sexta-feira, 25 de setembro de 2009

A MORTE, MESMO ANUNCIADA, PODE SER UMA SURPRESA





Subitamente, no verão passado de 2006, um octogenário, residente em Coimbra, como última vontade, deixou um cheque no valor de 49.950 euros endossado ao presidente da Junta de Freguesia de São Bartolomeu, Carlos Clemente.
O estranho é que Clemente, quando recebeu o telefonema de aviso para levantamento da ordem de pagamento, não estava minimamente à espera de tal surpresa. Mas vamos lá começar pelo princípio, passando a redundância. Segundo o presidente da junta de freguesia, tudo começou na primavera de 2006, quando uma senhora de nome Guilhermina, moradora na Rua das Padeiras, na Baixa da cidade, e próximo da sede da junta, se dirigiu ao presidente Clemente a pedir ajuda para Waldemar Ortiz Braga, de 83 anos.
Na altura, alegava a senhora que o seu vizinho do andar contíguo, para além de estar muito doente, estava a passar por muitas contrariedades. Contou a senhora Guilhermina que fazia o que podia para o ajudar, mas como, além das suas posses também serem limitadas, também já tinha muita idade, não podia fazer mais, e daí dirigir o apelo à junta de freguesia.
Carlos Clemente imediatamente se dirigiu ao locado acompanhado da senhora. “Quando entrei fiquei abismado com o que vi naquela casa. Via-se que era um lar de um homem só. Tudo desarrumado e de ambiente algo fétido. Quando entrei no quarto deparou-se-me um velhinho muito debilitado, deitado numa cama onde os lençóis, pelo uso contínuo, se esqueceram da sua cor imaculada e, como camaleões, mudaram para uma outra quase bege escuro. Estava então perante o senhor Waldemar, que vim a saber depois da sua morte ter sido catalogador da Biblioteca da Universidade de Coimbra”, conta-me, detalhadamente, Clemente.
Continuo a ouvir o presidente da junta de freguesia, “começámos então a conversar, reparei que era uma pessoa culta. Como as palavras são como as cerejas, contou-me que era viúvo. Desde que a sua esposa desaparecera do seu pequeno mundo nunca mais voltara a ser o mesmo. Não tinha filhos. Ou por isso ou não, a verdade é que perdera o gosto pela vida. Pouco comia e se às vezes engolia alguma coisa era por insistência da dona Guilhermina. Estava para ali, como se arrastado, à espera que a morte se lembrasse dele. Queria ir ter com a sua amada mulher, invocou, no meio de um profundo suspiro. Na presença da vizinha Guilhermina, ficou combinado contactar a assistente social da cozinha económica para dar apoio domiciliário ao doente, quer a nível de alimentação, quer psicológico.
No dia seguinte, através da Associação das Cozinhas Económicas da Rainha Santa, ficou acordado que seria feita a limpeza ao andar e se daria todo o apoio essencial ao necessitado. Para além disso contactou-se também um amigo íntimo de Waldemar Ortiz, o senhor Marques, que foi posto ao corrente do que se iria fazer dali para a frente. Sob sugestão deste amigo, contratou-se a vizinha Guilhermina para, através de uma pequena mensalidade, dar todo o apoio indispensável ao doente”, relata-me Carlos Clemente.
Os meses foram passando e o presidente da Junta, nos seus afazeres pessoais e públicos, nunca mais visitou o doente da Rua das Padeiras. De quando em vez, quando ia à Cozinha Económica, se encontrasse a assistente social Ana Maria, era natural que lhe perguntasse sobre a saúde de Waldemar Ortiz. Mas, sabendo ele dos bons serviços daquela instituição, talvez por isso, não era preocupação que o atormentasse.
Se acaso encontrava a Dona Guilhermina, vizinha e agora guardiã de Ortiz Braga, era natural falar-se deste homem. Foi assim que soube que Waldemar fora internado nos HUC, Hospitais da Universidade de Coimbra, e passados poucos meses regressara a casa. Obviamente, continuou a usufruir dos bons serviços assistenciais da Cozinha Económica e apoio da vizinha Guilhermina.
No mês de calor a pico, no verão de 2006, Clemente, que profissionalmente é agente funerário, foi contactado pelo senhor Marques: o amigo Waldemar Braga tinha falecido e era necessário tratar do funeral.
Um dia depois do féretro ter seguido o seu destino, Clemente recebeu um telefonema do amigo do extinto. Tinha muita urgência em falar-lhe. Combinaram então encontrar-se no Café Santa Cruz. Perante dois cafés, Marques queria entregar-lhe uma pasta que tinha lá dentro uma caderneta da Caixa Geral de Depósitos e dois cheques. Um, preenchido e endossado em nome de José Carlos Clemente no valor de 49.950 euros. Outro, somente assinado, sem endosso.
Segundo me conta Carlos Clemente, “perante aquela surpresa, não me foi difícil tomar a decisão de recusar. Considerava não ser o digno destinatário de tal testamento. Afinal eu pouco ou nada fizera. E o que fiz, foi dentro do âmbito das minhas funções públicas como presidente de junta. Mas o senhor Marques é que não estava pelos ajustes. Tinha que dar resolução à última vontade do amigo que partira em vésperas. De argumento em argumento, chegou-se a acordo no destino a dar ao dinheiro. Os 49.950 euros iriam para obras de beneficência na Junta de Freguesia de São Bartolomeu. Ou seja, a verba seria depositada na conta bancária da junta. O remanescente, a apor no cheque assinado seria para gratificar a senhora Guilhermina pelo dedicado apoio desinteressado de muitos anos, pagar as despesas de funeral e trasladar o corpo de Waldemar Braga para um gavetão de um jazigo que se viria a comprar. Tudo isso foi feito e, em tempo útil, foi informada a assembleia de freguesia”, conta-me Carlos Clemente, agora, na presença do tesoureiro da Junta, Júlio Gaspar.
“Mais tarde recebi um telefonema de uma sobrinha do testador Waldemar a dizer-me que sabia de tudo, e que a vontade do tio seria respeitada. Apenas solicitava umas fotografias de sua tia, também falecida e esposa de Waldemar Braga”, enfatiza o presidente da junta.
“É assim que nasce a possibilidade de o executivo oferecer à Cozinha Económica, no ano passado de 2008, uma máquina industrial de lavar roupa e 25 contentores de transporte de alimentos, no valor de 10.000euros, e este ano uma carrinha multi-funções no valor de 23.000 euros. Também oferecemos à Casa dos Pobres uma lavandaria completa, no valor de mais de 21.000 euros, que já se encontra paga e armazenada à espera que esta instituição particular de solidariedade social entenda a melhor altura para o fazer”, relata Carlos Clemente.
Metaforicamente, se pensássemos em teatro, esta peça, tendo por fundo a morte de Waldemar Ortiz Braga, um culto bibliotecário, poderemos dividi-la em três actos. O primeiro, e dentro do antropológico-social, a mostrar um homem de grande sabedoria que, por desaparecimento da sua amada, perde os alicerces anímicos, sustentáculos da sua força interior de vida, abandona-se nos labirintos do desmazelo à espera da grande viagem. Vivendo mal os últimos anos, e acabando por morrer num mar de dificuldades, embora colmatadas pela assistência social. E aqui é que dá que pensar: mesmo sem herdeiros legítimos, deixa no banco mais de 50.000 euros. E mais: em última vontade, quase como partida de destino, decide oferecer o seu maior tesouro, certamente amealhado com sacrifício, a alguém que com ele apenas privou por escassas horas.
O segundo acto, em tempos de ganância, em que o homem é o devorador do próprio homem, é sem dúvida o desligamento de Carlos Clemente, perante a pequena fortuna doada. Faz-nos crer que é um bom exemplo que lega a todos, e que, embora pareça perdida, a humanidade ainda terá salvação.
E o derradeiro terceiro acto será o fim social que o gesto de Waldemar Braga desencadeou na prestação de melhores serviços de duas instituições reconhecidas na cidade: a Cozinha Económica e a Casa dos Pobres. Mostra que o dinheiro, quando entendido como instrumento de bem-fazer, um meio de alcançar o equilíbrio espiritual no aperfeiçoamento do homem, sendo doado para causas nobres, pode ser o motor de desenvolvimento social. Uma espécie de favores em cadeia.
Onde quer que esteja Waldemar Ortiz Braga, seja onde for, todos ficamos com uma garantia: estará feliz com toda a certeza, a sua dádiva foi muito bem aplicada.

