terça-feira, 8 de setembro de 2009

"AINDA UM DIA VOU GUIAR UM CAMIÃO"







“Um dia ainda visto um fato-macaco e ainda vou guiar um camião”. A promessa, por enquanto em forma de sonho, é de Cristina Araújo, que voltou a sentar-se ontem no banco dos réus depois de ter sido apanhada pela 37ª vez a conduzir um automóvel sem carta de condução” –in Diário de Coimbra de hoje.
Sempre que leio notícias destas fico arrepiado com o exacerbado legalismo do sistema que nos rege. Ainda que o Positivismo Jurídico praticamente fosse arredado do nosso edifício jurídico, a verdade é que continuam a existir resquícios. O Positivismo Jurídico foi uma doutrina que, na obsessão do igualitarismo, perdurou desde meados do século XIX até ao terceiro quartel do século seguinte. O que interessava era a utópica igualdade plena do homem, mesmo que para a atingir provocasse a maior iniquidade e maiores desigualdades. Apenas considerava os fins (teleológico) sem ter em conta os meios. Exemplo: a média estabelecida para um homem ir a pé de Coimbra a Fátima serão três dias, logo todo o homem, pelo facto de o ser, demorará esse prazo de tempo. O problema é que, para além de outros impedimentos, há coxos, tetraplégicos e paraplégicos que embora sendo homens não conseguem, mas, na sua cegueira, não sendo permeável a atenuantes, o sistema considerava que todos levavam o mesmo tempo.
Passemos então para o caso desta senhora que, segundo contam os jornais de hoje, já foi 8 vezes ao exame de código e chumbou sempre. Para além disso, conduz há mais de vinte anos sem nunca ter tido um acidente.
O nosso país está cheio de histórias deste género. São médicos que deram consultas durante décadas sem estarem habilitados; são dentistas a exercerem; são padres de paróquia sem nunca serem investidos para o efeito, etc.
O nosso ensino está formatado para pessoas iguais a outras iguais sem considerar o desigual –o tal positivismo de que falava em cima-, sem ter em conta que somos todos diferentes. E não é só aqui em Portugal, mesmo nível mundial a história está cheia de exemplos. Albert Einstein foi um péssimo aluno e só por acaso, graças ao seu gosto pela física, foi considerado o maior de todos através da Teoria da Relatividade.
O sistema não deveria criar mecanismos diferentes para aproveitar estas pessoas? Porque, no caso, estou a falar de profissões de “lana caprina”, mas nesta cegueira embarcam outros “Enstein’s” e vários candidatos a cientistas que, se lhes dessem possibilidades de ir avante na sua vontade, fariam descobertas interessantíssimas para a humanidade.
Em nome da honra do saber –de que só passa quem souber, da qual Coimbra é o paradigma máximo da estupidez-, elaboram-se pautas de exame com perguntas absurdas da qual nem os próprios examinadores muitas vezes sabem as respostas. O que importa é fazer passar a ideia de que dificuldade é sinónimo de qualidade. Claro que, num povo ignorante, esta mensagem cola sem grande dificuldade.
Voltando a esta senhora, que não consegue passar no exame de Código da Estrada e conduz há mais de 20 anos, será que o sistema não deveria ter em conta que aquele exame pode funcionar para a maioria mas não para todos? Não estaremos perante um obsessivo igualitarismo? Não deveria ter outra opção para pessoas que não conseguem? Eu tenho a minha carta de condução há mais de trinta anos, no entanto, lembro-me, de, na altura, ter respondido a duas perguntas ao calhar no tal teste americano. Por acaso, correu bem e passei, mas podia não ter sido assim.
O nosso sistema de ensino está completamente errado. Tem apenas em conta os fins. Todos têm de saltar a barreira dos dois metros. Isto é fazer exames completamente estúpidos que não servem para nada, a não ser para discriminar pessoas com mais dificuldades ou outro tipo de entendimento.
Mesmo apesar do neurocientista português, António Damásio, vir demonstrar um novo conceito de inteligência, da vida, dos afectos, indissociável entre cérebro, mente e corpo, o ensino português continua igual ao século XIX. Fechado na sua concha, imune a mudanças, continua a cercear o sonho de muitos milhares de pessoas, só no nosso país, que, penso, a nível europeu, será o que estará pior. Embora, agora com a Convenção de Bolonha, espero, as coisas mudem para melhor.
Quantos jovens, porque não passam a tal barreira estúpida da ignorância de quem com palas como os burros legisla, são atirados para profissões que detestam, quando se o sistema fosse mais inteligente poderia (e deveria) ultrapassar estes iníquos e aberrantes procedimentos.
Esta senhora é mais uma vítima. Infelizmente, até acordarem para a realidade haverá muitas mais. Enquanto se continuar a olhar para a capa do livro sem ter em conta o que está lá dentro haverá muitas Susan Boyle’s que vão morrer sem realizarem os seus sonhos.

Sem comentários: