segunda-feira, 22 de junho de 2009

ASSIM VAI A CULTURA EM PORTUGAL

























 São 22 horas de domingo, dia 21 de Junho. É o último dia da Feira do Vinho de Anadia. Fora do recinto não existe um único lugar para estacionar. Certamente, talvez por ser dia de marchas populares a entrada é gratuita.
Quem entra pelo lado norte, para além dos muitos stands deste bem sucedido certame, repara numa grande tenda branca, com três grandes painéis fotográficos a anunciar “Exposição Etnográfica Itinerante –usos e costumes do passado. A entrada para esta grande exposição está emoldurada com uma grande e pesada máquina de projectar cinema dos primórdios anos de Lumiere.
Transpomos a porta do lado direito e, como se acabássemos de entrar num mundo virtual do passado, habitualmente só possível de ver no grande ecrã, somos confrontados com uma realidade impressionante. De chofre, avistamos a banca de carpinteiro do tempo do nosso avô e com todas as ferramentas da época identificadas. Extasiados, continuamos a ver a oficina de alfaiate por volta de 1920. A seguir os nossos olhos caem noutras profissões, com os objectos expostos e todo o seu historial. É o Canastreiro –fazia cestos, canastras e outros utensílios do dia-a-adia-, é o Resineiro –extraía a resina dos pinheiros-, é o Sapateiro, o Engraxador, é o Amolador de tesouras e facas, que as afiava, onde não falta a flauta tão identificativa desses tempos de memória.
Olhamos para o lado e lemos: “Exposição Particular –vive apenas da ajuda dos visitantes”. À medida que avançamos até meio da tenda, começamos a ouvir uma frase em repetição, quase uma lengalenga em apelo: “Boa noite, agradecíamos uma “ajudazinha”; é o que quiserem dar!”.
Continuamos a apreciar esta bela exposição em fila indiana, com muitos visitantes à nossa volta. À nossa frente, uma senhora, de cerca de trinta anos, com o filhote de meia dúzia de anos, chama a atenção do petiz: “olha ali, filho, olha ali! Vês aquela peça? –apontando um lavatório com bacia e balde em esmalte estampado com flores. Era ali que o avô lavava a cara –ai que saudades, filho!”
A passo de caracol, como um disco de vinil que, de tanto tocar, se riscou, continuamos a ouvir a súplica “boa noite, agradecíamos uma “contribuiçãozinha”; é o que quiserem dar”. Às vezes é complementada com uma frase provocatória: “não estão interessados em dar uma moedinha? Isso é que são uns marotos!!...”
Como se caminhássemos na procissão, continuamos a deliciar os nossos olhos. Atrás de nós um casal de septuagenários comenta a exposição. Diz a senhora para o marido: “vês?, estás a ver aqui? Nunca ligas ao que te digo. Quem te mandou vender as velharias ao desbarato? Eu não te disse, eu não te disse? Nunca aprendes, alma de Deus!”
Agora olhamos os utensílios do Carniceiro, do Ferreiro, do Latoeiro, do Ferrador. Paramos em frente a um velho móvel de mercearia com as velhas “tulhas” do arroz, da massa, do açúcar, onde não faltam os “cartuxos” de papel para pesar e o cliente levar para casa a quantidade desejada em gramas. Lá está o velho anúncio em “Art Deco”, provavelmente dos idos anos de 1940, em chapa de Flandres a anunciar: “Tabacos, Vinho da Bairrada, Cervejas, Refrigerantes, Águas minerais”.
Lá está a velha cozinha portuguesa, que “era onde as famílias passavam mais tempo dentro de casa” -assim reza o folheto explicativo-, com a “trempe” e a tradicional panela de três pés em ferro. O móvel “cantareiro”, onde não faltam os dois cântaros de barro para manter a água fresca, entretanto recolhida na fonte comunitária de chafurdo.
