Para quem não conhece, o Largo das Ameias, em
Coimbra, é assim um Cais do Sodré em miniatura. É um porto de confluências
várias. Aqui desaguam, vindo da Estação-Nova, o estudante, que há vários anos
no mesmo ano, teima em acabar o curso, antes que a lei da prescrição acabe com
o seu sonho de um dia ser doutor. Por aqui, nesta praceta, convivem alegremente
o Carlos, engraxador, o “Carlitos pipi”,
o “Naifas”, o cigano, o “Zé Maria pielas”, o “Xico passador”, a Maria, a Brigite, a Etelvina e outras tantas “meninas” que, na prossecução do seu
interesse, acabam por ser o consolo público de tantos velhinhos que amararam a
este porto de existências vagabundas, vindos do interior ou até de outras zonas
da cidade. Tantos dramas, tantas histórias de vidas amarradas em nós
impossíveis de desapertar, encerram estas mulheres de vida difícil.
O Largo das Ameias, fazendo jus ao nome, é um
porto de abrigo seguro, uma sala de defesa para tantas pessoas. Parece ter
parado no tempo. Arquitectonicamente, desde há um século para cá, pouca coisa
mudou. Tirando o antigo hotel Mondego, que se transformou em casa de móveis, e
o desaparecido café Farol, que encerrou, tudo continua como dantes. Atente-se
no “logos” dos estabelecimentos: “Bragança”, “Cristal”, “Angola”, “Flórida”, “Vitória”, e “Império”. Se
repararmos, todos estes nomes nos transportam para um revivalismo há muito
desaparecido.
É neste largo carregado de memória,
analogicamente, nesta praça de Istambul, em plenos anos de 1940 onde convivem
harmoniosamente todos os géneros e estratos de pessoas que venho a conhecer o
Bruno Morais.
E quem é este homem, interroga
você? Um anónimo cidadão que faz a ponte entre todas as classes de pessoas que
citei. O Bruno, de 33 anos, neste Largo das Ameias, para todos, é uma espécie
de cabo da boa-esperança. Um anjo da guarda para toda esta gente desamparada.
Ele conhece todos os desabrigados, ele sabe tudo o que se passa nas suas vidas.
Ele é o seu mais fiel conselheiro.
O Bruno Morais nasceu em São
Tomé, e está em Portugal há cerca de vinte anos. O avô era português. Pela cor
de pele, em chocolate claro, nota-se que para além da alma, neste rapaz, corre
sangue lusitano.
Conheci-o por acaso. Quando no
balcão do café onde trabalha, me pediu ajuda para o drama do “Carlitos” –este homem, com uma
deficiência mental, é uma das últimas grandes figuras típicas da cidade e vagueia
por este largo- quando estava prestes a ficar sem tecto e a dormir na rua. É o
Bruno, segundo me disse, que trata do “Carlitos”
como se fosse seu pai. É ele que se preocupa em saber se este “rapaz-criança” já almoçou ou jantou. É
ele que o orienta nos gastos quando vem o postal com o subsídio da Segurança
Social.
Quando procurávamos um quarto na Baixa para o
“Carlitos” e passámos numa rua, em
frente a uma pensão, estavam várias “meninas”
sentadas no patim de uma porta. Uma destas “mulher
de vida-amarga”, com coração seco de solidão onde provavelmente já há muito
que as lágrimas secaram por carência de um abraço sincero, levanta-se e, numa
prova indescritível de afecto, com indisfarçável carinho, abraça-se ao Bruno. Dá-lhe
um beijo na face, e diz: “ai amor! Já sei
o que fizeste ontem pela “Ermelinda”. Merecias uma medalha…”
Achei estranha, esta prova de
reconhecimento, esta efusão de sentimentos, para mais vindo de quem
aparentemente está frio como gelo. Mais tarde fui falar com a “menina”. O que motivou aquela prova de
ternura? Interroguei. “Ontem, o Bruno
estava a trabalhar, entrou a “Ermelinda” pelo café adentro espavorida, a
gritar: “ajudem-me, ajudem-me, ele quer me bater”. Referia-se a um
mastodonte que perseguia a pobre rapariga com a mão no ar, pronto a satisfazer
os seus instintos de malvadez. O café estava cheio, mas ninguém se incomodou
com a cena. Todos continuaram a beber descansados como se nada se passasse. Nem
um olhar de reprovação mereceu. “A
“Ermelinda” já estava amarrada pelas “maozápulas” do aborígene e prestes a
levar mais pancada. Foi então que o Bruno saltou do seu lugar de trabalho e,
agarrando na mão em riste da besta, obrigou-o a vir para a rua e a largar a
infeliz rapariga. Cá fora, envolveram-se à pancada”, confidenciou-me a “mulher-filha-da-rua”.
E o que fez a “Ermelinda” ao “maozápulas” para este a perseguir? Perguntei. Isso, ela não sabia.
Segredos de alcova. Sabe-se lá?!?
Continuei a interrogar a “menina” acerca do Bruno. O que vê ela de
invulgar neste rapaz? “Ele é especial.
Está sempre pronto a ajudar todos desinteressadamente. Desde o bêbado ao
vagabundo. Se estivermos em dificuldades é com ele que vamos ter. Vê-nos como
pessoas. Não nos vê como objectos sexuais. Por dentro deste corpo físico existe
uma alma, mas a maioria de homens só vê o que está à vista. Para a maioria somos
“coisas”, somos brinquedos para eles se entreterem”, enfatizou. E
continuou, “para “sentir” o que não se vê
tem de se ter um dom. E o Bruno Morais tem-no, e coloca-o ao serviço dos
outros. É muito dura esta vida!”, profetizou a “menina”, em lamento sofrido.
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