quarta-feira, 24 de junho de 2009
BAIXA: AS FOGUEIRAS NO ROMAL
É terça-feira, véspera de São João no Largo do Romal. Passa pouco das 20 horas. O sol vai-se preparando para se pôr no horizonte. Como trepador a subir a montanha, o brilho do astro-rei vai subindo cada vez mais alto na Igreja de São Bartolomeu, ali mesmo ao lado.
No largo mais típico da Baixa, com mais de cem anos de historial de fogueiras mandadas pelos santos populares, as cerca de vinte mesas, pertencentes às duas tabernas existentes no local, espalhadas por metade do terreiro, estavam praticamente completas de todos as cores e quadrantes, social, político e religioso. O prato mais pedido era o das sardinhas assadas com pimentos.
Com ar descontraído, “à civil”, estava o Ferreira, o agente da PSP que diariamente patrulha estas ruas estreitas, embora fora de serviço, mas polícia não desliga, e, como tal, sempre a "varrer" o ambiente.
A verdade é que ali respirava-se paz e concordância com todos os credos e profissões. Ao som da aparelhagem, podia ver-se o “Toino”, o “manias”, a dançar sozinho, a exibir-se. Mais ao lado, toda enroscada o seu querido, a “Marquitas”, que habitualmente a esta hora está a trabalhar na Avenida, ali próximo, mas hoje, a entrar na noite de São João, nem o seu melhor cliente a fará arrancar dali. Aliás, por causa das coisas, até desligou o telemóvel. Nesta noite de festa, o único que a vai ter nos braços é mesmo o seu “Isquim”, o seu mais que tudo. É o amor da sua vida. Que pena às vezes aborrecerem-se, e lá vem um sopapo desnecessário do raio do homem. Mas que se há-de fazer?, pensa a trabalhadora do turno da noite para si, ninguém é perfeito.
Numa mesa mais ao centro, a conviver com amigos, estava o Serafim, que, há vários anos, nunca perde umas fogueiras no Romal. Estão ali as suas reminiscências. Nos anos idos de 1970 trabalhou ali mais de uma década numa antiga firma de electricidade, hoje já desaparecida.
Mais ao lado, em pé, a beber uma cerveja, a conversar com o Bruno, o Armando, o cigano, perfeitamente inserido neste ambiente multicultural.
Quase ao lado, como farol em dia de nevoeiro a varrer a imensidão, o “Emplastro”, com o cabelo empastado em brilhantina, varria tudo em redor à procura de uma garina que lhe servisse de porto de abrigo.
Para trás e para diante, a coxear, o “Manel” pintor, com as calças todas sarapintadas de tinta, ensaiava uma abordagem a uma virgem quarentona.
Descomplexados, a curtir o som da aparelhagem, o Jacinto e o Anacleto, cabo-verdianos, de cor de pele achocolatada, com chapéu de palha na cabeça, mostravam como se dança verdadeiramente uma “morna”.
Junto ao coreto, no meio do largo, o Luís Cortês, um reconhecido músico invisual das ruas da Baixa, amparado na sua companheira, ensaiava a segunda cerveja.
Numa mesa de canto, a Lurdinhas, à espera de um prato de sardinhas, trocava um olhar de enleio com a sua companheira, ao mesmo tempo que, sub-repticiamente, não fosse alguém ver, lhe afaga uma das papudas mãos.
Vieram as 22 horas, o conjunto contratado pela Junta de Freguesia de São Bartolomeu, numa réplica de Tony Carreira, dá início ao bailarico.
A “menina” Lurdes, viúva, abre o baile a dançar com a dona Estefânia. Ao lado, o “Xico”, polidor de esquinas de profissão. Com uma grande porca no focinho, quase que embatia nestas pobres almas moradoras numa ruela ali próximo. A roda começou a encher-se nas músicas convidativas de Emanuel e Quim Barreiros.
Por cima dos pares de dançarinos, as bandeiras de papel pareciam querer imitá-los e pareciam também dançar em fustigo de uma aragem mais afoita.
O vinho, bem encorpado, misturado com o cheiro a sardinha assada, corria a rodos pelas largas dezenas de gargantas sequiosas, e vieram as 23 horas.
Como de costume, e legitimamente, Carlos Clemente, o presidente da Junta de Freguesia de São Bartolomeu, o obreiro destas fogueiras populares no Largo do Romal, já lá vão muitos anos, no meio do improvisado palco, interrompe a sequência de músicas “pimbas” e diz: “Boa noite. Muito obrigado por terem vindo. Valeu a pena vir à Baixa e ao Largo do Romal. É um trabalho de quatro pessoas, que nos honra trabalhar para Coimbra e, em particular, para a Baixa. À 01H30 acaba! Os meus pedidos de desculpa para os moradores mas é por uma boa causa”.
Nas janelas em volta do largo, apenas uma estava emoldurada com uma senhora. Todas as outras estavam apagadas.
A festa continua com a cantiga popular “Bairro Alto com seus amores tão delicados”, e, mais uma vez, a Fany, toda apertadinha da cintura até aos seios, puxa para junto de si o Evaristo, o “sorrisos”, que, por acaso, estava mesmo contente, não se sabe se pelo calor emanado do corpo da Fany, se dos vapores etílicos do carrascão vinho tinto.
Carlos Mendes, o histórico “mandador” das marchas e fogueiras populares da Baixa, como pavão, levanta o pescoço, sacode os ombros, ajeita a camisa, e sobe ao palco. A próxima meia-hora era dele. Acompanhado pela letra e música da “Tia Anica do Loulé”, o Mendes lá ia ordenando como podia aquele exército mal amanhado, mas tudo tão ordeiro naquela amálgama colectiva, através da dança e da música, como elos de interstícios integradores, a contribuir para uma Baixa melhor.
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2 comentários:
Ora viva, amigo Luis.
Como sempre, no seu melhor.
Não necessitei de lá ir para ver como tudo correu. Conseguiu descrever, "tim-tim por tim-tim" o que lá se passou.
Até breve.
Obrigado, amigo Alcides. Sempre generoso.
Um abraço e até um dia destes.
Luis
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