Na mesa atarracada, com a candeia a petróleo, a bacia em faiança de Coimbra, de pintura “esponjada”, de onde toda a família, com os garfos em ferro, comia as batatas com bacalhau, bem regado com o puro azeite do olival. Lá está o tosco velho móvel aparador com as louças de toda a casa, a malga, em faiança popular portuguesa, em que se comiam as sopas de café com leite, as várias terrinas decorativas e os pratos da fábrica de Sacavém, fundada em 1850 e encerrada em 1980.
Somos agora surpreendidos com uma foto do leiteiro. Apanhado a conduzir a sua bicicleta “Albata”, em que transportava diariamente cerca de 50 litros de leite, com as várias medidas necessárias para satisfazer o desejo do freguês, este homem, com a tristeza que carrega no rosto, mostra bem os tempos duros de meados do século passado. Mesmo ao lado mais uma mensagem: “Exposição Particular –vive de pequenas ajudas dos visitantes”.
Passamos agora à sala de uma casa portuguesa, de família classe baixa/média. Lá está o louceiro/aparador clássico, com os seus copos em vidro e louça mais fina, de onde, habitualmente, só se retiravam em dias de festa. Nesta sala portuguesa, com certeza, que não podiam faltar dois instrumentos de navegação necessários à vida e à morte. Para conduzir os interstícios da vida sempre a horas, o velho relógio de capela, da Reguladora. Para encaminhar na morte, alumiando o caminho, o velho candeeiro de azeite, de três bicos de torcida de cordel. Chamava-se mesmo “candeeiro dos mortos”. Nas aldeias portuguesas, sempre que morria alguém, era costume, durante o velar do corpo presente, para além do Crucifixo, ter um candeeiro de três bicos aceso até à hora do féretro seguir para o cemitério.
Continuamos a ver a magnífica exposição de profissões antigas na Feira do Vinho de Anadia. Estamos agora junto da velha cadeira centenária do barbeiro. Quantos rostos escanhoados, quantos laivos de sangria, quantos “cortes” na vida alheia da aldeia. Ao lado desta a velha cadeira do dentista, com a broca perfuradora a pedal.
E chegamos ao quarto, a parte da casa, onde numa tosca cama se travavam lutas intensas corpo-a-corpo. Ali correram rios de lágrimas. Ali, como mesa diplomática, à força de beijos, abraços, promessas de amor eterno, se construiu a paz. Naquelas duas cabeceiras com duas tábuas longarinas, com colchão de palha de centeio, tantas vezes tendo as pulgas como companheiras, se multiplicou a vida, que deu em filhos, netos, bisnetos, até aos nossos dias.
Estamos agora em frente ao homem teimoso, que, sem cessar, ignorando o desânimo, quase numa apatia desrespeitosa de quem o visita, sem consideração pelo seu redobrado esforço titânico, em apelo pungido, continua: “Boa noite, agradecíamos uma “ajudazinha”; é o que quiserem dar!!”.
É o Manuel Teresinho. Está acompanhado pela esposa, Maria Alexandrina e o filho Ivo, de cerca de 25 anos. Olhando as suas expressões, facilmente se intui que, ali, o “Manel” é a máquina de força anímica que puxa mulher e filho. Teresinho, um sonhador, um “ganda maluco” –nas palavras da mulher Alexandrina-, pode ser comparado ao recentemente falecido José Franco, que do sonho passou à realidade no lugar do Sobreiro, Mafra, construindo uma aldeia de ilusão, uma festa para os sentidos, cuja compreensão ultrapassa a racionalidade, e cujos comportamentos líricos só são entendidos por poucos iluminados pela luz milagrosa do raio transcendente.


