quarta-feira, 9 de setembro de 2009

EDITORIAL: O NOSSO SISTEMA DE ENSINO






 Faço parte dos milhares de pessoas deste país que, em tempo útil, não puderam estudar. Com muita honra, sem me envergonhar, sou filho de gente muito pobre. Desde sempre trabalhei, mesmo até e durante a escola primária. Com toda a franqueza, antes de acabar o agora denominado ensino básico, a minha professora mandou chamar os meus pais. Foi à escola a minha mãe. A docente achava que eu deveria continuar a estudar. Em réplica, foi dito que, pela carência material da família, não era possível. “Os proventos do menino são necessários para ajudar à subsistência de todos”, terá dito a minha progenitora.
Mal acabei o ensino básico, então com 10 anos, em 1966, comecei a trabalhar no Mandarim, na Praça da República, aqui em Coimbra. Com alguma sorte, uma então empregada do restaurante achava que eu deveria ir estudar. Mal fiz os 14 anos –na altura, só com esta idade mínima se poderia frequentar o ensino nocturno-, esta senhora, foi então comigo à Escola Sidónio Pais (agora Jaime Cortesão) matricular-me no ensino nocturno. Conclui o então Curso de Aperfeiçoamento Comercial com cerca de 20 anos. Com esta idade casei. O meu maior sonho, para além de outros, era ser advogado.
Vieram os filhos e a responsabilidade de lhes proporcionar uma infância, uma educação melhor do que a minha, que pudessem estudar e sobretudo que pudessem escolher o que queriam fazer na sua vida. Com grande contorcionismo, e mais uma vez com ajuda de amigos, estabeleci-me por conta própria com 25 anos. Trabalhei noite-e-dia para conseguir vencer.
Em 1999 fiz o exame “ad hoc” para direito, de acesso à Universidade de Coimbra. Entrei como trabalhador-estudante. Quando, pela primeira vez, como aluno, atravessei a Porta Férrea chorei copiosamente. Achei que, para além do casamento e dos filhos, foi a melhor coisa que a vida me tinha proporcionado. Se naquela altura me confrontassem, em escolha, se em vez de poder frequentar direito poder optar por um milhão de euros, tenho a certeza, teria recusado.
Vieram as primeiras notas, 4, 6, 7 e 8, e as primeiras decepções. Na turma, houve muitos zeros. Salvo erro, as maiores notas nas frequências foi um singelo 12. Os professores, com grande pompa, como se estivessem a dizer uma grande coisa para além do disparate, apregoavam que a frequência era para 20 valores mas o máximo que dariam seria 14. Outro de Introdução ao Direito, de peito cheio, perante mais de 200 alunos, dizia que era com grande prazer que anunciava que no primeiro ano do curso a percentagem de insucesso era de 50 por cento, mas que no último ano o sucesso já era total de 100 por cento.
Vi raparigas e rapazes a receberem zeros de nota e caírem a chorar como madalenas. Fui vendo muitas dezenas e dezenas de universitários desistirem e mudarem de curso. Lembro-me de um colega, também estudante-trabalhador, hoje já advogado, ter ido 14 vezes fazer o mesmo exame. Sei de outros que, porque a sua indumentária não agradava ao regente da cadeira, foram insultados em pleno exame. Lembro-me de numa prova escrita, no auditório da faculdade, antes de começar a prova, a responsável, durante 15 minutos, num clima de ameaças, ter proporcionado um ambiente mais próprio de uma tourada do que um teste que necessitava de assertividade e acalmia. Participei por escrito ao departamento pedagógico da actuação desta senhora professora e nunca me foi dada resposta.
Uma coisa incrível que constatei, a Faculdade de Direito não respeitava o seu próprio Regulamento. Havia vários artigos que, pura e simplesmente, eram ignorados. Vou apenas citar um de memória: a assistência às orais era pública. Pelo menos era o que estava plasmado imperativamente no regulamento. Ora, na prática, o que acontecia? Os alunos que fizessem exame no mesmo dia não poderiam assistir às orais da cadeira em que estivessem inscritos. Comigo aconteceu uma coisa do arco-da-velha. Depois de fazer uma oral para subir nota a Direito Romano, e como faltavam ainda três colegas para a realizarem, fui assistir. Pois fui posto na rua porque, tendo feito exame no mesmo dia, não poderia assistir. Bem argumentei que o artigo no Regulamento de assistência às mesmas era imperativo, mas, debalde.
Eu achava que perante o meu amor ao direito nunca desistiria. Ao longo dos anos que lá andei, apesar de ser obrigatório, nunca vi ser feita uma correcção a uma qualquer frequência. Durante os anos que lá passei, nunca soube verdadeiramente o que queriam nas perguntas que me eram formuladas. E se eu estudava. Estudava mesmo com gosto. Mas vinham as frequências e o resultado era medíocre. Contrariando o que achava que nunca faria, acabei por interromper –pode ser uma questão de semântica, mas não desisti. Um dia destes, quando puder, voltarei novamente.
Quando saí, pela porta pequena, como sói dizer-se, trouxe comigo um anátema de cavalgadura –que, aliás, na Faculdade todos os alunos assim eram considerados- que me acompanhou durante muito tempo. Achava mesmo que era burro e que o meu tempo tinha passado. Hoje, já curado, creio, tenho a certeza de que não é assim.
É evidente que estou ressabiado. Dá para ver. É lógico que, como tudo, é a minha versão. Se calhar, se fossem interrogar um professor, em contraditório, ele diria que realmente a busílis da questão era outra: eu, como aluno, era mesmo uma nulidade. Ou seja, o que quero dizer, é que, tal como Nietzsche doutrinava, a verdade é apenas uma convicção.
Apesar da minha frustração, uma coisa tenho a certeza: este ensino quase medieval terá de ser todo reformulado. Sei que com o novo “Protocolo de Bolonha” a metodologia está a mudar. Pelo menos fico com essa esperança.
Um dia destes, quando a crise passar, espero poder realizar o meu sonho, e tal como a senhora que foi julgada 37 vezes e, à saída do tribunal, disse que “ainda um dia vou guiar um camião”, do meu cantinho, também digo: ainda um dia vou ser advogado.

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