3 comentários:

João Braga disse...

Um exemplo concreto de : "Vota no homem, não no partido". Pessoalmente irei dar-lhe os meus parabéns por tão digno acto. É nestas alturas e nestes pequenos gestos que se vêem os homens ditos homens com "H"

Anónimo disse...

Um Presidente de Junta que poderá servir de exemplo para todos os autarcas deste País.
Sinceramente grande exemplo de seriedade, cumpriu com o desejo.
Possivelmente, outros não teriam tão nobre gesto.
Estou de acordo com João Braga.
Os HOMENS é que contam e não os Partidos.
Parabéns Carlos Clemente.

LUIS FERNANDES disse...

PEDIDO DE DESCULPAS AO SENHOR "CRIATIVO".
POR MOTIVOS ALHEIOS À MINHA VONTADE, O SEU COMENTÁRIO NÃO FOI INSERIDO -POR FAVOR REENVIE-ME OUTRO.
DE QUALQUER MANEIRA, MESMO ASSIM, VOU TENTAR RESPONDER. PERGUNTAVA O AMIGO COMO É QUE O DINHEIRO FOI PARAR À JUNTA DE FREGUESIA.
ORA BEM, SEGUNDO ME CONTOU O SENHOR CLEMENTE, NA PRESENÇA DO TESOUREIRO, JÚLIO GASPAR, O CHEQUE EM NOME DE CARLOS ALBERTO CLEMENTE FOI ENDOSSADO E DEPOSITADO NA CONTA BANCÁRIA DA JUNTA DE FREGUESIA DE SÃO BARTOLOMEU.
NATURALMENTE, COMO DEVE CALCULAR, EU LIMITEI-ME A ESCREVER A HISTÓRIA, NO ENTANTO, SE TIVER ALGUMA PERGUNTA A FAZER, FAÇA. TENTAREI INFORMAR-ME E DEPOIS RESPONDEREI AQUI. CLARO QUE, UMA VEZ QUE TORNEI PÚBLICA ESTA HISTÓRIA, ESTOU EM CRER, QUE PODERÁ TAMBÉM INFORMAR-SE NA JUNTA DE FREGUESIA.
UM ABRAÇO E DESCULPE. SINCERAMENTE NÃO SEI O QUE ACONTECEU. EU ACEITEI O SEU COMENTÁRIO E NÃO APARECEU AQUI. SE ACHAR ÚTIL, VOLTE A REENVIAR-MO.
LUIS FERNANDES