A FORÇA INCOMPREENDIDA E INAPROVEITADA


O casal Semedo, sexagenário, natural de Anadia, acabaram de percorrer a exposição. A esposa prepara-se para deixar uma mensagem no “livro de opiniões”. Escreve a senhora: “Adorei de ver estas velharias. Também tenho em minha casa uma pequena minoria. Cada vez (mais) lhe dou mais valor. Parabéns, e volte sempre –Belmira Semedo”.
O “Manel”, como máquina repetitiva, lá vai dizendo “Boas noites, agradecíamos uma “ajudazita…”. Um dos visitantes, dividido entre a surpresa e a resposta por lhe ter sido solicitada uma ajuda, interroga: “A exposição é particular? É mesmo particular? De certeza que vocês não recebem verbas do Ministério da Cultura?”.
Uma senhora pergunta: “E onde consegue o senhor arrumar tanta coisa? Em minha casa tenho algumas coisas. vejo-me e desejo-me para as manter arrumadas e limpas”. No intervalo da lengalenga a lembrar que sem ajuda não é possível continuar, o Teresinho, a meio sorrir, como só um transmontano de gema consegue, vai respondendo a toda a gente.
Uma velhinha, apoiada numa bengala, olhando uma foto de um “fogueteiro” pendurada na parede, exclama para a filha que a ampara: “Ó Lurdes, vê aquela foto ali, não parece igual à do teu avô, que temos na sala?”. Ao lado, o “Manel”, como impulsionado por uma mola, mal ouviu falar de foto antiga, concentra imediatamente todos os seus sentidos na anciã. Em catadupa, as frases sai-lhe propulsionadas pela ansiedade: “A senhora tem fotos antigas em casa? Tem? São de profissões? Não se importa que eu vá lá ver?”.
Perante aquele manancial de energia cósmica, interrogo a Maria Alexandrina, para me dizer como sente a força anímica do marido? “Os homens são difíceis de aturar, mas tem de ser. Isto é muito cansativo; é desgastante. Cada vez que se faz uma exposição são menos três anos de vida que o meu marido perde. Chega a casa às duas horas da manhã e levanta-se às seis. Já vê?! Olhe para a cara dele, de cansaço. Alguém diz que ele só tem 49 anos?” –interroga-me, em pergunta de retórica, a Alexandrina.
O Teresinho, com sorriso de complacência, como se, sem o afirmar, dissesse: “eu sei que tens razão, mas que se há-de fazer? Eu sou assim. Tem paciência comigo!”
Interrogo então o Manuel para me dizer como é que aguenta esta vida sem apoios. “Quem corre por gosto não cansa. Eu faço isto com todo o amor e carinho. Às vezes, vou-me um pouco abaixo, quase que desanimo com a insensibilidade humana, sobretudo de quem está à frente das autarquias. Não consigo entender esta frieza pela cultura popular. Só vêm visitar a exposição no primeiro dia, em jeito de protocolo, e nunca mais voltam. Nunca me perguntam se ganhei para a despesa. No entender deles, certamente, pensam que ganho uma fortuna. Deveriam interessar-se mais, uma vez que eu divulgo a cultura a custo zero. E mais, atente-se, na maioria das feiras, ainda querem que eu pague o espaço –não foi o caso de Anadia, aqui não paguei. Se dessem uma “ajudazinha” era bem mais fácil. E evitava de ouvir tantas vezes os “raspanetes” da minha Alexandrina”.
Conta-me, solicito, como é que tudo isto começou? “Eu sempre gostei muito de velharias –não sei bem se teria sido por o meu pai ter tido uma mercearia e tasca em Trás-os-montes, quando eu era criança. Então abalancei-me nesta aventura que me ia dando cabo do casamento. Em 2003, comecei na Lousã –foi lá que fiz a minha primeira mostra- e a seguir na CIC, em Coimbra. Foram uma desilusão para os meus sonhos.
Em Coimbra, pelo espaço, paguei mais de dois mil euros. Para rentabilizar e recuperar o investimento, tributei a entrada a um euro. O maior erro de casting da minha vida. As pessoas chegavam à porta para entrar, quando viam que era preciso pagar um euro, retrocediam como tivessem visto o diabo. Enquanto durar, nunca mais me esqueço deste quadro. Então, para não perder tudo, retirei o pagamento obrigatório da entrada e, quase como pedinte, passei a implorar que me ajudassem a manter o meu sonho de pé. É estranho, não é? –interroga-me o Teresinho, como se estivesse a tomar fôlego, para dominar a ira que o mina por dentro. Pois, comecei então a pedir uma “ajudazita”, e é assim, como porta-mensajeiro de um serviço que não foi encomendado, que vou andando. Parece quase que o nosso povo gosta que nos arrastemos na “pedinchisse”. Parecem sádicos. É estranho, não é Luís?!”
Quando lhe pergunto, em média de classe, que tipo de visitante é o seu, responde: “80 a 90 por cento é pessoal que nasceu na aldeia, que tem bem gravado a fogo na memória os tempos passados. Os outros restantes serão visitantes ocasionais, isto é, mais intelectualizado, sem ligação às tradições”, enfatiza o Manuel Teresinho.
Começo a desfolhar o “Livro de Opiniões”, onde estarão subscritas dezenas ou centenas de frases incentivadoras como estas:


“Acho que para os jovens tem muito valor, pois nunca terão oportunidade de ver tão valioso espólio. Gostei muito de conhecer tanto utensílio. Espero que continuem e muitos parabéns. IVO”


“Este é o trabalho duma pesquisa muito importante para que as pessoas hoje possam dar valor àquilo que têm, quando dizem que isto hoje é um atraso. Parabéns. Mário Rui –Mafra”.


“É bom que ainda hoje haja quem se preocupe com o passado e faça recolhas como esta. Parabéns! Os jovens deveriam passar por aqui. Virgínia Ribeiro”


“A tenda tá porreira, mas o motivo pelo qual eu vim, foi por causa da minha professora de Inglês (que é um malho). (Chalana) Tábua (Nuno)


“Tá fixe, tem que se fazer mais coisas destas. A minha mãe tá a adorar esta tenda. Continuem. Inês Quaresma”.


Esta tenda tá fixe, mas só entrei aqui por causa da minha mãe, que é muito dada a estas coisas. Barros”.


“É tudo bonito Mas?
Como se irá preservar todos estes bens que agora nos dá prazer observar?
É preciso pensar em pedir ajuda do Estado para estas ricas Peças!!!!
Gostei. Sílvia Gaspar”

Sem comentários: