalmente que o “” ficou numa posição desconfortável e, em solidariedade com a mulher, pediu a demissão também.
Neste entretanto, por volta dos anos de 1960, um amigo chegado, sabendo que ele tinha deixado o Hotel da Curia, convidou-o a ir para Coimbra para chefiar a cozinha de um restaurante que abrira há pouco na Praça da República: o café restaurante Mandarim.

O CHEFE DA COZINHA DO MANDARIM

O José Fernandes, que aqui trataremos por “”, para além de ser muito poupado, embora com algumas reservas, era uma pessoa solícita. Não era senhor de grandes rasgos de companheirismo mas, depois de avaliar a situação, gostava de ajudar. Foi assim que em 1966, recebendo uma carta minha a pedir-lhe para me arranjar emprego em Coimbra, me colocou, sobre a sua alçada, na cozinha do mesmo café de tantas tertúlias académicas, sob a gerência do senhor Joaquim Antunes, o Mandarim.
Passado um ano, passei para o balcão da pastelaria. Fui substituir o “Manel” Tarrafa, de Pereira do Campo. Sob a superintendência do senhor Mendes, o chefe do balcão de pastelaria, e sob a vigilância discreta do meu tio cozinheiro, lá permaneci no grande café frequentado por uma geração de estudantes que viriam a ser políticos, cerca de seis anos. Eram tantos e bons funcionários profissionais como o Hugo, o Joaquim Pardal, o Talina, o Abreu, o Fernando Gomes e tantos outros que não lembro.
Em 1972, porque considerava ganhar pouco –e cujo salário ia por inteiro para o meu pai- “levantei ferro” do velho café e parti em direcção a outros destinos que, em sonhos, vislumbrava no horizonte. O meu tio José Fernandes lá permaneceu a chefiar a cozinha e a confeccionar bons petiscos para os estudantes, como o bom bife à Mandarim e o muito procurado “combinado número cinco”, com uma tosta de pão por baixo, um escalope de vaca por cima e com um ovo estrelado e acompanhado com batatas fritas e um molho daqueles que nunca mais se esquece na vida.
Em finais da década de 1970 morreu o senhor Joaquim Antunes. A partir daí o velho café, como se tivesse perdido a alma, nunca mais voltou a ser o mesmo. Ainda passou por mais dois proprietários, mas entrou em decadência anímica e foi então transformado em restaurante “Mc Donalds”, até 2014. Em meados da década de 1980, o meu tio abandonou a casa que o albergou durante várias décadas e rumou até à fábrica Sanitana, em Grada, próximo de Anadia, como cozinheiro de apoio aos patrões.

A VIDA QUE NÃO CONTROLAMOS

Quis o destino que a minha tia Natividade não pudesse conceber filhos. Assim, no início da década de 1970, adoptaram uma criança, então já com sete anos, em Coimbra, filha de uma família desestruturada.
O meu tio José Fernandes esteve sempre ligado ao desenvolvimento da minha vida. Foi no início, quando me arranjou o primeiro emprego e me acompanhou durante seis anos, enquanto trabalhei no Mandarim, e voltou a ser uma pedra fundamental quando, em 1982, em plenas medidas económicas restritivas do FMI em Portugal, me estabeleci por conta própria e me emprestou 100 contos. Embora fosse muito difícil obter o seu acordo –demorou duas horas a dizer sim-, lá acabou, com a ajuda da minha tia Natividade, por me passar o cheque.
Ao longo dos anos, quando estava mais apertado de finanças, algumas vezes voltei a bater à sua porta. Em visitas amiúde, fui acompanhando a sua caminhada em direcção ao fim da estrada e a que chamamos vida. Nos últimos anos sofria de Alzheimer, doença neurológica progressiva caracterizada pela atrofia do cérebro.
Em Dezembro, do ano de 2009, numa das muitas deslocações que fiz à sua casa, num momento de grande lucidez, de lágrimas nos olhos, dizia-me: “já viste como estou para aqui abandonado como coisa velha e sem valor? De que valeu eu poupar tanto? Tantas viagens imaginadas e que não fiz. Os sonhos, martelados em tantas noites de insónia, que não realizei. A vida que poderia ter tido e não tive. O dinheiro não vale nada. Andamos todos enganados! Sabes o que quero agora? Pessoas à minha volta com um sorriso de conforto. E acabar os meus dias na minha casinha. Só quero mesmo a tua tia ao meu lado. Quando ela está aqui, nunca tenho frio. Precisava que a minha filha também estivesse sempre ao pé de nós e não está! Teima em trabalhar, aí na aldeia, noutra casa, a cuidar de outra pessoa doente. Eu até lhe dou o ordenado que ela está lá auferir” –enfatizou com uma grande tristeza que lhe pressenti nos olhos. Impressionou-me demais aqueles pungidos de sofrimento do meu tio José Fernandes.

A MENSAGEM

Passadas umas semanas, a meu pedido, tive uma conversa longa com a filha. Sem entrar em grandes confidências, tentei dizer-lhe o quanto o pai precisava dela. Que o ajudasse agora, enquanto podia e ele estava vivo, porque, não se saberia quando, ele iria partir na grande viagem sem retorno. Tentei dar-lhe a minha experiência relacional em conformidade com o que senti na afinidade ao meu pai. A nossa vida é dividida em três capítulos: 
o primeiro, até cerca dos 25 anos, será a fase da confrontação. Achamos que o nosso pai é de pouca prestabilidade, antiquado e deslocado no tempo, que nunca se ocupou de nós, enquanto filhos, e deu-nos pouco de tanto que nos poderia dar. A sua forma de proceder irrita-nos profundamente. Claro que iremos ser melhores pais.
o segundo, segue-se a da aceitação/compreensão. Esta fase irá dos 25 aos 50 anos. Talvez porque vêm os filhos e, ao mesmo tempo que amadurecemos, somos confrontados com o mesmo procedimento que tanto criticámos e a dar por nós a fazer o mesmo. Progressivamente, vamos entendendo o nosso progenitor e, pela nossa experiência empírica, compreendemos que ele foi apenas o que poderia ter sido, tendo em conta o circunstancialismo do tempo.
Depois vem o terceiro, o da desculpabilização/auto-culpabilidade. Para além de perdoarmos tudo ao nosso pai, mesmo os seus exageros, aos poucos, vamos criando um sentimento profundo de culpa por não termos sido melhores filhos e mais compreensivos com as suas atitudes.
A filha pareceu entender tudo e concordou. Achei que tinha feito o que tinha a fazer.
Em 17 de Janeiro de 2010 o meu tio José Fernandes, com 80 anos de idade, exalou o último suspiro. Infelizmente, e contrariamente ao seu desejo, faleceu fora do seu domicílio encantado e no ambiente que sempre cogitou. Estranhamente, vá lá compreender-se, foi levado para um lar, longe da sua casa. Como se quisesse reclamar deste tratamento tão impessoal e carregado de insensibilidade, passados dois dias faleceu.
De pouco valeram os bramidos sofridos de dor dos seus familiares mais directos na hora da despedida. De que gritariam eles? Da saudade de o verem partir ou pela culpa sentida de que Freud tão bem explicava? O destino é mesmo cruel!

UM POEMA DE SAUDADE

Meu tio está de partida,
reparem, não leva nada,
tem a cara acriançada,
serena imagem benzida;
Envolve-o um sobretudo,
aos seus pés umas flores,
talvez sejam desamores,
embrulhados em veludo;
Deixa tudo p’ra quem ficar,
terras, casas e dinheiro,
já não precisa de caseiro,
só quer paz quando chegar;
Muitos choram a sua ida,
ele não liga, parece feliz,
só lamenta esta matriz,
de lacrimar no fim da vida;
Parece não ver, mas sente,
o fingimento reinante,
só vê explicação abundante
na culpa que nunca mente;
A vida é uma grande lição,
que pena só o percebermos,
fora do tempo e esquecermos,
quando já não resta solução;
Quanto vale uma discussão,
o ódio, a guerra e a soberba,
um metro de terra de perda,
para no fim acabar em perdão;
Mas José leva consigo solidão,
não viajou; tudo fez para poupar,
só se preocupou em bens deixar,
e, em troca, só recebeu desilusão.







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