quarta-feira, 29 de abril de 2009

UMA "ESTÓRIA" DE HEROICIDADE




O homem de trinta e poucos anos, bem vestido, meio atarracado, com barriguinha saliente, de passo calmo, estacou junto ao balcão da loja de velharias. Calmamente, abriu a pasta, lá de dentro, com mil cuidados, retirou um estojo, e deste, com todo o carinho, pegando numa série de medalhas, meio titubeante, interrogou: “disseram-me que o senhor comprava estes artigos?!”
O dono da loja, primeiro, olhando as várias condecorações, e entre elas a Grã Cruz da Ordem do Infante D. Henrique, depois, olhando o vendedor nos olhos, interrogou: “estas condecorações são suas? O senhor é bombeiro?”. O homem respondeu que sim, que era Voluntário em Coimbra. O comerciante de velharias, habituado a encarar todo o género de vendedores, e agora mais do que nunca, interrogou admirado: “então, conte-me o que pode levar um bombeiro medalhado, inclusive com a comenda da ordem de Cristo, a querer “desfazer-se” de uma coisa que deve significar tanto para ele?”. O vendedor das comendas, com o ar compungido, com os olhos humedecidos, disse: “estou numa grave aflição financeira e só isso me leva a separar-me da minha segunda alma. Tenho de pagar a creche dos meus dois filhos, de dois anos, gémeos, e não tenho dinheiro. Preciso de 125 euros, que ainda me faltam”.
O homem da loja de velharias, que para além de ter dado tantos trambolhões na vida que o tornaram sensível aos problemas de cada um, um pouco vulnerável perante este aparente afogo financeiro, tenta aconselhar: “repare, estas comendas, comercialmente, têm um valor insignificante e residual, o que quer dizer que o senhor vai vender algo que para si não tem preço, e nunca mais recuperará. Por que é que o senhor não vai falar com a direcção do colégio e roga que esperem mais uns dias? Ou então, no limite, pede aos seus pais, ou sogros? Se vocês estão a passar mal, nomeadamente fome, tenho alguns contactos que posso diligenciar...”
O vendedor de medalhas, olhando o comprador fixamente, e mais uma vez os seus olhos se inundam, diz: “olhe, foi Deus que me pôs no seu caminho. Ainda bem que o encontrei. Se me tivesse separado destas recordações, iria sair daqui de rastos. Muito obrigado. Obrigado mesmo, do fundo do coração!" –e dá um abraço ao vendedor de velharias.
O comerciante, que gosta de escrever e contar as histórias de cada um, interroga o homem se ele se importava de contar a sua, e, sobretudo, o que esteve por detrás dos actos que deram origem às condecorações. O Pedro Agostinho, disse chamar-se assim, anuiu, “com todo o gosto”, exclamou.
“Sou natural de Vila Flor, Trás-os-montes. Foi lá, nos Bombeiros Voluntários que ganhei todas as comendas. Há poucos anos, entrei em rota de colisão com o comandante e vim então para Coimbra. Sou licenciado em Direito e fui colocado no Serviço de Protecção Civil. Agora estou nos Bombeiros Voluntários. Ganho cerca de oitocentos e poucos euros –está a ver, a minha mulher, também licenciada, está no desemprego. Tem uma problema nos olhos que lhe afecta a visão, e com os dois miúdos na creche…”. Espere aí, interrompe o comerciante, então se a sua mulher está em casa por que é não têm os seus filhos junto dela?
“Sabe, continua o medalhado a contar, o pediatra aconselhou uma creche para os miúdos, estavam pouco desenvolvidos para a idade. Precisavam de brincar com outras crianças –tive de fazer mais este esforço, entende?”
Descreva-me, uma-a-uma, cada medalha e o que fez para as merecer, solicita o comerciante.
“Olhe, estas três, diz apontando, correspondem à medalha de grau cobre, prata e ouro, que me foram atribuídas pela dedicação à causa dos bombeiros, respectivamente, nos 5, 10 e 15 anos de serviço;
Esta é a medalha de mérito por grandes feitos da Força Aérea. Foi concedida pela minha coragem na Ilha Graciosa, nos Açores, em 1999, quando um avião da SATA se despenhou na serra do Pico da Madalena. Morreram várias pessoas. Lembro-me que contei mais de 26 cadáveres;
Esta é a medalha de honra, grau-ouro -4 estrelas-, da Liga dos Bombeiros Portugueses. Foi-me atribuída por feitos extraordinários à causa. Por ter salvo 14 bombeiros na Pampilhosa da Serra, em 2006 –quando morreram quatro bombeiros de Mortágua, Lembra-se?” –interroga o contador medalhado;
“Esta é a medalha de grau-ouro, de uma estrela. Foi-me atribuída por feitos extraordinários à causa dos bombeiros;
“Esta medalha, indicando outra, é a cruz de meios de Socorro, da Liga dos Bombeiros Portugueses –esta distinção é imanente à ordem de Cristo. É atribuída ao mesmo tempo;
E esta é a flor dos meus olhos, a Comenda da Ordem de Cristo, foi-me entregue pelo ex-presidente da República Jorge Sampaio, em 2004, que me conferiu a ordem de Comendador, por actos heróicos e dignificantes para a Pátria. Foi em Moçambique, em 2000, aquando das cheias. Fiz um parto em cima de uma árvore, depois de ter resgatado às águas mãe e filha e as ter enviado para terra-firme por helicóptero. Como não havia lugar para mim, fiquei várias horas em cima da árvore à espera que me helitransportassem”.
O homem, sorridente, despediu-se do comerciante, e mais uma vez repetiu: “muito obrigado. Agradeço-lhe imenso. Vou mesmo fazer o que me aconselhou!”
O comerciante de velharias, antes de escrever a história, tentou confirmá-la. Foi aos bombeiros voluntários de Coimbra e, nesta corporação humanitária, não existe ninguém com estas características.
Seguidamente, ligou para a protecção Civil de Coimbra. Igualmente, ali não existe nenhum medalhado assim. Depois ligou para os bombeiros Voluntários de Vila Flor. A mesma coisa. Tal pessoa era ali desconhecida.
Por último, pediu informações, através do telefone, à Liga dos Bombeiros Portugueses, que sendo esta instituição que atribui as comendas, seria a entidade que melhor poderia responder. Nada. Não existe nos seus arquivos nenhuma pessoa com esta descrição.
Em resumo, o que o comerciante de velharias extraiu é que somos um país cheio de talentos em várias áreas e, no caso, dentro da dramatologia. Para tão grandes artistas faltam teatros que os acolham.
Mas, mesmo na mentira, não deixa de ser peculiar…

2 comentários:

Anónimo disse...

Boa tarde o senhor "medalhado" desta "trama" existe mesmo!
Conheço-o e sou deveras amigo dele, ah e recebeu a medalha dos congressos no congresso em Coimbra.

LUIS FERNANDES disse...

Companheiro, vamos por partes. Comecemos pela existência física. De facto existe o homem -e sei bem quem é. Já história que me tentou vender, meu caro, não existe. E você, que é o mesmo, sabe que não existe. Não vale a pena fazer de mim, e de outros leitores, totós.